Fazer um filme é um processo demorado, exaustivo e que muitas vezes não sai da maneira planejada. Para o público, sentar confortavelmente na poltrona do cinema ou em sua casa e simplesmente dizer que gostou ou não gostou é a parte fácil. Muitos sequer param para pensar no trabalho de centenas, às vezes milhares, de pessoas envolvidas com a produção. A verdade é que existe uma grande lacuna desde a concepção de um filme até seu produto final lançado nas telonas (ou telinhas); e quase nunca o que se imaginou num primeiro momento é o que de fato se concretiza. É claro que muitas vezes a realização supera todas as expectativas, mas o ponto é que o filme terminado na maioria das vezes é um animal totalmente diferente de seu esboço.
Toda produção possui as famosas três fases: a pré-produção, as filmagens e a pós-produção. Só aí já podemos ter mudanças significativas de uma fase para outra. Na primeira, uma ideia vira história e é escrita no papel na forma de um roteiro. Muitas vezes esse roteiro é alterado drasticamente para se encaixar às filmagens, na concretização. Depois, na pós-produção, ou a finalização do projeto, novas mudanças podem ocorrer com o produto final. Em resumo, um filme, por melhor que ele seja, nunca é exatamente o que o idealizador pensou antes de tudo começar a ganhar forma.
Pensando nisso, em nossa nova matéria nostálgica, irei abordar algumas produções dos anos 80 que possuem uma ligação maior em sua concepção do que qualquer um poderia imaginar. Confira abaixo.
Um Tira da Pesada // Stallone Cobra
O que Um Tira da Pesada (1984), filme de ação e comédia que transformou o humorista Eddie Murphy em astro, e Cobra (1986) – afetuosamente conhecido como “Stallone Cobra” no Brasil -, um dos filmes mais subestimados da carreira do herói de ação Sylvester Stallone, possuem em comum, você pode se perguntar. Bem, à primeira vista ambos são filmes policiais que se passam em Los Angeles, na Califórnia. E ambos são protagonizados por figuras icônicas dos anos 80. Enquanto Murphy se tornou um astro com o filme de 1984, Stallone já era um, tendo a esta altura quatro filmes de Rocky e dois de Rambo (incluindo os fenômenos Rocky IV e Rambo 2 – A Missão).
O que nem todos podem saber, no entanto, é que Um Tira da Pesada foi pensado originalmente para ter Sylvester Stallone como protagonista. E aí que entra o elemento citado no início do texto, de que a ideia original sofre inúmeras modificações até o produto final. É claro que o filme que teria Stallone seria mais sério, e quando o ator desistiu, o roteiro sofreu mudanças para acomodar Murphy, acrescentando muitas piadas e o estilo do humorista. Nem precisa ser dito que deu muito certo. Porém, ao sair do projeto da Paramount, Stallone levou com ele algumas ideias do que deveria ser o filme, e as colocou em Cobra. O núcleo da trama, ao invés de centrar no choque cultural de um policial vindo de Detroit com as modas de Beverly Hills enquanto caça o assassino de um amigo, agora mostrava um policial caçando uma quadrilha de psicopatas sádicos parte de uma seita, que estão atrás de uma modelo. E neste duelo, Um Tira da Pesada levou a melhor, pois fez mais sucesso de bilheteria e crítica, gerando mais duas continuações – e mais uma está a caminho.
Conan // Guerreiros de Fogo
Essa é relativamente fácil de se deduzir. Por falar nos astros de ação dos anos 80, o rei do gênero chega agora à lista. Arnold Schwarzenegger fez uma das migrações mais satisfatórias do terreno dos esportes para às telonas da história do cinema. E seu primeiro papel de destaque como protagonista foi em 1982, com a adaptação dos quadrinhos de Robert E. Howard, Conan – O Bárbaro, longa que está completando 40 anos de lançamento em 2022. O filme fez sucesso suficiente e Arnold logo conseguia a vaga em O Exterminador do Futuro (1984), que viria a se tornar seu papel e franquia mais marcantes. No mesmo ano, no entanto, o musculoso austríaco dava vida novamente a Conan em sua primeira continuação, Conan – O Destruidor, produção que ouviu os fãs e se aproximou mais do material fonte, com clima de HQs.
Os filmes de Conan foram uma co-produção entre a Universal Pictures e o produtor Dino De Laurentiis, que satisfeito com o resultado dos longas, tratou de comprar os direitos de outra criação do quadrinista Howard, a guerreira Red Sonja. A ideia do mega produtor era juntar Conan e Sonja num terceiro filme, que seria uma história de origem da amazona com a participação do bárbaro. De fato, a equipe conseguiu até mesmo a participação de Schwarzenegger para reprisar o papel. O problema foi que os direitos do personagem não foram liberados pela Universal e assim a solução foi mudar o nome do herói para Kalidor – embora todos saibam quem ele deveria ser. Os fãs, inclusive, bolaram uma teoria de que Kalidor seria um pseudônimo criado pelo próprio Conan para usar como disfarce. Para o papel de Sonja, Sigourney Weaver foi cogitada, mas a personagem terminou nas mãos da então modelo Brigitte Nielsen (que teve um caso com Arnold durante a produção, mas depois casou com Stallone), em seu primeiro papel no cinema. Ah sim, ela também seria a vilã de Um Tira da Pesada 2 (1987), provando que no fundo tudo está realmente interligado.
Comando para Matar // Duro de Matar
Mais uma vez os fãs podem estar coçando a cabeça e se perguntando o que um veículo de ação de Arnold Schwarzenegger tem em comum com um de Bruce Willis a não ser serem filmes de ação e terem no título (ao menos no Brasil) a palavra Matar. Bem, acontece que Comando para Matar (Commando, 1985), um dos primeiros filmes de ação de Arnold, que se tornou um verdadeiro ícone para os que cresceram na época e o assistiam sem parar na Globo, fez sucesso e uma sequência era planejada. O problema é que o astro queria alçar novos voos, como enfrentar um alienígena num filme de guerra (O Predador) e mostrar que também poderia fazer graça em comédias (Irmãos Gêmeos). Assim a sequência de Comando para Matar, sem seu protagonista, seria descartada.
O curioso disso tudo é perceber que a tal continuação traria o personagem de Arnold preso em um prédio de Los Angeles com terroristas, precisando se esgueirar entre dutos de ventilação e corredores abandonados para salvar o dia. Ou seja, o roteiro de Duro de Matar (Die Hard, 1988). Sim, o filme que revelou ao mundo Bruce Willis como herói de ação inicialmente seria uma sequência de Comando para Matar. A verdade é que Duro de Matar é baseado no livro Nothing Lasts Forever, do autor Roderick Thorp. Tal livro, por sua vez, serve de continuação para outro do mesmo escritor. Intitulado A Lei é para Todos (The Detective, 1968), foi levado às telas num longa protagonizado por Frank Sinatra. Quando os produtores começaram a tirar a continuação do papel 20 anos depois, primeiro precisaram oferece-la para Sinatra protagonizar. Mas o ator e cantor se achava velho a esta altura para desempenhar os feitos do protagonista. Assim, o roteiro foi pensado para adequar o capítulo seguinte de Comando para Matar, e depois sendo eternizado como um dos melhores filmes e franquias de ação do cinema, Duro de Matar.
Mestres do Universo // Cyborg – O Dragão do Futuro
Todos que foram meninos durante a década de 1980 jamais esquecerão o fenômeno que foi o desenho animado He-Man e os Mestres do Universo. Estreando em 1983, a série na TV durou até 1985, mas ficaria eternizada em 130 episódios que reprisavam em looping durante o período, e gerava todo tipo de merchandising para a garotada, desde bonecos, fantasias, lancheiras, até roupa de cama. Foi um fenômeno que os produtores não nos deixam esquecer, vira e mexe tirando do forno alguma nova produção com o tema. Até mesmo longas para o cinema em forma de animação o personagem teve, mas o que todo garoto da época queria mesmo ver era o filme em live-action com o ídolo, seus aliados e seus vilões. E de fato este desejo se concretizou, com o lançamento de Mestres do Universo, em 1987.
Acontece que o motivo de todos daquela geração não lembrarem com bons olhos de seu tão sonhado filme do He-Man foi que por trás da produção, jogando um balde de água fria nos fãs, estava a picareta Cannon Films, o estúdio mais “171” de Hollywood. Os primos israelenses Menahem Golan e Yoram Globus até tinham boa intenção, o problema é que viviam querendo dar o passo maior que a perna, e se comprometer com superproduções que não possuíam o orçamento para bancar. E pensar que eles quase foram os responsáveis pelo primeiro filme do Homem-Aranha no cinema. Pior para He-Man e Superman, cujo quarto e desastroso longa a Cannon produziu. Mestres do Universo, com Dolph Lundgren, desagradou 10 entre 10 crianças da época por divergir muito de sua fonte – manobra usada para contornar a falta de grana para criar o mundo do herói (a solução foi traze-lo para a Terra).
Mestres do Universo (1987) foi fiasco de crítica e público, mas a Cannon, que não dava ponto sem nó e adorava fazer “dois por um”, já estava engatilhando a sequência a ser comandada pelo mesmo sujeito a cargo de levar o Homem-Aranha para as telonas, o diretor Albert Pyun. O cineasta já estava preparado para comandar o surfista Laird Hamilton desta vez como He-Man (substituindo Lundgren), quando a Cannon desistiu de ambos os filmes do Homem-Aranha e Mestres do Universo 2, devido ao resultado pobre do original. Como a pré-produção já estava a toda, com figurinos, cenários e outros elementos prontos para o filme ser rodado, a Cannon achou por bem reaproveita-los em outra produção. Assim nascia Cyborg – O Dragão do Futuro (1989), com Jean-Claude Van Damme, o novo menino de ouro da Cannon após o sucesso de O Grande Dragão Branco (1988). Ou seja, Cyborg nada mais é do que o filme que a Cannon juntou com as sobras de He-Man 2.