O conceito mais popular na atualidade dentro da cultura pop do entretenimento é o do multiverso. Presente há bastante tempo em outros tipos de mídia, como os quadrinhos, essa ideia começa a pular para fora do nicho de nerds e aficionados para o consciente geral. O conceito que começa a dominar as produções da Marvel, já apareceu nas séries ‘Loki’ e ‘What If…?” e no cinema foi o ponto de partida para ‘Homem-Aranha: Sem Volta para Casa’ e ‘Doutor Estranho no Multiverso da Loucura’. Na rival DC a ideia também dará as caras no vindouro ‘The Flash’
É claro que o conceito do multiverso não permaneceu apenas dentro do nicho dos fãs de filmes de super-heróis, afinal, como sabemos bem, a ideia chegou até o topo da “cadeia alimentar” de Hollywood, servindo como premissa do filme mais badalado da última edição do Oscar: ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’. Não existe provação maior para a popularidade de um filme do que a vitória no maior prêmio da sétima arte, e além de ganhar na categoria de melhor filme, ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’ ainda levou mais 6 outros prêmios, incluindo roteiro, direção e três de seus atores. Essa foi a validação máxima que o conceito do multiverso precisava para ser assimilado e compreendido pelo fã casual da ficção científica.
Mas sobre o que fala o conceito do multiverso? De certa forma é simples. A ideia parte do princípio de que existem em outras realidades, universos diferentes do nosso – mas que guardam outras versões de nós mesmos. Por exemplo, digamos que eu seja um médico atualmente, o conceito do multiverso implica que possa existir uma outra versão minha em outro universo que seja um policial, ou um criminoso. Em cada possível universo – e o argumento diz sobre uma existência infinita em termos de quantidade -, supõe-se que eu seja alguém diferente, com personalidades diferentes, opções de vida diferentes, trajetórias diferentes e, claro, habilidades e profissões diferentes. A ideia é trabalhada em cima de conceitos científicos, porém, a doutrina espírita possui explicações religiosas similares, no que diz respeito a outras vidas, reencarnação e evolução.
Embora o conceito do multiverso esteja sendo muito celebrado atualmente em Hollywood, surgindo como fonte para variadas superproduções, ele não é novidade dentro da maior indústria do cinema do mundo. Talvez só agora o grande público esteja consciente e aberto para recebê-lo. Mas é só voltamos 22 anos no passado para lembrar da primeira grande investida de Hollywood no tema, com ‘O Confronto’, filme de ação e ficção científica estrelado pelo astro asiático Jet Li. Coincidentemente, mais uma vez notamos a ideia do multiverso ligada ao mundo asiático. ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’ é também uma celebração do povo asiático, em especial os chineses, e dos imigrantes vivendo nos EUA – da mesma forma em que ‘Pantera Negra’ utilizou um filme de entretenimento para homenagear a cultura negra. E em ‘O Confronto’ tínhamos como protagonista o maior astro da China trabalhando em Hollywood na época: Jet Li (ou quem sabe o segundo maior, atrás de Jackie Chan).
‘O Confronto’ é uma superprodução de US$50 milhões da Revolution Studios, com distribuição da Columbia (Sony), lançada em 2001. O blockbuster marcava a produção mais cara estrelada pelo astro da ação chinês Jet Li em Hollywood. O longa chegava na esteira do sucesso dos filmes de ação e lutas marciais revigorados por ‘Matrix’ (1999). Antes disso, no ano anterior de ‘Matrix’, Jet Li já havia feito seu debute em solo norte-americano como o vilão de ‘Máquina Mortífera 4’ (1998). Mas como em seu país de origem ele vivia sempre o herói, não demorou para Hollywood transformá-lo novamente no bom moço em filmes como ‘Romeu tem que Morrer’ (2000), ‘O Beijo do Dragão’ (2001) e ‘Contra o Tempo’ (2003). Nessa fase, estreava também ‘O Confronto’, seu projeto mais ambicioso nos EUA.
Na trama, Jet Li interpreta Gabe, um policial vivendo feliz com sua esposa (papel de Carla Gugino). Tudo muda na vida do sujeito, quando ele recebe a visita de um homem idêntico a ele, decidido a mata-lo. Acontece que esta outra versão dele se chama Yulaw, e é um criminoso condenado, fugido de sua própria realidade para o mundo do protagonista. No universo de Yulaw, ele foi sentenciado à morte pelo assassinato de nada menos do que 122 outras versões dele mesmo. O propósito disso é que Yulaw descobriu acidentalmente que ao matar outra versão de si mesmo, a energia vital do morto é redistribuída para todos os outros sobreviventes do multiverso – ou seja, cada um deles fica mais forte, mais rápido, mais inteligente, com os sentidos mais aguçados, e por aí vai.
A tecnologia para pular entre dimensões, ou universos, foi desenvolvida por uma agência chamada MVA, uma força policial dedicada a monitorar e controlar qualquer irregularidade entre os universos, bem no estilo da TVA de ‘Loki’. Acontece que Yulaw era um agente da MVA, que se tornou renegado e sedento pelo poder, ao descobrir que poderia ser onipotente – um verdadeiro Deus – e tudo o que precisaria fazer seria matar outras versões dele mesmo. Agora, para completar sua missão, Yulaw só precisa eliminar a última versão dele, que se encontra em nossa Terra. Isso não será tão fácil. Primeiro, porque Gabe, a versão da Terra, também é policial, treinado, e conta com as mesmas habilidades distribuídas para Yulaw. Segundo, porque na cola do criminoso vieram para a nossa realidade dois agentes do MVA: Roedecker (Delroy Lindo), o antigo parceiro do vilão na força-tarefa, e Funsch (Jason Statham), um agente novato, mas cheio de gás, disposto a se provar.
Não deixe de assistir:
Sim, temos Jason Statham em cena, em um de seus primeiros filmes de ação da carreira. Como ainda não era muito conhecido, o ator fica com um papel coadjuvante, e muitos podem sequer lembrar que ele estava nesse filme. Aliás, para aqueles que sempre tiveram a curiosidade de saber como seria Jason Statham com cabelo, esse filme responde esta pergunta. Uma curiosidade é que inicialmente o projeto estava destinado a marcar a estreia de outro grande nome da ação em Hollywood. O astro Dwayne ‘The Rock’ Johnson estava vinculado para protagonizar no papel que foi para Jet Li. Já pensou? Bem, sem nunca ter atuado num filme antes, talvez o esforço fosse além do que The Rock pudesse entregar, e justamente pensando nisso ele achou por bem pegar um papel menor e resolveu seguir para ‘O Retorno da Múmia’ (2001), com a promessa de seu próprio derivado no ano seguinte: ‘O Escorpião Rei’ (2002).
Podemos perceber que ‘O Confronto’ já exibia diversos conceitos interessantes em sua narrativa – que seriam reaproveitados em outras produções recentes, como a própria ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’. ‘O Confronto’ foi escrito por Glen Morgan (da série ‘Arquivo X’ e do recente ‘Além da Imaginação’) e pelo diretor do filme, James Wong (também saído de ‘Arquivo X’ e que estreou no cinema na direção do primeiro ‘Premonição’). No citado filme vencedor do Oscar, também tínhamos uma realidade afetando as outras, e o surgimento uma ameaça monumental capaz de extinguir todo o universo, com um grupo de pessoas dispostas a impedi-la, usando como último recurso o recrutamento do protagonista a seu favor – seja a dona de lavanderia vivida por Michelle Yeoh, ou o policial de Jet Li. A comparação entre os dois filmes serve para destacar a máxima que diz que qualquer história pode ser contada, desde que seja da maneira certa, que faça o público entender e comprar a ideia. Essa é a principal diferença entre os filmes que contam histórias muito similares: ‘Tudo em Todo Lugar’ deu certo, ‘O Confronto’ não.
O principal problema de ‘O Confronto’ foi rapidamente ser descartado como apenas mais um filme de ação estrelado por Jet Li – com muitos inclusive o reduzindo a mais uma cópia deslavada de ‘Matrix’. Bem, não estão de todo errados. Já que a produção parece mais interessada em mostrar os efeitos especiais – que remetem muito ao filme de Keanu Reeves, do que destacar a ideia complexa de seu roteiro. ‘Tudo em Todo Lugar’ funciona justamente por não ser apenas um filme de ação, embora possua elementos do gênero. ‘O Confronto’, por outro lado, é primordialmente um filme de lutas, tiros, explosões e perseguições, com o pano de fundo do multiverso. Justamente por isso, ‘O Confronto’ naufragou nas bilheterias americanas, arrecadando menos do que seu valor de produção. Pelo resto do mundo, o filme somaria mais US$30 milhões, conseguindo se pagar, mas falhando em gerar nem mesmo o dobro de seu orçamento.
Em seu fim de semana de estreia, no dia 2 de novembro de 2001, ‘O Confronto’ (que em inglês se chama ‘The One’, algo como ‘O escolhido’ – aumentando ainda mais as similaridades com ‘Matrix’) chegou em segunda posição no ranking das bilheterias, atrás do colosso ‘Monstros, S.A.’, animação da Disney/Pixar ainda muito celebrada até hoje.
Hoje, com o conceito do multiverso no auge de sua popularidade em Hollywood, os fãs talvez tenham interesse em revisitar ou conhecer uma das primeiras superproduções – ou quem sabe a primeira – a destacar o multiverso em sua narrativa de forma tão proeminente. Para os que tiverem curiosidade, ‘O Confronto’ está atualmente no acervo da HBO Max.