Exemplo mais bem sucedido de construção de uma atmosfera assustadora, o clássico reforça a necessidade dessa ferramenta
Em dezembro de 1980, o diretor Stanley Kubrick lançou sua primeira incursão no gênero do terror com O Iluminado. Adaptação do clássico livro de Stephen King foi universalmente elogiada e se tornou uma referência do terror, a despeito das críticas tecidas pelo autor à versão cinematográfica (uma vez que certos elementos do livro foram retirados ou adaptados na conversão da mídia para o cinema).
Com seu número generoso de cenas icônicas, é possível dizer que pelo menos duas delas se destacam toda vez que se fala de O Iluminado: a tentativa do personagem Jack Torrance (Jack Nicholson), já tomado pela fúria assassina, em invadir o banheiro em que sua esposa está escondida usando um machado e, a segunda, o hotel Overlook em si; com todas as tomadas internas e externas do local.
Não é incorreto dizer que o local é um personagem tão atuante quanto o elenco que compõe a família Torrance. Desde a primeira tomada com os créditos iniciais, Kubrick estabelece de maneira sutil, mas não subliminar, o isolamento que aqueles indivíduos irão enfrentar devido à longa sequência da estrada que leva ao hotel, longe de toda a civilização, somado a trilha sonora ameaçadora e, até mesmo, fúnebre que anuncia a desventura.
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Esses elementos acabam sendo essenciais para se formar uma atmosfera que, mesmo não sendo perceptível para os personagens, é absorvida de imediato pelo espectador; facilitando portanto que ele comece lentamente a se adaptar para o clima de terror. Esse estilo de narrativa é conhecido como slow burn storytelling que consiste em uma construção lenta e gradual da história até atingir o clímax.
Conforme definido no texto Slow Burn Horror Movies – The Art of Atmospheric Horror Films para o portal Creepy Catalog, o autor Chris Laverne aponta que esse estilo de narrativa vai muito além de apenas desacelerar o filme. “Os filmes slow burn são bons porque há muita narrativa de construção de mundo acontecendo e, através delas, ocorre sua imersão dentro do filme… “.
O período inicial de imersão do filme de terror também possui a função importante de apresentar os personagens; não só eles per se mas também como funciona a dinâmica de relacionamento entre eles e um pouco mais sobre suas características pessoais. Em se tratando do gênero do terror, poucas obras oferecem tamanha atenção a mostrar para o espectador os traços de personalidade e relacionamentos dos personagens do que a Trilogia do Apartamento.
O termo foi cunhado para definir três filmes em específico da filmografia do Roman Polanski que lidam justamente com o puro trabalho de estudo psicológico de indivíduos. Composta pelas obras Repulsa ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e O Inquilino (1976) essa trilogia explora o recurso do slow burn storytelling para incomodar gradualmente o espectador e também para ligá-lo aos personagens; não exatamente de uma forma que ele sinta medo pela segurança deles mas para que ele fique desconfortável com o que será feito a eles.
Da mesma forma como ocorre em O Iluminado, o fato de utilizar o ambiente como personagem ativo da trama mas atuando de forma oculta, a Trilogia do Apartamento replicou tal movimento anos antes. Um elemento recorrente das três produções, que não se conectam diretamente, é que elas se passam em apartamentos e eventualmente esses locais ganham dimensões claustrofóbicas e se tornam uma extensão da paranoia ou condição mental debilitada dos personagens.
Da mesma forma, o hotel Overlook acaba se tornando uma materialização do enfraquecimento mental que o protagonista vai se desenvolvendo e é brevemente mencionado no início quando abordam episódios passados de violência envolvendo Jack. O cenário, portanto, assume mais uma vez no terror a função de catalisador de ação da trama para que ela se movimente para frente.
Apesar de muitos dos méritos da obra repousarem sobre a condução inteligente e com paciência da narrativa não dá para negar que os momentos de perigo evidente e violência são aqueles que ficarão na mente do público após o filme acabar. No gênero do horror, afinal de contas, a sensação de perigo precisa estar intimamente ligada com a existência de uma atmosfera macabra.
A questão no final acaba sendo como o recurso da violência será empregado; seja por meios mais explícitos (sanguinolentos), mais sutis (violência psicológica) ou até mesmo interpretativo. Os subgêneros do slasher e giallo, por exemplo, tem como marca registrada o excesso de sangue em cenas de morte que os popularizaram como filmes violentos.
Já as obras de violência psicológica necessitam muito mais de uma atmosfera intimidadora bem estabelecida do que o estilo sanguinolento; isso porque o dano físico ou é muito difícil de ocorrer ou não ocorrer, por isso as agressões e intimidações que o protagonista sofre devem causar o mesmo espanto que uma facada causa sem ter o recurso gráfico a disposição.
Seb Roberts escreve em seu artigo Strange Vices: Transgression and the Production of Difference in the Giallo sobre a composição de cenas violentas no subgênero. “ …A cena de crime do giallo é uma erupção de espetáculo que renuncia clássicas noções de necessidade narrativa, caracterização e até mesmo coerência visual, dando a realizadores a chance de experimentar suas mais criativamente selvagens necessidades… ”.
Chinatown (1974) é um exemplo de filme que se utiliza de violência psicológica mesmo que não pertença ao gênero do terror. Ao longo da obra ocorre um trabalho de contextualização e construção de personalidade tão refinado que o espectador consegue reconhecer quando a trama começa a adentrar em temas sensíveis e reagem de maneira incômoda ou espantada, quase como se tivesse presenciado visualmente o que ocorreu.
Mais recentemente tem o exemplo de A Bruxa (2015) que possui sua cota de momentos sanguinolentos mas fica bastante visível que a maior violência que ocorre no filme são aquelas proferidas por palavras ou olhares, mais especificamente da mãe de Thomasin (a protagonista) para a filha. A todo momento a personagem reafirma que não gosta do ambiente e do papel que lhe é concedido naquela sociedade (a obra se passa no século XVII) e, quando as atividades sobrenaturais se iniciam, elas se manifestam justamente sobre o medo daquelas pessoas que vivem isoladamente.
Por fim, o gênero do horror já demonstrou várias vezes ser capaz de se adaptar muito bem à diferentes tipos de abordagens. De um estilo musical até algo mais cômico; passando por visuais mais conceitualmente únicos até chegar nos blockbusters adeptos pelos jumpscare, o gênero se mostra como essencialmente uma arte sensorial pura que, dependendo do realizador, seduz o espectador tanto com a sonoridade quanto com o visual.
É nesse ínterim que a atmosfera presente em uma obra do terror sempre será uma pedra angular do projeto, mesmo que passe despercebida. Sendo uma manifestação nada mais do que audiovisual, ela é que vende aquela realidade proposta pelo diretor, é quem fica responsável por mantê-la crível para o público e que desenvolve os integrantes da história. Se seguir o ditado “o diabo está nos detalhes”, ficará visível que os detalhes nada mais são do que a atmosfera visível ou sutil que permeia cada canto do terror.