Obra reuniu ao longo de quase um século uma mística diferente
Se havia um local que fomentava a produção de novas e ousadas obras do terror no início do século XX, este lugar era a Europa. Enquanto que Hollywood descobria aos poucos o valor mercadológico de filmes de terror (com a franquia de monstros da Universal sendo esse laboratório), mas ainda priorizando os western e as comédias, alguns países europeus conduziam experimentos avançados.
Um exemplo é o famoso movimento expressionista alemão que se desenrolou na mesma época. Formado majoritariamente por obras do terror, o movimento alemão integrou novas formas estéticas a esse tipo de ambientação, dessa maneira o terror alemão quase sempre era apresentado como uma trama de sonhos, em que a ambientação e tramas procuravam realçar os aspectos fantasiosos.
Esse olhar não era um privilégio do modelo que estava se desenvolvendo na Alemanha, entretanto. Muitas obras que surgiram na aurora do cinema tinham uma visível inclinação à teatralidade e adoração ao irreal; isso se deve a uma herança do próprio teatro, uma vez que muitos dos primeiros nomes do cinema (George Méliès por exemplo) tinham suas origens na dramaturgia.
Foi também nesse mesmo período que o cinema sueco começava a se desenvolver de forma mais notória no cenário internacional. No que ficou conhecida como sua época de ouro, a linha temporal entre o ano de 1912 até 1924 ofertou de maneira inédita, até então, opções das mais diversas de produções suecas.
Tal fase é constantemente associada a dois nomes: Victor Sjöström e Mauritz Stiller; ambos os cineastas foram responsáveis por algumas das obras mais influentes do cinema mudo sueco tais como Terje Vigen, Johan e Berg-Ejvind och hans hustru. No entanto, dentre eles surgiu outra produção que escapou ao “domínio” da dupla.
O objetivo inicial de Benjamin Christensen ao dirigir Häxan não era criar uma obra assustadora, apenas pelo bel prazer, mas conceder uma certa lógica histórica a ela. A trama do filme segue um ritmo cronológico específico, no qual é dissecado o culto à religiões pagãs (historicamente associadas à bruxaria) em diversas regiões da Europa. No Brasil, o filme recebeu o subtítulo A Feitiçaria Através dos Tempos.
A partir de determinado ponto o enredo eventualmente passa a tocar no capítulo das inquisições e, principalmente, os critérios utilizados pelo corpo inquisidor da igreja para determinar quais mulheres eram fiéis a Deus e quais eram praticantes de “bruxaria”.
Para tanto, Christensen voltou suas atenções para a obra Malleus Maleficarum, uma espécie de manual publicado em 1487 que instrui os inquisidores a identificar praticantes de magia negra, julgá-los e inevitavelmente que tipo de punição aplicar a esses indivíduos. O material bibliográfico, inclusive, foi a inspiração inicial do diretor para compor o filme mudo.
A linguagem narrativa adotada pelo diretor também é importante uma vez que ele optou por algo mais próximo a um documentário do que a uma romantização; tendo dedicado três anos de sua vida em pesquisas sobre a evolução do paganismo europeu, Christensen pôde conferir a Häxan uma inédita abordagem realista.
Mesmo assim, a opção não impediu o cineasta de utilizar elementos surrealistas em meio ao conteúdo histórico, o que deu à luz para diversas cenas icônicas do terror na primeira parte do século XX. Em termos de legado é creditado à Häxan o título de ancestral do sub gênero Folk Horror, classificação que seria criada apenas nos anos 70 para reunir as obras que utilizavam elementos folclóricos (geralmente da Europa) para construir a tensão.
Atualmente em domínio público, o filme assumiu por muito tempo uma certa aura de misticismo, muito pela qualidade das imagens e a estética adotada por Christensen para representar visualmente elementos naturais ao paganismo abordado. Ainda assim, a reverência às conquistas da produção permaneceram desde a sua estreia em 1922.