quinta-feira , 26 dezembro , 2024

O Surrealismo no Terror e no Cinema – O Subgênero das Obras Interpretativas

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Por não contar com uma narrativa tradicional, surrealismo pode gerar situações únicas que nenhum outro subgênero pode

O terror, invariavelmente, tem uma tarefa muito ingrata: ele não pode apenas funcionar como um filme em todas as suas tecnicalidades, ele não pode ter apenas um roteiro coeso mas ele também precisa deixar uma marca no público. Diferente de qualquer outro gênero, alguns mais próximos da realidade, que precisam apenas se destacar tecnicamente, o terror tem a desvantagem de muitas vezes lidar com o ceticismo prévio do público e então se esforçar para que ocorra alguma ligação com o público de modo que ele tenha medo.



Isso é difícil e conforme as gerações vão mudando o ceticismo também cresce e o público já vai “vacinado” contra qualquer amostra de terror tradicional. Só que existem tipos de narrativas que não se propõem a ser tradicionais, elas abraçam o surreal e proporcionam ao público cenas que não necessariamente possuem um conceito construído ao longo do filme, mas que para o espectador, de alguma forma, faça sentido da forma que ele a está interpretando.

Logo, em 1981, quando a personagem Anna olha fixamente para a câmera (para o público) e um leve sorriso vai se formando até ele atingir um ápice de loucura extrema, o espectador sabe que está presenciando algo inteiramente instintivo, algo que lhe incomoda. O que ele vê a culminação de uma experiência completamente interpretativa que ele teve sobre uma desventura e, portanto, é o seu horror pessoal.

A interpretação de Isabelle Adjani para “Possessão” é icônica para o gênero do terror

Esse cenário é apresentado em Possessão; a obra de Andrzej Zulawski se encaixa em um estilo muito especifico de terror que é o surrealista. Isto significa que ele tem uma certa licença poética para se apoiar em uma narrativa não tradicional (ou seja, que não segue uma ordem clara de acontecimentos) o que pode incomodar ou atrapalhar a experiência de certos espectadores porém essa mesma liberdade quase esquizofrênica concede ao filme a possibilidade ousar na estética.

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Foi nesse subgênero que o diretor ucraniano se especializou e desenvolveu um estilo de contar histórias que não depende tanto de uma linguagem clara mas sim de imagens bastante impactantes. Em 1988, por exemplo, ele lançou Globo de Prata que se propôs a ser uma ficção científica sobre análise de comportamentos sociais, principalmente aqueles ligados ao culto religioso.

Para dissertar sobre algo tão efêmero e complexo, Zulawski utiliza de uma ambientação única para representar aquela sociedade e suas crenças, bem como de uma iluminação sombria e azulada para transpor o tom fantasioso e desesperançoso que ele deseja passar. No artigo Poetry, Politics and Polish Surrealism: Zulawski’s Last Film o autor Daniel Bird estipula como o cineasta lida com o surrealismo. “De acordo com Zulawski, seu próprio surrealismo é o resultado de pressionar a tendência do romantismo polonês ao excesso. Assim como Grombowicz, o relacionamento de Zulawski com o romantismo polonês é muito distante de algo definido”.

“Globo de Prata” é a desconstrução visual de como se forma uma sociedade

Dessa forma, a maneira como o diretor aborda o surreal com Possessão acaba se mostrando mais como uma maneira de exteriorizar os conflitos internos do casal protagonista. O que leva eventualmente a cenas como a liberação de loucura da personagem interpretada por Isabelle Adjani no túnel do metrô ou as visões tidas pelo marido interpretado por Sam Neill. Dessa forma, se o horror é o gênero que dialoga com medos particulares e primitivos do espectador, sua abordagem surrealista é a que, muito pelo absurdo que já lhe é próprio, é capaz de traduzir esse quadro. 

Surrealismo, é claro, não se limita apenas ao terror e já deixou seu rastro em um bom número de outros filmes. Quero ser John Malkovich é um drama\comédia sobre a insatisfação da auto identidade e a súbita chance de se conseguir uma nova por meio da descoberta de uma passagem que leva à mente alheia acaba surgindo, porém, ela já pertence a outra pessoa.

Um Cão Andaluz (um dos exemplares mais antigos do segmento, datando de 1929) não se limita a qualquer gênero cinematográfico e nem muito menos se dá ao luxo de ter uma trama. Ao invés disso são apresentadas sequências de cenas diferentes que não dialogam entre si ou fazem qualquer sentido à primeira vista.

Há muito o que se interpretar em “Um Cão Andaluz” e absolutamente nenhuma resposta

Obra foi uma produção do espanhol Luis Buñel com o artista surrealista Salvador Dalí e cujo roteiro foi baseado em sonhos que ambos tiveram. No livro Surrealism and Cinema é apontado pelo autor Michael Richardson uma certa característica desse estilo. “Na análise de filmes no contexto do surrealismo nós não deveríamos perguntar se um filme em particular ou um realizador é surrealista. A principal pergunta a ser levantada é: como a consideração desse filme ou desse realizador em particular em relação ao surrealismo nos ajuda a iluminar tanto o surrealismo quanto o filme?”

Essa linha de pensamento de Richardson é interessante por se adequar ao estilo de um certo cineasta. Não há em Hollywood um nome mais ligado ao surrealismo do que David Lynch, o diretor que construiu seu nome através de obras do suspense completamente interpretativas como Eraserhead, Veludo Azul e, acima de todos, Twin Peaks. A trama inicial sobre o assassinato de Laura Palmer serviu como justificativa para Lynch desenvolver toda uma mitologia para seu mundo de sonhos; não invariavelmente dificultando discernir o que é real e o que é sonho.

Do sucesso da série, o diretor pôde lançar em 1992 o suspense Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer; esse que apesar de ser uma prequel da série tem um ritmo diferente. De uma maneira direta esse filme consegue ser um exemplar de suspense turbinado pelo surrealismo.

Existe um drama pessoal aterrorizante implícito em “Os últimos Dias de Laura Palmer”

Os elementos fantásticos que são característicos do Lynch ainda estão lá e a parte inicial da projeção conta com uma narrativa não muito linear característica de obras surrealistas já mencionadas, mas a história desse filme é muito mais sobre abuso doméstico e o terror constante que ele gera na vítima. Da mesma forma que Possessão fez, o inexplicável aqui entra como uma ferramenta para a protagonista extravasar o horror que lhe consome por dentro.

Existem exemplos modernos desse subgênero, ainda que a maior parte se concentre fora do espectro de Hollywood. Talvez a grande amostra em tempos recentes tenha sido O Farol, onde dois marinheiros lidam com uma situação irreal em conceito mas cujas ramificações acabam se traduzindo em violência entre eles e portanto em algo totalmente real. O surrealismo no terror entende, como nenhum outro subgênero, que o irreal, apesar de não ser feito para ser digestivo a principio possui uma capacidade de se adaptar particularmente em cada espectador que ninguém mais possui. Essa muito provavelmente é a forma definitiva que resta à fantasia de driblar o ceticismo e alcançar o senso primitivo do ser humano.

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O terror, invariavelmente, tem uma tarefa muito ingrata: ele não pode apenas funcionar como um filme em todas as suas tecnicalidades, ele não pode ter apenas um roteiro coeso mas ele também precisa deixar uma marca no público. Diferente de qualquer outro gênero, alguns mais próximos da realidade, que precisam apenas se destacar tecnicamente, o terror tem a desvantagem de muitas vezes lidar com o ceticismo prévio do público e então se esforçar para que ocorra alguma ligação com o público de modo que ele tenha medo.

Isso é difícil e conforme as gerações vão mudando o ceticismo também cresce e o público já vai “vacinado” contra qualquer amostra de terror tradicional. Só que existem tipos de narrativas que não se propõem a ser tradicionais, elas abraçam o surreal e proporcionam ao público cenas que não necessariamente possuem um conceito construído ao longo do filme, mas que para o espectador, de alguma forma, faça sentido da forma que ele a está interpretando.

Logo, em 1981, quando a personagem Anna olha fixamente para a câmera (para o público) e um leve sorriso vai se formando até ele atingir um ápice de loucura extrema, o espectador sabe que está presenciando algo inteiramente instintivo, algo que lhe incomoda. O que ele vê a culminação de uma experiência completamente interpretativa que ele teve sobre uma desventura e, portanto, é o seu horror pessoal.

A interpretação de Isabelle Adjani para “Possessão” é icônica para o gênero do terror

Esse cenário é apresentado em Possessão; a obra de Andrzej Zulawski se encaixa em um estilo muito especifico de terror que é o surrealista. Isto significa que ele tem uma certa licença poética para se apoiar em uma narrativa não tradicional (ou seja, que não segue uma ordem clara de acontecimentos) o que pode incomodar ou atrapalhar a experiência de certos espectadores porém essa mesma liberdade quase esquizofrênica concede ao filme a possibilidade ousar na estética.

Foi nesse subgênero que o diretor ucraniano se especializou e desenvolveu um estilo de contar histórias que não depende tanto de uma linguagem clara mas sim de imagens bastante impactantes. Em 1988, por exemplo, ele lançou Globo de Prata que se propôs a ser uma ficção científica sobre análise de comportamentos sociais, principalmente aqueles ligados ao culto religioso.

Para dissertar sobre algo tão efêmero e complexo, Zulawski utiliza de uma ambientação única para representar aquela sociedade e suas crenças, bem como de uma iluminação sombria e azulada para transpor o tom fantasioso e desesperançoso que ele deseja passar. No artigo Poetry, Politics and Polish Surrealism: Zulawski’s Last Film o autor Daniel Bird estipula como o cineasta lida com o surrealismo. “De acordo com Zulawski, seu próprio surrealismo é o resultado de pressionar a tendência do romantismo polonês ao excesso. Assim como Grombowicz, o relacionamento de Zulawski com o romantismo polonês é muito distante de algo definido”.

“Globo de Prata” é a desconstrução visual de como se forma uma sociedade

Dessa forma, a maneira como o diretor aborda o surreal com Possessão acaba se mostrando mais como uma maneira de exteriorizar os conflitos internos do casal protagonista. O que leva eventualmente a cenas como a liberação de loucura da personagem interpretada por Isabelle Adjani no túnel do metrô ou as visões tidas pelo marido interpretado por Sam Neill. Dessa forma, se o horror é o gênero que dialoga com medos particulares e primitivos do espectador, sua abordagem surrealista é a que, muito pelo absurdo que já lhe é próprio, é capaz de traduzir esse quadro. 

Surrealismo, é claro, não se limita apenas ao terror e já deixou seu rastro em um bom número de outros filmes. Quero ser John Malkovich é um drama\comédia sobre a insatisfação da auto identidade e a súbita chance de se conseguir uma nova por meio da descoberta de uma passagem que leva à mente alheia acaba surgindo, porém, ela já pertence a outra pessoa.

Um Cão Andaluz (um dos exemplares mais antigos do segmento, datando de 1929) não se limita a qualquer gênero cinematográfico e nem muito menos se dá ao luxo de ter uma trama. Ao invés disso são apresentadas sequências de cenas diferentes que não dialogam entre si ou fazem qualquer sentido à primeira vista.

Há muito o que se interpretar em “Um Cão Andaluz” e absolutamente nenhuma resposta

Obra foi uma produção do espanhol Luis Buñel com o artista surrealista Salvador Dalí e cujo roteiro foi baseado em sonhos que ambos tiveram. No livro Surrealism and Cinema é apontado pelo autor Michael Richardson uma certa característica desse estilo. “Na análise de filmes no contexto do surrealismo nós não deveríamos perguntar se um filme em particular ou um realizador é surrealista. A principal pergunta a ser levantada é: como a consideração desse filme ou desse realizador em particular em relação ao surrealismo nos ajuda a iluminar tanto o surrealismo quanto o filme?”

Essa linha de pensamento de Richardson é interessante por se adequar ao estilo de um certo cineasta. Não há em Hollywood um nome mais ligado ao surrealismo do que David Lynch, o diretor que construiu seu nome através de obras do suspense completamente interpretativas como Eraserhead, Veludo Azul e, acima de todos, Twin Peaks. A trama inicial sobre o assassinato de Laura Palmer serviu como justificativa para Lynch desenvolver toda uma mitologia para seu mundo de sonhos; não invariavelmente dificultando discernir o que é real e o que é sonho.

Do sucesso da série, o diretor pôde lançar em 1992 o suspense Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer; esse que apesar de ser uma prequel da série tem um ritmo diferente. De uma maneira direta esse filme consegue ser um exemplar de suspense turbinado pelo surrealismo.

Existe um drama pessoal aterrorizante implícito em “Os últimos Dias de Laura Palmer”

Os elementos fantásticos que são característicos do Lynch ainda estão lá e a parte inicial da projeção conta com uma narrativa não muito linear característica de obras surrealistas já mencionadas, mas a história desse filme é muito mais sobre abuso doméstico e o terror constante que ele gera na vítima. Da mesma forma que Possessão fez, o inexplicável aqui entra como uma ferramenta para a protagonista extravasar o horror que lhe consome por dentro.

Existem exemplos modernos desse subgênero, ainda que a maior parte se concentre fora do espectro de Hollywood. Talvez a grande amostra em tempos recentes tenha sido O Farol, onde dois marinheiros lidam com uma situação irreal em conceito mas cujas ramificações acabam se traduzindo em violência entre eles e portanto em algo totalmente real. O surrealismo no terror entende, como nenhum outro subgênero, que o irreal, apesar de não ser feito para ser digestivo a principio possui uma capacidade de se adaptar particularmente em cada espectador que ninguém mais possui. Essa muito provavelmente é a forma definitiva que resta à fantasia de driblar o ceticismo e alcançar o senso primitivo do ser humano.

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