Década apresentou uma mudança de abordagem para filmes do gênero
No início de maio a Netflix liberou sua mais nova minissérie sobre crimes reais chamada Os Filhos de Sam: Loucura e Conspiração na qual é abordada uma possível ligação do serial killer Filho de Sam, preso em 1977, com uma seita satânica que estaria envolvida em diversos assassinatos.
Em determinado momento da produção é introduzido bem rapidamente o contexto de revolução cultural que estava ocorrendo nos Estados Unidos, principalmente, onde a popularidade de temas ligados ao ocultismo estava disparando bem rapidamente através de vendas de produtos, na música e cinema.
Isso é curioso pois os anos 70 tiveram ao longo de sua duração pontos bastante específicos, em que determinados exemplares foram lançados e mudaram profundamente as regras de como se trabalhar com esses filmes. No início do século XX as obras de terror tinham como norte criativo o uso de monstros fantásticos e podendo ou não ter em sua trama comentários sociais; em 1922 foi lançado Nosferatu que não só integrou o movimento cinematográfico do então Expressionismo Alemão como também, anos depois, foi interpretado como uma metáfora do panorama alemão do pós-Primeira Guerra.
Na mesma faixa de tempo, do outro lado do Atlântico, o cinema norte-americano também produzia sua própria leva de terror mesmo tendo uma orientação mais comercial. À frente desse movimento estava a Universal Studios com sua franquia de Monstros encabeçada por Drácula, Frankenstein e o Lobisomem mas também tendo outros exemplares, alguns adaptando as histórias de Edgar Allan Poe, como Os Assassinos da Rua Morgue e O Gato Negro (ambos dos anos 30).
O artigo 1920s Horror Movies, assinado por Karina Wilson, traz a constatação de que o gênero do terror, a partir dos anos 20, precisou se reinventar para competir com o ainda mais aterrorizante mundo real. “Os filmes de terror dos anos 20 não podiam mais utilizar velhas estratégias dramáticas para empolgar o público. A grande guerra reinventou a linguagem visual do horror para um novo e traumatizado mundo. Há muito haviam ido os adoráveis esqueletos dançantes e atores que desapareciam em nuvens de fumaça. Ao contrário, cineastas do terror tinham que alcançar mais imediatamente um horror ressonante”.
A capacidade para se adaptar aos novos tempos se repetiria para o gênero ao final dos anos 60, quando diversos setores da sociedade começavam a ensaiar demonstrações públicas questionando velhas convenções enraizadas. Dessa maneira temas como sexualidade, direitos civis, uso de drogas e até a violência (tendo como pano de fundo a Guerra do Vietnã) acabaram pautando as novas produções de Hollywood.
A retratação de cultos como organizações horripilantes já era velha conhecida do público de longa data; o já mencionado Gato Negro utilizou a ideia de uma seita satânica, liderada pelo personagem de Boris Karloff, como uma força antagônica ao herói de Bela Lugosi. Em 1968 o filme de Roman Polanski, O Bebê de Rosemary, quebrou com a regra para essas abordagens, até então, ao tornar a temática do sexo como um elemento iniciador dos elementos sobrenaturais; a protagonista Rosemary, após constantes assédios de seus vizinhos que são membros de um culto satânico, acaba por protagonizar uma cena íntima com o próprio Satã, no que configurou a cena como bastante polêmica para a época.
Por outro lado o artigo The Devil Inside: Watching Rosemary’s Baby in the Age of #MeToo, assinado por Laura Jacobs, chama a atenção para nova interpretação que a obra alcançou tendo como base o movimento iniciado na indústria do entretenimento que visa proteger as mulheres vítimas de crimes sexuais. Esse foi em um primeiro momento com a chegada da nova década o tema da sacralidade, que seria alvo de novas interpretações com o intuito de desconstrução.
Em 1971 o diretor Ken Russell lançou o polêmico Os Demônios, obra que posicionou o estilo de vida celibatário dos sacerdotes em rota de colisão com o desejo carnal. Ao mesmo tempo, o filme aborda a prática de bruxaria realizada pelo padre principal inspirado nos relatos do famoso julgamento das possessões de Loudun em 1634; este que terminou com o padre acusado de bruxaria sendo queimado vivo.
O filme foi banido em certos países e na Grã-Bretanha foi necessário uma complicada pós-produção para cortar as partes mais polêmicas, mesmo assim o filme ainda recebeu a mais alta classificação etária no país. Apesar disso, Russell sempre defendeu a ideia que esta é sua única obra verdadeiramente política e uma crítica à manipulação do Estado sobre a população.
À altura que o longa britânico foi lançado com a proposta de verdadeiramente juntar ocultismo com religião, a ideia ainda não era “palatável” para a maior parte da audiência. Dois anos depois, as coisas tomariam outro rumo. Vindo de um Oscar de Melhor filme com Operação França, o diretor William Friedkin manteve um período de pausa na carreira até aceitar a proposta de conduzir uma adaptação do best seller de William Peter Blatty, O Exorcista.
Mesmo tendo como clímax o mencionado ritual no título, o cineasta guia toda a construção da tensão apoiada nos sintomas de uma possessão exibida pela jovem Regan; à medida que a intensidade deles vai aumentando, sua personalidade, desde cedo apresentada como extremamente doce, vai se modificando em algo mais agressivo. A narrativa secundária envolvendo o padre Karras e sua crise de fé aproxima para a linha principal o ponto de vista religioso, ainda que apresentando uma visão mais otimista do catolicismo do que aquela em Os Demônios.
O Exorcista também se tornou marcante por sua representação do tabuleiro Ouija como um instrumento facilitador de possessões. A tentativa de se comunicar com os mortos através do mencionado tabuleiro já era atividade corriqueira para famílias abastadas desde o século XIX, mesmo com a reprovação eterna da Igreja à essa prática. A boa imagem só seria severamente danificada a partir dos lançamentos do livro e filme de Blatty e Friedkin respectivamente.
Mais para frente nesse mesmo período de tempo ainda teria uma inesperada contribuição de Richard Donner com seu A Profecia, revitalizando de certa forma o terror relacionado à maternidade introduzido em O Bebê de Rosemary mas com atenção concentrada muito mais na criança maligna do que na mãe. Ainda assim o filme pincela bem levemente uma relação entre religião e a concepção do anticristo Damien por meio da participação do arrependido padre Spiletto.
Por fim, a década de 70 foi uma reestruturação geral para o cinema, mas também para esse gênero em específico. A sensação de liberdade em desbravar temas outrora indiscutíveis estava em alta e consequentemente chegou aos realizadores. O flerte do horror com o oculto, portanto, acaba sendo algo curiosamente nascido da desinibição da sociedade em geral.