Em meados da década de 1950, os circos dos horrores emergiram como uma popular atração para as pessoas da classe média dos Estados Unidos, localizando-se nas cidades do interior como forma de manter o misticismo que cercava as criaturas que os habitavam. Mas, para falar a verdade, essas “criaturas” eram vistas como escória da sociedade e eram tratadas com descaso, asco e exclusão, ainda que apenas tivessem deformações decorrentes de uma má formação fetal. É claro que, antigamente, os avanços médicos não eram capazes de prever tais acontecimentos, bem como ajudar na cura ou na aceitação. Deste modo, os donos dos circos contratavam as pré-julgadas “aberrações” como espetáculos singulares e nunca antes vistos pelos olhos humanos.
Não é nenhuma surpresa que Ryan Murphy e Brad Falchuk se aproveitariam de um tema tão polêmico para cultivar uma perspectiva única sobre os shows de horrores de antigamente – dessa vez mostrando os bastidores das apresentações em detrimento dos espetáculos em si (e tudo isso perscrutado com uma boa dose do macabro, do inexplicável e do sanguinolento).
Entretanto, apesar das vastas propostas e mitologias dispostas para a arquitetura da nova temporada de ‘American Horror Story’, seus criadores parecem não ter tido o discernimento necessário para separar o útil do fútil. ‘Freakshow’, como foi intitulada a quarta entrada da franquia antológica, tornou-se uma decepção em virtude de muitas escolhas erradas. Obviamente, não posso tirar crédito de vários pontos positivos, principalmente no tocante à artística plástica em cena, mas os deslizes são vistos nas partes mais necessárias para o prazer do público: a narrativa. Em meio a tantos personagens e subtramas, Murphy e seu time criativo praticamente perderam a mão em se tratando de escolhas, adições e subtrações.
“MONSTROS” ENTRE NÓS
Os grandes astros dessa temporada são exatamente os freaks. Os monstros, abandonados por uma sociedade retrógrada e exclusiva por trazerem o novo para um mundo em constante mudança. Temos personagens baseados em pessoas reais, que passaram a maior parte da vida migrando de cidade em cidade, apresentando-se para sobreviverem e não caírem nos perigos das ruas e da subserviência. Entretanto, mesmo com uma riqueza de histórias verídicas – alguns atores e atrizes são portadores dessas deformidades e aceitaram participar da temporada -, a falta de profundidade nas backstories e até mesmo nas narrativas principais tornaram-nos peças descartáveis em um jogo que já começara a mostrar sinais de envelhecimento desde ‘Coven’.
A protagonista de ‘Freakshow’ é mais uma vez encarnada pela incrível Sarah Paulson, responsável por dar vida às gêmeas siamesas Bette e Dot Tattler. As duas personagens seriam dignas de páginas e mais páginas de análise sobre suas personalidades contraditórias, caso pudessem ter sido mais exploradas ao longo dos doze episódios. Não que elas não sejam: as duas são resgatadas da casa em que vivem por um longínquo hospital após o brutal assassinato de sua mãe. Após serem analisadas com desgosto pelos cirurgiões, elas são mantidas escondidas por sua condição, mas não para autoproteção, e sim para proteger a sociedade que as cerca. Afinal, a formação embrionária das gêmeas as interligou por praticamente todos os sistemas do corpo humano, incluindo o psíquico – e compartilhar uma carcaça física que divide em duas cabeças é motivo para repúdio por parte daqueles que não entendem o novo.
Bette é a encarnação do arquétipo puro, ingênuo e esperançoso. Sua presença é encantadora, principalmente pelo tom cândido com o qual fala com as outras pessoas, sempre pensando no bem-estar dos outros. Os traços altruístas estão ali e, mesmo que isso signifique sacrificar a própria felicidade, ver aqueles que ama em um estado de êxtase e pacificidade lhe traz plenitude. Entretanto, ela não está livre de quaisquer sentimentos mesquinhos que fazem parte da psique humana; Bette também tem desejos ambiciosos, principalmente de se tornar uma estrela da televisão e do cinema. Apesar da constância subalterna de sua vida, podemos enxergá-la como uma das várias facetas de Bette Davis, conhecida por sua necessidade de aprovação por parte do público e da crítica – assim como nossa querida personagem.
Dot, por sua vez, não tem medo de expressar sua opinião, principalmente quando esta tem a ver com seus sonhos. Suas ambições, assim como as de Bette, estão lá para deixar as coisas mais interessantes e adicionar camadas de complexidade à sua personalidade. Porém, diferente da irmã, ela precisa reafirmar para todo que passará por cima de qualquer obstáculo para chegar onde quer, tornando-a, a priori, impetuosa e impiedosa. Temos em certos momentos da trama diversos monólogos sobre como ela desejava uma nova vida para si mesma, ainda que isso significasse a separação forçada de sua gêmea – e pior: a morte de uma das duas. Mesmo assim, seu instinto maternal aflora a cada episódio; em diversas sequências, vemos as duas entrando em um conforto familiar e fraternal que não poderia existir de qualquer modo e, bom, no final das contas, todos acabam ganhando. As duas irmãs se tornam celebridades, após passarem por processos de maturação psíquica que deixam seus laços ainda mais fortes e inquebráveis.
Há uma cena no segundo episódio, chamado “Massacres and Matinees”, em que temos uma clara distinção entre as duas personagens. Nos vemos numa sala de operações, na qual, sobre uma maca, jaz os corpos conjugados de Bette e Dot. Enquanto esta se mostra pronta para realizar a cirurgia, constantemente dizendo que sua irmã gêmea está sendo egoísta por não deixá-la viver, aquela se desmonta aos prantos, apelando para o lado emocional de sua outra metade, sem qualquer sucesso. Momentos depois, as duas acordam, uma de um sonho, e outra de um pesadelo. É emocionante ver a organicidade de ambas em cena, e como um sempre irá completar a outra, ainda que em momentos de pura insanidade ou cansaço do que o mundo exterior representa para elas. Entretanto, o ápice de tudo isso recai sobre Paulson, que consegue fornecer nuances extremamente diferentes e prova, mais uma vez, sua incrível versatilidade nas telinhas.
As gêmeas siamesas são resgatadas pela figura aparentemente superprotetora de Elsa Mars (Jessica Lange), dona do Gabinete de Curiosidades da Madame Elsa – um nome um tanto quanto charmoso para esconder os horrores dos bastidores do circo de horrores. Apesar do semblante severo e do coração mole, passamos a conhecer, ao longo dos episódios, seus segredos e ambições mais obscuras: primeiramente, devemos entender que ela foi uma das sobreviventes da II Guerra Mundial, sendo expatriada para os Estados Unidos após mostrar-se desalinhada aos ideais nazistas; depois, faz-se necessário compreender que ela, na verdade, era uma prostituta de luxo, contratada pelos oficiais do exército germânico para lhes servir, até cair numa cilada e ter sua perna direita removida e substituída por uma prótese de madeira.
Após ser enganada, ela decidiu recomeçar sua vida na pequena cidade de Júpiter, Califórnia, tentando encontrar princípios que a mantivessem viva e não a deixassem ceder às tentações do álcool e das drogas – não que isso tenha funcionado. Mas ao menos ela conseguiu alcançar o sonho de se tornar uma espécie de celebridade ao controlar seu próprio espetáculo, utilizando este como pretexto para recrutar os marginalizados pela sociedade e cuidar de cada uma das vidas como se fosse a própria. O almejo pela paz é algo que nunca teve e que, agora, após alcançar certa idade, consegue direcionar para seus “filhos”.
Elsa é a representação da decadência e da falta da esperança, ambas provindas de inúmeros traumas passados. Ela tem um desejo secreto de retornar ao estrelato, ignorando todas as advertências de seus colegas e companheiros para ter o gostinho da vitória. Ethel Darling (Kathy Bates), também conhecida como a Mulher Barbada, é um dos arquétipos de sua consciência, tentando guiá-la através do melhor caminho para não deixar que sua ganância fale mais alto que a crua inclinação para o amor incondicional. Como podemos imaginar, essa manutenção da ordem não dura por muito tempo; Elsa acaba por se deixar levar pelo medo de perder “o trono”, e utiliza-se de medidas drásticas para reafirmar sua posição dentro do microcosmos circense.
Temos outros personagens que também entram como guardiões da integridade física e moral de seus conterrâneos, e também guias espirituais para as mentes mais distorcidas. Jyoti Amge encarna Ma Petite, a Menor Mulher do Mundo, e talvez seja uma das criaturas mais adoráveis de toda a antologia ‘AHS’. Sua presença não é tão recorrente quanto queríamos, mas ela consegue roubar o foco principal cada vez que entra em cena – e, em ‘Freakshow’, Elsa a trata como um escape psicológico da realidade em que vive, enxergando-a como uma espécie de salvadora. Erika Ervin também faz suas pontas valerem muito a pena, dando vida a Amazon Eve, uma das reais protetoras de seu grupo, com uma incrível capacidade de discernimento e justiça.
Em suma, os personagens da quarta iteração da série são fantásticos. Mas a prática não é tão funcional assim quanto a teoria; o grande problema é a que estas incríveis e complexas criações são submetidas. Permanecendo em apenas um arco pouco delineado – que conversa diretamente com o tema principal da temporada -, eles não têm oportunidade de crescerem, enfrentarem seus obstáculos e seus medos, e encontrar um final digno. Diferentemente de ‘Asylum’ ou ‘Murder House’, que também trouxeram uma quantidade considerável de subtramas, ‘Freakshow’ falha em conseguir entregar o que promete, resolvendo as pontas soltas com os clichês do acaso e das saídas formulaicas de obras de terror.
SCHEISSE, BE MINE
As ambições correm soltas no pequeno condado de Júpiter. Seja na futura esposa de um proeminente nome do Direito, ou até mesmo o amor de dois adolescentes que não conseguem imaginar a vida sem o outro, o misticismo e o macabro sempre conseguem acompanhar os sonhos de cada um dos habitantes, polvilhando votos de esperança com suspense, drama – e sangue. É aqui que Twisty, o Palhaço (John Carroll Lynch), uma das melhores criações de Murphy e sua equipe, e também a mais desperdiçada. Desde o episódio ‘Monsters Among Us’, sua maligna e perturbada presença foi capaz de trazer à tona o mais puro asco e repulsa, e não apenas por sua caracterização essencialmente sangrenta e carregada de rancor, mas também por simbolizar os pesadelos que tínhamos quando crianças.
Este talvez seja o personagem mais contraditório da iteração – senão da franquia. Nascido com um certo atraso mental, que o impediu de desenvolver completamente as conexões psíquicas normais para o cérebro de um ser humano adulto, sua pura ingenuidade o levou a cair em armadilhas arquitetadas por seus próprios companheiros de circo, os quais fizeram-no acreditar que sua afinidade com as crianças e sua capacidade de encantá-las com a mais simples escultura com balões era, na verdade, uma inclinação em potencial para a pedofilia e para o abuso infantil. Entrando em uma crise existencial profunda, ele tenta tirar a própria vida, mas acaba falhando e passa o resto da vida alimentando um ódio contra aqueles que o maltrataram, transformando-se em um serial killer praticamente saído do mais horrendo dos sonhos.
É fácil traçar elos comparativos entre Twisty e Pennywise, a assombração da obra ‘It – A Coisa’, de Stephen King. Ambos são representações palpáveis do medo que vem como um obstáculo a ser enfrentado pelos “heróis” ou “protagonistas” da história. Entretanto, diferentemente da obra de King, o palhaço assassino em momento algum cruza caminhos com o circo comandado por Elsa. Ele encontra sua redenção de forma pouco satisfatória e no meio da temporada, dizendo adeus sem mesmo ter seu potencial explorado em completude e sendo levado por outra figura ainda mais demoníaca – Edward Mordrake (Wes Bentley), o Homem de Duas Faces que se suicidou e se tornou um coletor de almas no afterlife.
Mordrake é outro “vilão” desperdiçado e que poderia se tornar a nêmeses de mais da metade do elenco principal. Ele também é movido pela vingança, mas de um jeito distorcido e até mesmo original: ele é um ouvinte de história e procura o passado mais obscuro de suas vítimas para decidir quem fará parte de sua trupe. Suas aparições ocorrem na noite de Halloween (nada de novo no front), caso algum circo dos horrores faça apresentações ao público. É uma mitologia um tanto quanto inexplicável e que, mesmo assim, consegue criar uma atmosfera de suspense muito boa – ao menos durante alguns minutos. Nos dois episódios estrelados pelo personagens, intitulados “Edward Mordrake – Parts 1 & 2″, passamos a conhecer o passado de todas as “aberrações”, compreendendo como cada uma das lutas pela sobrevivência os uniu e constituiu uma família nada convencional.
Esperar que um monstro se vire contra o outro é meio inverossímil. Afinal, geralmente, as minorias tendem a se proteger dos perigos externos. Desse modo, é quase óbvio esperar que forças humanas e socialmente “normais” tentem desmantelar a tênue ordem que existe entre o desconhecido e o superficial. Em ‘Freakshow’, essa ameaça vem na forma de Dandy e Gloria Mott (Finn Wittrock e Frances Conroy, respectivamente). Dandy é a representação contemporânea de Édipo, portando-se como uma criança mimada que quer tudo aquilo que pede e faz de tudo para que sua mãe consiga satisfazê-lo. Apesar dos trejeitos pueris e incapacidade de aceitar um “não” como resposta, sua personalidade psicótica se eleva a um nível mortal para os integrantes do circo – culminando no assassinato de quase todos no penúltimo episódio da saga.
Denis O’Hare e Emma Roberts também dão as caras na quarta temporada de ‘AHS’, encarnando o cientista e falso produtor cinematográfico Richard Spencer e sua assistente Maggie Esmerelda. Ele é a famosa figura do charlatão e do malandro, pronto para enganar qualquer um com suas artimanhas e falcatruas – incluindo encher de esperança Bette, Dot, Elsa e qualquer outro freak que esteja disposto a imaginar uma vida melhor para si mesmo. Enquanto Richard permanece fiel a seus valores, Maggie se permite desdobrar-se em facetas que não acreditava existir em sua personalidade, primeiro fingindo ser uma vidente e depois criando laços com cada uma das aberrações do circo, percebendo que aquela era sua real família e entrando em um dos arcos de redenção mais bonitos de toda a série, até encontrar seu trágico fim numa sequência inexplicável e irritantemente sem nexo.
VÍCIO DE LINGUAGEM
‘American Horror Story: Freakshow’ tinha tudo para se tornar uma das melhores entradas da antologia, mas desperdiçou um potencial gigantesco. Não apenas pela quantidade absurda de personagens secundários que mais funcionam como tapa-buracos que qualquer coisa, mas pela falta de coerência tanto com a identidade narrativa das temporadas anteriores quanto pela resolução dos arcos.
Como já mencionado, tudo ocorre pelo acaso. Nem mesmo a incrível direção de arte, a qual resgata o teor interiorano e “pacato” das pequenas cidades dos Estados Unidos e até mesmo o embate entre conservadorismo e progresso, é capaz de ofuscar as falhas nos roteiros, o excesso transbordante do gore e do sexo, e o insatisfatório season finale, que entra como um capítulo para eliminar as peças inutilizadas e fornecer o mínimo de decência para os “favoritos”. Os erros são muitos. E são graves. Talvez seja cansaço ou talvez e a fórmula já tenha entrado em desgaste – mas que ficamos irritados, isso não tem como negar.