quarta-feira , 20 novembro , 2024

Opinião | Conferência da OTAN e ‘Dr. Fantástico’: unidos pela sátira

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Evento que acontece em junho foi carregado por um contexto quase similar ao clássico filme

No dia 14 junho ocorreu a conferência da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em que os líderes dos países membros do grupo se reuniram em Bruxelas para discutir os principais desafios internacionais da atualidade. O encontro aconteceu logo na sequência da reunião do G7, ou seja, pode ser interpretado como uma continuação de algumas tratativas iniciadas por lá, ainda que mais para fora da esfera econômica.



Entretanto, a grande expectativa ao redor dessa conferência era a preparação para o primeiro encontro do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, que ocorreu no dia 16. Tradicionalmente esse encontro se tornou um objeto de grande interesse quando alguma renovação ocorre em ambos os cargos, justamente por se tratar de duas potências políticas e militares mundiais e por toda a complexa relação entre ambos no século XX.

Ainda assim, a versão de 2021 dessa reunião foi carregada com um tom pessimista que não se via há um tempo, muito por culpa de recentes casos envolvendo embates de ambos os países no âmbito da segurança. Da interferência nas eleições norte-americanas de 2016 até episódios como o envenenamento do famoso opositor do presidente russo, Alexey Navalny, passando pela anulação de importantes acordos bilaterais (que foram firmados entre os dois países diretamente, sem mediação) sobre armamentos nucleares; inevitavelmente a relação diplomática de ambos foi sendo desgastada.

É nesse ponto baixo em que o encontro ocorre que inevitavelmente vem à cabeça a obra de Stanley Kubrick de 1964: Dr. Fantástico. Ok, épocas diferentes para geopolíticas diferentes. Tudo bem. Mesmo assim, uma recapitulação breve do enredo: no cenário da Guerra Fria as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética ficam terminantemente perigosas após as notícias de uma nova arma está sendo desenvolvida pelo governo russo. Como última esperança para evitar uma escalada na tensão, representantes de ambos os países se reúnem na sala de guerra para iniciar as tratativas.

Por meio da comédia, Kubrick mostra que a história é cíclica

Em março de 2019 foi noticiado que a Rússia estava testando novos tipos de mísseis que violavam o acordo START (no qual ambas as nações se comprometem a não expandir seu arsenal nuclear). Esse teste gerou certo mal-estar pois ele vinha logo após o rompimento de um outro tratado de armas nucleares de alcance intermediário (ou INF) que era uma tradicional conquista no âmbito de controle das armas de destruição em massa.

Essa notícia gera um paralelo interessante com a premissa do filme de Kubrick sobre uma crise que reúne ambas as potências, ou os líderes delas, em um mesmo espaço. Ainda que a reunião dos dois chefes de estado não tenha ocorrido na conferência da OTAN, não quer dizer que Biden não tenha questionado suas contrapartes a respeito do mandatário russo, fato que realmente ocorreu entre ele e a chanceler alemã Angela Merkel, por exemplo.

O palco para essa conversa ser justamente a OTAN também chama a atenção por essa ser uma organização ainda remanescente do período da Guerra Fria; quando os lados ocidentais e orientais, ambos aterrorizados com a ideia de uma invasão do outro, se organizaram em grupos para defesa mútua (a contraparte da OTAN neste quadro sendo o extinto Pacto de Varsóvia).

O grande temor e a força motora em Dr. Fantástico é sem dúvida o medo do holocausto nuclear; ele está presente ainda que mascarado com a comédia conduzida pelo ator Peter Sellers. Humor esse que foi problemático para Kubrick durante o período de escrita do roteiro, pois de maneira alguma o diretor desejava tratar um tema sério com tom humorístico. 

Sellers age como um camaleão na sátira sobre o armagedom

No artigo Dr. Strangelove (1964): Nightmare Comedy and the Ideology of Liberal Consensus, escrito por Charles Maland, é apontado justamente esse dilema criativo do realizador por meio de uma entrevista concedida pelo próprio Kubrick anteriormente. “Kubrick descreve em uma entrevista como ele lidou com suas dificuldades no roteiro: ‘me ocorreu que eu estava abordando o projeto do jeito errado. A única forma de contar a história foi como uma comédia de humor negro, ou melhor, uma comédia de pesadelo, aonde as coisas com que você mais ri são o coração da postura paradoxal que faz a guerra nuclear ser possível”.

Ainda que o ponto mais memorável do filme sejam as sequências dentro da sala de guerra, são aquelas dentro da base militar americana que parecem dialogar com a atualidade. Para fins de contextualização, enquanto os Estados Unidos estão em vias de começar uma guerra nuclear com a Rússia, descobre-se que a fatídica decisão partiu do general Ripper, alguém com nenhuma autoridade para emitir tal decisão. Kubrick brinca, então, com a ideia presente no livro que inspirou o filme (Red Alert de Peter George) sobre o quão fácil seria iniciar esse tipo de confrontação.

Ao saber da decisão, é emitida uma ordem de demover o general de seu comando e impedir o ataque, porém o comandante está intocável dentro de sua base e por ele foi dada a ordem para seus soldados executarem qualquer um que se aproxime (sob o pretexto de que seriam russos infiltrados). Um confronto entre forças do próprio governo torna-se inevitável. Esse cenário de instabilidade doméstica em muito ressoa com famoso cerco ocorrido no Capitólio em Washington D.C. em 2020.

Neste que hoje é tido como uma falha de segurança histórica em um prédio público, também é atribuída a culpa a grupos pró a (então) administração Trump. Ambos os atos de dissidência, como foi classificado o cerco, representam situações em que a estrutura social ou governamental (no caso do filme) não deram conta de uma ação divisiva, um racha no que se entende naturalmente como algo difícil de quebrar. Ainda que o objetivo de Kubrick tenha sido a criação de uma sequência cômica, mas que de alguma forma representasse a instabilidade política repentina, o que aconteceu na realidade indica rachaduras sérias na estrutura social do país.

Por fim, o clímax de Dr. Fantástico não poderia ser outro senão a destruição causada de livre e espontânea vontade por humanos; um final sombrio perfeito para uma comédia de humor ácido. Já para a história real, apesar dessa ser uma incógnita (a expansão de democracias liberais no pós Guerra Fria não representou a estagnação social, ao contrário do que pregou Francis Fukuyama), é interessante perceber como eventos satíricos de uma obra de 1964 dialogam com certa concordância com outros ocorridos mais de meio século depois.

Os contextos são obviamente diferentes, aquele representado na película prega pela ironia ao terror vermelho e guerra nuclear, enquanto que a instabilidade atual nas relações EUA\Rússia\China provém de disputas econômicas e fragilidade de modelos políticos tradicionais. A história, no entanto, não deixa de ser cíclica e a comédia sempre se prova mais ciente dessa natureza do que se suspeita à princípio. 

 

 

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Entretanto, a grande expectativa ao redor dessa conferência era a preparação para o primeiro encontro do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, que ocorreu no dia 16. Tradicionalmente esse encontro se tornou um objeto de grande interesse quando alguma renovação ocorre em ambos os cargos, justamente por se tratar de duas potências políticas e militares mundiais e por toda a complexa relação entre ambos no século XX.

Ainda assim, a versão de 2021 dessa reunião foi carregada com um tom pessimista que não se via há um tempo, muito por culpa de recentes casos envolvendo embates de ambos os países no âmbito da segurança. Da interferência nas eleições norte-americanas de 2016 até episódios como o envenenamento do famoso opositor do presidente russo, Alexey Navalny, passando pela anulação de importantes acordos bilaterais (que foram firmados entre os dois países diretamente, sem mediação) sobre armamentos nucleares; inevitavelmente a relação diplomática de ambos foi sendo desgastada.

É nesse ponto baixo em que o encontro ocorre que inevitavelmente vem à cabeça a obra de Stanley Kubrick de 1964: Dr. Fantástico. Ok, épocas diferentes para geopolíticas diferentes. Tudo bem. Mesmo assim, uma recapitulação breve do enredo: no cenário da Guerra Fria as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética ficam terminantemente perigosas após as notícias de uma nova arma está sendo desenvolvida pelo governo russo. Como última esperança para evitar uma escalada na tensão, representantes de ambos os países se reúnem na sala de guerra para iniciar as tratativas.

Por meio da comédia, Kubrick mostra que a história é cíclica

Em março de 2019 foi noticiado que a Rússia estava testando novos tipos de mísseis que violavam o acordo START (no qual ambas as nações se comprometem a não expandir seu arsenal nuclear). Esse teste gerou certo mal-estar pois ele vinha logo após o rompimento de um outro tratado de armas nucleares de alcance intermediário (ou INF) que era uma tradicional conquista no âmbito de controle das armas de destruição em massa.

Essa notícia gera um paralelo interessante com a premissa do filme de Kubrick sobre uma crise que reúne ambas as potências, ou os líderes delas, em um mesmo espaço. Ainda que a reunião dos dois chefes de estado não tenha ocorrido na conferência da OTAN, não quer dizer que Biden não tenha questionado suas contrapartes a respeito do mandatário russo, fato que realmente ocorreu entre ele e a chanceler alemã Angela Merkel, por exemplo.

O palco para essa conversa ser justamente a OTAN também chama a atenção por essa ser uma organização ainda remanescente do período da Guerra Fria; quando os lados ocidentais e orientais, ambos aterrorizados com a ideia de uma invasão do outro, se organizaram em grupos para defesa mútua (a contraparte da OTAN neste quadro sendo o extinto Pacto de Varsóvia).

O grande temor e a força motora em Dr. Fantástico é sem dúvida o medo do holocausto nuclear; ele está presente ainda que mascarado com a comédia conduzida pelo ator Peter Sellers. Humor esse que foi problemático para Kubrick durante o período de escrita do roteiro, pois de maneira alguma o diretor desejava tratar um tema sério com tom humorístico. 

Sellers age como um camaleão na sátira sobre o armagedom

No artigo Dr. Strangelove (1964): Nightmare Comedy and the Ideology of Liberal Consensus, escrito por Charles Maland, é apontado justamente esse dilema criativo do realizador por meio de uma entrevista concedida pelo próprio Kubrick anteriormente. “Kubrick descreve em uma entrevista como ele lidou com suas dificuldades no roteiro: ‘me ocorreu que eu estava abordando o projeto do jeito errado. A única forma de contar a história foi como uma comédia de humor negro, ou melhor, uma comédia de pesadelo, aonde as coisas com que você mais ri são o coração da postura paradoxal que faz a guerra nuclear ser possível”.

Ainda que o ponto mais memorável do filme sejam as sequências dentro da sala de guerra, são aquelas dentro da base militar americana que parecem dialogar com a atualidade. Para fins de contextualização, enquanto os Estados Unidos estão em vias de começar uma guerra nuclear com a Rússia, descobre-se que a fatídica decisão partiu do general Ripper, alguém com nenhuma autoridade para emitir tal decisão. Kubrick brinca, então, com a ideia presente no livro que inspirou o filme (Red Alert de Peter George) sobre o quão fácil seria iniciar esse tipo de confrontação.

Ao saber da decisão, é emitida uma ordem de demover o general de seu comando e impedir o ataque, porém o comandante está intocável dentro de sua base e por ele foi dada a ordem para seus soldados executarem qualquer um que se aproxime (sob o pretexto de que seriam russos infiltrados). Um confronto entre forças do próprio governo torna-se inevitável. Esse cenário de instabilidade doméstica em muito ressoa com famoso cerco ocorrido no Capitólio em Washington D.C. em 2020.

Neste que hoje é tido como uma falha de segurança histórica em um prédio público, também é atribuída a culpa a grupos pró a (então) administração Trump. Ambos os atos de dissidência, como foi classificado o cerco, representam situações em que a estrutura social ou governamental (no caso do filme) não deram conta de uma ação divisiva, um racha no que se entende naturalmente como algo difícil de quebrar. Ainda que o objetivo de Kubrick tenha sido a criação de uma sequência cômica, mas que de alguma forma representasse a instabilidade política repentina, o que aconteceu na realidade indica rachaduras sérias na estrutura social do país.

Por fim, o clímax de Dr. Fantástico não poderia ser outro senão a destruição causada de livre e espontânea vontade por humanos; um final sombrio perfeito para uma comédia de humor ácido. Já para a história real, apesar dessa ser uma incógnita (a expansão de democracias liberais no pós Guerra Fria não representou a estagnação social, ao contrário do que pregou Francis Fukuyama), é interessante perceber como eventos satíricos de uma obra de 1964 dialogam com certa concordância com outros ocorridos mais de meio século depois.

Os contextos são obviamente diferentes, aquele representado na película prega pela ironia ao terror vermelho e guerra nuclear, enquanto que a instabilidade atual nas relações EUA\Rússia\China provém de disputas econômicas e fragilidade de modelos políticos tradicionais. A história, no entanto, não deixa de ser cíclica e a comédia sempre se prova mais ciente dessa natureza do que se suspeita à princípio. 

 

 

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