sábado , 23 novembro , 2024

Opinião | Machismo? Cansaço? O que está implícito no desinteresse em ‘As Marvels’?

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As Marvels chegou aos cinemas do mundo e caminha para ser um dos maiores fracassos de todo o Universo Cinematográfico Marvel, podendo até mesmo superar o discutível O Incrível Hulk (2008), que detém a pior bilheteria do MCU até hoje, tendo arrecadado apenas 264 milhões de dólares. Inicialmente, esse valor baixíssimo para um filme de filme de super-heróis parecia ser insuperável. Afinal, a Marvel havia chegado a um ponto de credibilidade que, para muitos, bastava colocar o selo da empresa em qualquer produção para que o filme virasse um ‘produto’ vendável. No entanto, os números de arrecadação do primeiro fim de semana de As Marvels deve ter ligado um alerta nos executivos. Isso porque, com aproximadamente 47 milhões de dólares arrecadados em seu primeiro final de semana nos EUA, o filme conseguiu fazer menos dinheiro na estreia que o filme do Hulk, que virou seu primeiro fim de semana, na época, com pouco mais de US$ 55 milhões.

15 anos depois, o ‘fantasma do fracasso’ de ‘O Incrível Hulk’ pode ser exorcizado com novo fracasso da Marvel nos cinemas

E a situação de As Marvels é realmente preocupante para o estúdio, porque o longa arrecadou, até segunda-feira (13), pouco mais de US$ 111 milhões mundialmente. Aproximadamente a metade do valor de custo do filme. Segundo projeções do Collider, o valor mínimo de bilheteria que As Marvels precisa fazer para não dar prejuízo é algo em torno de 440 milhões de dólares. Parece muito pouco provável, ainda mais agora com a estreia de Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, que promete dominar o interesse do público jovem/ adulto nas próximas semanas.



Mas o que está por trás desse fracasso retumbante da Marvel Studios?

Desde o primeiro filme, em um movimento assustador de parte dos fãs, ocorre um boicote injustificável na franquia. Na época da promoção de Capitã Marvel (2019), entrevistas fora de contexto da atriz Brie Larson, afirmando que sua personagem era a ‘Vingadora mais forte’ – algo confirmado nos quadrinhos desde 2012, quando Carol Danvers assumiu o manto de Capitã Marvel, foram disseminadas em fóruns on-line, causando a ira de um grupo de fãs. E por mais bizarro que seja ver adultos revoltados por falarem que há outro super-herói mais forte que o seu favorito, isso realmente aconteceu. O resultado foi uma chuva de comentários preconceituosos nas redes sociais da Brie Larson, que se afastou delas por um tempo.

Além disso, começou uma chuva de ódio tenebrosa porque sua personagem “não sorria”. Aqui no Brasil, essa crítica pode não parecer tão estranha assim, porque remonta a um tipo de assédio diferente. Nos EUA, é quase como uma ‘cantada de pedreiro’ pedir para um mulher sorrir para os caras, como se elas devessem estar felizes por estarem sendo incomodadas. Isso rendeu até mesmo uma piada desconfortável em Barbie (2023). É difícil achar um equivalente nacional, mas seria algo como reclamar de uma mulher que achou ruim ser chamada de ‘gostosa’ na rua. Por isso, esse incômodo com a personagem não ficar de gracinha nem “sorrindo pra todos” é tão idiota. Ainda mais quando se lê as HQs, porque Carol é uma militar marrenta, extremamente poderosa e com problemas de alcoolismo. É óbvio que ela não vai sair por aí sorrindo e fazendo palhaçada que nem estrela de série adolescente do Disney Channel.

O mais interessante disso tudo, porém, é que mesmo com o boicote dessa pequena parte de supostos fãs, o filme foi um sucesso comercial enorme. A bilheteria final fez mais de 1.1 bilhão de dólares, fazendo dela a oitava maior arrecadação de todo o MCU. Obviamente, o longa se aproveitou do gancho de ter saído entre Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Vingadores: Ultimato (2019). Mas atribuir o sucesso a isso é fechar os olhos para os números. Afinal, Homem-Formiga e a Vespa (2018), que vinha do bem-sucedido Homem-Formiga (2015), também foi lançado nesse intervalo e passou muito longe de superar a marca do bilhão.

Sem contar que costuma existir um padrão em bilheterias de grandes franquias. Normalmente, o sucesso de um filme de franquia é um dos fatores que reflete diretamente no longa seguinte. Então, era esperado que o segundo filme do Homem-Formiga recebesse um boost pelo sucesso de Guerra Infinita, que foi um sucesso de público e crítica. Por outro lado, a recepção morna de Homem-Formiga e a Vespa deveria impactar negativamente em Capitã Marvel, mas isso não ocorreu. O ponto é que reduzir o valor do primeiro capítulo da história de Carol Danvers a filmes alheios é uma pós-verdade. Um discurso vazio que tenta inconscientemente legitimar alguns papos errados.

Isso posto, As Marvels surge em um momento delicado não apenas para a empresa, mas para todos os estúdios que apostam em filmes estrelados por super-heróis. Após 15 anos dominando as críticas e o público, esse subgênero começou a dar seus sinais de desgaste. Nos últimos três anos, ainda havia a justificativa da pandemia ter fechado os cinemas do mundo para tentar explicar as baixas bilheterias, só que agora não tem mais SARSCoV-2 se proliferando a níveis alarmantes para usar como desculpa para pouca arrecadação. Agora é incompetência.

E o estúdio lançar um filme que tenha desempenho ainda pior que longas lançados no meio da pandemia, quando as pessoas literalmente colocavam suas vidas em risco ao sair de casa pra ver um boneco de CGI pulando em tela, é um vexame. Não tem outra palavra que defina melhor. É um erro de planejamento terrível do estúdio que começou a bombardear o público com um caminhão de produções que em vez de ajudar a atrair o interesse do povo, só afastou a galera de um mundo em expansão.

Cansaço dos filmes de super-heróis?

Há quem atribua o fracasso de As Marvels à ‘fadiga dos super-heróis’. Mas vale ressaltar que esse papo circula no meio do cinema desde 2013. Na época, era dito que o público se cansaria dos heróis depois de Os Vingadores (2012), porque nada superaria aquela experiência e tudo que viesse depois não faria sentido, já que os heróis agora se conheciam e poderiam chamar os outros para ajudar. E no ano seguinte, o fracasso de crítica de Homem de Ferro 3 e Thor: O Mundo Sombrio acendeu essa história de ‘fadiga’ para tentar legitimar o discurso daqueles que não gostavam desse tipo de produção. Vale dizer que a terceira aventura de Tony Stark também fez mais de um bilhão de dólares em bilheteria, refletindo também o sucesso de Vingadores, mas principalmente pelo interesse do público no personagem.

Entretanto, esse papinho de cansaço foi pelo ralo no ano seguinte. Com duas produções que figuram entre as favoritas dos fãs até hoje, Capitão América: O Soldado Invernal e Guardiões da Galáxia, o MCU ‘voltou’ com força total, trazendo o núcleo espacial para as telas e mostrando que as pessoas estavam cansadas de filmes ruins, não de super-heróis.

Marvel Studios. © 2022 MARVEL.

E com o fim da chamada Saga do Infinito, essa teoria vem sendo posta à prova a cada novo filme. Nos últimos anos, apenas os longas com qualidade inquestionável vêm se destacando. O diferente chama atenção do povo e nesse meio, a originalidade é o maior diferencial. Não à toa, apenas dois filmes com super-heróis realmente se destacaram em 2023. Neste ano, o público foi exposto a Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania, Shazam! Fúria dos Deuses, Guardiões da Galáxia Vol.3, Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, The Flash, Besouro Azul e As Marvels. E ainda falta Aquaman e o Reino Perdido.

Desses, até o momento, apenas Guardiões e Aranhaverso foram unanimidades. Com tramas centradas em seus próprios núcleos, os longas trouxeram boas histórias, personagens carismáticos, estéticas próprias e perpassaram o carinho de seus realizadores para o público. Por outro lado, até mesmo filmes que passam longe da ruindade, como Besouro Azul – que é divertidíssimo, não foram bem por se apoiarem em fatores genéricos, seja a estética, o roteiro e afins. O público quer um pouco mais de ousadia, porque se tem algo que esses anos de lockdown mostraram é que tempo é valioso e não dá pra desperdiçá-lo em mais do mesmo. E por mais que não tenha achado As Marvels um filme ruim, é inegável que ele é genérico. Uma aventura bobinha com cara de ‘Fase Um’, que você assiste, dá umas risadas e esquece dois dias depois. É algo que não cabe mais. Essa sensação de ver uma obra descartável não tem mais espaço.

Luz no fim do túnel?

E muito desse fracasso se dá pelo planejamento tenebroso da ‘Fase Quatro’ da Marvel nos cinemas. Nas três fases anteriores, os filmes respondiam a uma luz no fim do túnel. Na ‘Fase Um’, essa luz era a formação dos Vingadores. Então, o público comprava a ideia até mesmo de filmes horrorosos (sim, estou falando de você, Thor) por saber que ele traria elementos e poderia somar a experiência de ver os heróis se unindo em tela. Nas Fases Dois e Três, a tal luz era a chegada de Thanos (Josh Brolin). Num plano ainda mais ousado, a Marvel trouxe esse amontoado de heróis aparecendo e interagindo brevemente com a promessa de um grande encontro que ‘compensaria’ o público ao fim de tudo.

E qual a ‘Luz no fim do túnel’ da ‘Fase Quatro’? Não teve. Com filmes isolados e a chegada das séries, não houve um grande evento que agrupasse a galera nova que chegou ao MCU. Na verdade, a introdução do Multiverso acabou criando um evento no meio da tal Fase Quatro, que foi Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa (2021). O filme foi um sucesso de público e crítica, mas veio no meio da fase. Assim, tudo que veio depois não chegou nem perto de fazer o mesmo barulho. Ficou aquele clima de fim de festa.

Para complicar ainda mais a situação, a Marvel decidiu não repetir o erro, mas tentar erros novos. Na ‘Fase Cinco’, o grande vilão, a ‘luz no fim do túnel’, seria Kang, o Conquistador (Jonathan Majors), a ameaça dos próximos dois filmes dos Vingadores. Após uma breve introdução na série Loki (2021), a variante mais famosa do malfeitor foi anunciada como o antagonista do terceiro filme do Homem-Formiga, abrindo a ‘Fase Cinco’… Com todo o respeito ao herói diminuto, mas o estúdio colocar o malvadão da vez para apanhar de um bando de formiguinhas em um filme pavoroso, abrindo a nova fase foi injustificável.

Vamos supor que numa realidade alternativa Quantumania foi um sucesso. Como a Marvel planejava manter o interesse do público na trama de Kang lançando mais dois filmes que sequer fizeram menção a ele depois? Isso reflete a falta de direcionamento que marcou essas duas últimas fases. A impressão é que o estúdio atirou para todos os lados, enquanto torcia para que algum deles acertasse o alvo. Seria mais justo se eles anunciassem que o grande vilão dessa nova ‘era’ é o Multiverso. Dessa forma, talvez o público se interessasse mais, já que é a única coisa comum a 80% das produções atuais, incluindo o final de As Marvels. Porém, venderam a imagem de Kang e trabalharam o personagem de forma porca. E ainda se complicaram porque o ator que o interpreta se envolveu em uma polêmica ainda não resolvida que certamente está fazendo o Kevin Feige arrancar os poucos cabelos que restam embaixo do boné.

O tiro no pé

Foto: Laura Radford. © 2023 MARVEL.

Por fim, As Marvels é o reflexo do grande tiro no pé da Marvel pós-Saga do Infinito. É possível que agora haja mesmo um certo tipo de cansaço do público, que não consome mais qualquer coisa que seja lançada com o selo da Marvel ou da DC. E muito disso vem de uma superexposição que realmente desanimou e afastou o público dessas produções: as séries do Disney+. Por mais que o filme explique brevemente as histórias de Kamala Khan (Iman Vellani) e Monica Rambeau (Teyonah Parris), as duas foram introduzidas em seriados feitos para o streaming. Uma em Ms. Marvel e a outra em WandaVision.

Apenas na Fase Quatro, foram lançadas nove séries e sete filmes. Em nível de comparação, as Fases Um e Dois tiveram seis filmes, cada. A Fase Três teve 11 filmes. Em apenas uma fase, a Marvel lançou uma porção de seriados, lançados praticamente de forma trimestral, bombardeando o público com vários conteúdos que não se comunicam e parecem não se entender como produção, já que a maioria das séries foi construída como filmes de seis horas, e foram picotando as partes para formar episódios. Com isso, o próprio estúdio quebrou a aura de “evento” de suas produções. Quando saía um filme da Marvel nos cinemas, o público organizava sua agenda para conferir o ‘próximo sucesso Marvel’. Com uma série saindo atrás da outra, o selo foi banalizado. E isso é tão nítido que até mesmo funcionários da Marvel assumiram estarem perdidos. O time de roteiro de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022) confessou que não sabia como era o final de WandaVision quando escreveram a sequência do Mago Supremo. O resultado foi a repetição do arco de luto da Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), concluído no fim da série, sendo corrompido no filme.

Em As Marvels, enfim acontece a união das séries e filmes, mas chega em um momento em que boa parte do público fiel largou os seriados de mão. E mesmo que algumas produções muito boas estejam chegando, como a segunda temporada de Loki, a galera perdeu a vontade de acompanhar. E partindo desse preceito que as séries viraram algo muito de nicho, é difícil de promover o interesse do grande público acerca de personagens que não chegaram ao povo. Não é absurdo dizer que a Disney criou seu próprio demônio, e agora não está conseguindo lidar bem com ele. Um sinal de que isso realmente chegou aos executivos é o número de produções que serão lançadas ano que vem. Há algumas séries que chegarão ao streaming, mantendo o nicho fiel, mas seus lançamentos no cinema, mirando o grande público, foram praticamente todos atrasados, deixando apenas Deadpool 3, que tem ares de filme evento, para dar um gostinho do que esperar dos próximos lançamentos. Mais do que deixar o espectador descansar, a Marvel vai tentar fazer com que ele sinta falta dos filmes.

Obviamente, falar do fracasso de As Marvels recai também sobre a Greve da SAG-AFTRA de 2023, a Greve dos Atores de Hollywood. Reivindicando direitos mais do que justos, atores, roteiristas e diretores combinaram de não gravar ou promover filmes e séries até que suas demandas fossem atendidas. Ou seja, não houve coletivas ou junkets para divulgar As Marvels. Mas isso é apenas um dos fatores. Também é meio absurdo atribuir o fracasso do filme ao machismo, já que Capitã Marvel também sofreu uma onda de ódio completamente desproporcional e foi um sucesso. Atribuir o fracasso a um grupo tão pequeno e irrelevante assim é dar a eles uma vitória que nunca tiveram, vide também o fenômeno Barbie. O fracasso de As Marvels é recai todo sobre a própria Marvel, que perdeu a mão e num golpe ambicioso até demais deu um passo maior que a perna, subestimando seu público, desgastando a própria marca e transformando seu elogiadíssimo planejamento em um grande saco de gatos. Uma pena.

Marvel Studios. © 2023 MARVEL.

O divertido As Marvels está em cartaz nos cinemas.

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Pedro Sobreirohttp://cinepop.com.br/
Jornalista apaixonado por entretenimento, com passagens por sites, revistas e emissoras como repórter, crítico e produtor.

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As Marvels chegou aos cinemas do mundo e caminha para ser um dos maiores fracassos de todo o Universo Cinematográfico Marvel, podendo até mesmo superar o discutível O Incrível Hulk (2008), que detém a pior bilheteria do MCU até hoje, tendo arrecadado apenas 264 milhões de dólares. Inicialmente, esse valor baixíssimo para um filme de filme de super-heróis parecia ser insuperável. Afinal, a Marvel havia chegado a um ponto de credibilidade que, para muitos, bastava colocar o selo da empresa em qualquer produção para que o filme virasse um ‘produto’ vendável. No entanto, os números de arrecadação do primeiro fim de semana de As Marvels deve ter ligado um alerta nos executivos. Isso porque, com aproximadamente 47 milhões de dólares arrecadados em seu primeiro final de semana nos EUA, o filme conseguiu fazer menos dinheiro na estreia que o filme do Hulk, que virou seu primeiro fim de semana, na época, com pouco mais de US$ 55 milhões.

15 anos depois, o ‘fantasma do fracasso’ de ‘O Incrível Hulk’ pode ser exorcizado com novo fracasso da Marvel nos cinemas

E a situação de As Marvels é realmente preocupante para o estúdio, porque o longa arrecadou, até segunda-feira (13), pouco mais de US$ 111 milhões mundialmente. Aproximadamente a metade do valor de custo do filme. Segundo projeções do Collider, o valor mínimo de bilheteria que As Marvels precisa fazer para não dar prejuízo é algo em torno de 440 milhões de dólares. Parece muito pouco provável, ainda mais agora com a estreia de Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, que promete dominar o interesse do público jovem/ adulto nas próximas semanas.

Mas o que está por trás desse fracasso retumbante da Marvel Studios?

Desde o primeiro filme, em um movimento assustador de parte dos fãs, ocorre um boicote injustificável na franquia. Na época da promoção de Capitã Marvel (2019), entrevistas fora de contexto da atriz Brie Larson, afirmando que sua personagem era a ‘Vingadora mais forte’ – algo confirmado nos quadrinhos desde 2012, quando Carol Danvers assumiu o manto de Capitã Marvel, foram disseminadas em fóruns on-line, causando a ira de um grupo de fãs. E por mais bizarro que seja ver adultos revoltados por falarem que há outro super-herói mais forte que o seu favorito, isso realmente aconteceu. O resultado foi uma chuva de comentários preconceituosos nas redes sociais da Brie Larson, que se afastou delas por um tempo.

Além disso, começou uma chuva de ódio tenebrosa porque sua personagem “não sorria”. Aqui no Brasil, essa crítica pode não parecer tão estranha assim, porque remonta a um tipo de assédio diferente. Nos EUA, é quase como uma ‘cantada de pedreiro’ pedir para um mulher sorrir para os caras, como se elas devessem estar felizes por estarem sendo incomodadas. Isso rendeu até mesmo uma piada desconfortável em Barbie (2023). É difícil achar um equivalente nacional, mas seria algo como reclamar de uma mulher que achou ruim ser chamada de ‘gostosa’ na rua. Por isso, esse incômodo com a personagem não ficar de gracinha nem “sorrindo pra todos” é tão idiota. Ainda mais quando se lê as HQs, porque Carol é uma militar marrenta, extremamente poderosa e com problemas de alcoolismo. É óbvio que ela não vai sair por aí sorrindo e fazendo palhaçada que nem estrela de série adolescente do Disney Channel.

O mais interessante disso tudo, porém, é que mesmo com o boicote dessa pequena parte de supostos fãs, o filme foi um sucesso comercial enorme. A bilheteria final fez mais de 1.1 bilhão de dólares, fazendo dela a oitava maior arrecadação de todo o MCU. Obviamente, o longa se aproveitou do gancho de ter saído entre Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Vingadores: Ultimato (2019). Mas atribuir o sucesso a isso é fechar os olhos para os números. Afinal, Homem-Formiga e a Vespa (2018), que vinha do bem-sucedido Homem-Formiga (2015), também foi lançado nesse intervalo e passou muito longe de superar a marca do bilhão.

Sem contar que costuma existir um padrão em bilheterias de grandes franquias. Normalmente, o sucesso de um filme de franquia é um dos fatores que reflete diretamente no longa seguinte. Então, era esperado que o segundo filme do Homem-Formiga recebesse um boost pelo sucesso de Guerra Infinita, que foi um sucesso de público e crítica. Por outro lado, a recepção morna de Homem-Formiga e a Vespa deveria impactar negativamente em Capitã Marvel, mas isso não ocorreu. O ponto é que reduzir o valor do primeiro capítulo da história de Carol Danvers a filmes alheios é uma pós-verdade. Um discurso vazio que tenta inconscientemente legitimar alguns papos errados.

Isso posto, As Marvels surge em um momento delicado não apenas para a empresa, mas para todos os estúdios que apostam em filmes estrelados por super-heróis. Após 15 anos dominando as críticas e o público, esse subgênero começou a dar seus sinais de desgaste. Nos últimos três anos, ainda havia a justificativa da pandemia ter fechado os cinemas do mundo para tentar explicar as baixas bilheterias, só que agora não tem mais SARSCoV-2 se proliferando a níveis alarmantes para usar como desculpa para pouca arrecadação. Agora é incompetência.

E o estúdio lançar um filme que tenha desempenho ainda pior que longas lançados no meio da pandemia, quando as pessoas literalmente colocavam suas vidas em risco ao sair de casa pra ver um boneco de CGI pulando em tela, é um vexame. Não tem outra palavra que defina melhor. É um erro de planejamento terrível do estúdio que começou a bombardear o público com um caminhão de produções que em vez de ajudar a atrair o interesse do povo, só afastou a galera de um mundo em expansão.

Cansaço dos filmes de super-heróis?

Há quem atribua o fracasso de As Marvels à ‘fadiga dos super-heróis’. Mas vale ressaltar que esse papo circula no meio do cinema desde 2013. Na época, era dito que o público se cansaria dos heróis depois de Os Vingadores (2012), porque nada superaria aquela experiência e tudo que viesse depois não faria sentido, já que os heróis agora se conheciam e poderiam chamar os outros para ajudar. E no ano seguinte, o fracasso de crítica de Homem de Ferro 3 e Thor: O Mundo Sombrio acendeu essa história de ‘fadiga’ para tentar legitimar o discurso daqueles que não gostavam desse tipo de produção. Vale dizer que a terceira aventura de Tony Stark também fez mais de um bilhão de dólares em bilheteria, refletindo também o sucesso de Vingadores, mas principalmente pelo interesse do público no personagem.

Entretanto, esse papinho de cansaço foi pelo ralo no ano seguinte. Com duas produções que figuram entre as favoritas dos fãs até hoje, Capitão América: O Soldado Invernal e Guardiões da Galáxia, o MCU ‘voltou’ com força total, trazendo o núcleo espacial para as telas e mostrando que as pessoas estavam cansadas de filmes ruins, não de super-heróis.

Marvel Studios. © 2022 MARVEL.

E com o fim da chamada Saga do Infinito, essa teoria vem sendo posta à prova a cada novo filme. Nos últimos anos, apenas os longas com qualidade inquestionável vêm se destacando. O diferente chama atenção do povo e nesse meio, a originalidade é o maior diferencial. Não à toa, apenas dois filmes com super-heróis realmente se destacaram em 2023. Neste ano, o público foi exposto a Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania, Shazam! Fúria dos Deuses, Guardiões da Galáxia Vol.3, Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, The Flash, Besouro Azul e As Marvels. E ainda falta Aquaman e o Reino Perdido.

Desses, até o momento, apenas Guardiões e Aranhaverso foram unanimidades. Com tramas centradas em seus próprios núcleos, os longas trouxeram boas histórias, personagens carismáticos, estéticas próprias e perpassaram o carinho de seus realizadores para o público. Por outro lado, até mesmo filmes que passam longe da ruindade, como Besouro Azul – que é divertidíssimo, não foram bem por se apoiarem em fatores genéricos, seja a estética, o roteiro e afins. O público quer um pouco mais de ousadia, porque se tem algo que esses anos de lockdown mostraram é que tempo é valioso e não dá pra desperdiçá-lo em mais do mesmo. E por mais que não tenha achado As Marvels um filme ruim, é inegável que ele é genérico. Uma aventura bobinha com cara de ‘Fase Um’, que você assiste, dá umas risadas e esquece dois dias depois. É algo que não cabe mais. Essa sensação de ver uma obra descartável não tem mais espaço.

Luz no fim do túnel?

E muito desse fracasso se dá pelo planejamento tenebroso da ‘Fase Quatro’ da Marvel nos cinemas. Nas três fases anteriores, os filmes respondiam a uma luz no fim do túnel. Na ‘Fase Um’, essa luz era a formação dos Vingadores. Então, o público comprava a ideia até mesmo de filmes horrorosos (sim, estou falando de você, Thor) por saber que ele traria elementos e poderia somar a experiência de ver os heróis se unindo em tela. Nas Fases Dois e Três, a tal luz era a chegada de Thanos (Josh Brolin). Num plano ainda mais ousado, a Marvel trouxe esse amontoado de heróis aparecendo e interagindo brevemente com a promessa de um grande encontro que ‘compensaria’ o público ao fim de tudo.

E qual a ‘Luz no fim do túnel’ da ‘Fase Quatro’? Não teve. Com filmes isolados e a chegada das séries, não houve um grande evento que agrupasse a galera nova que chegou ao MCU. Na verdade, a introdução do Multiverso acabou criando um evento no meio da tal Fase Quatro, que foi Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa (2021). O filme foi um sucesso de público e crítica, mas veio no meio da fase. Assim, tudo que veio depois não chegou nem perto de fazer o mesmo barulho. Ficou aquele clima de fim de festa.

Para complicar ainda mais a situação, a Marvel decidiu não repetir o erro, mas tentar erros novos. Na ‘Fase Cinco’, o grande vilão, a ‘luz no fim do túnel’, seria Kang, o Conquistador (Jonathan Majors), a ameaça dos próximos dois filmes dos Vingadores. Após uma breve introdução na série Loki (2021), a variante mais famosa do malfeitor foi anunciada como o antagonista do terceiro filme do Homem-Formiga, abrindo a ‘Fase Cinco’… Com todo o respeito ao herói diminuto, mas o estúdio colocar o malvadão da vez para apanhar de um bando de formiguinhas em um filme pavoroso, abrindo a nova fase foi injustificável.

Vamos supor que numa realidade alternativa Quantumania foi um sucesso. Como a Marvel planejava manter o interesse do público na trama de Kang lançando mais dois filmes que sequer fizeram menção a ele depois? Isso reflete a falta de direcionamento que marcou essas duas últimas fases. A impressão é que o estúdio atirou para todos os lados, enquanto torcia para que algum deles acertasse o alvo. Seria mais justo se eles anunciassem que o grande vilão dessa nova ‘era’ é o Multiverso. Dessa forma, talvez o público se interessasse mais, já que é a única coisa comum a 80% das produções atuais, incluindo o final de As Marvels. Porém, venderam a imagem de Kang e trabalharam o personagem de forma porca. E ainda se complicaram porque o ator que o interpreta se envolveu em uma polêmica ainda não resolvida que certamente está fazendo o Kevin Feige arrancar os poucos cabelos que restam embaixo do boné.

O tiro no pé

Foto: Laura Radford. © 2023 MARVEL.

Por fim, As Marvels é o reflexo do grande tiro no pé da Marvel pós-Saga do Infinito. É possível que agora haja mesmo um certo tipo de cansaço do público, que não consome mais qualquer coisa que seja lançada com o selo da Marvel ou da DC. E muito disso vem de uma superexposição que realmente desanimou e afastou o público dessas produções: as séries do Disney+. Por mais que o filme explique brevemente as histórias de Kamala Khan (Iman Vellani) e Monica Rambeau (Teyonah Parris), as duas foram introduzidas em seriados feitos para o streaming. Uma em Ms. Marvel e a outra em WandaVision.

Apenas na Fase Quatro, foram lançadas nove séries e sete filmes. Em nível de comparação, as Fases Um e Dois tiveram seis filmes, cada. A Fase Três teve 11 filmes. Em apenas uma fase, a Marvel lançou uma porção de seriados, lançados praticamente de forma trimestral, bombardeando o público com vários conteúdos que não se comunicam e parecem não se entender como produção, já que a maioria das séries foi construída como filmes de seis horas, e foram picotando as partes para formar episódios. Com isso, o próprio estúdio quebrou a aura de “evento” de suas produções. Quando saía um filme da Marvel nos cinemas, o público organizava sua agenda para conferir o ‘próximo sucesso Marvel’. Com uma série saindo atrás da outra, o selo foi banalizado. E isso é tão nítido que até mesmo funcionários da Marvel assumiram estarem perdidos. O time de roteiro de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022) confessou que não sabia como era o final de WandaVision quando escreveram a sequência do Mago Supremo. O resultado foi a repetição do arco de luto da Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), concluído no fim da série, sendo corrompido no filme.

Em As Marvels, enfim acontece a união das séries e filmes, mas chega em um momento em que boa parte do público fiel largou os seriados de mão. E mesmo que algumas produções muito boas estejam chegando, como a segunda temporada de Loki, a galera perdeu a vontade de acompanhar. E partindo desse preceito que as séries viraram algo muito de nicho, é difícil de promover o interesse do grande público acerca de personagens que não chegaram ao povo. Não é absurdo dizer que a Disney criou seu próprio demônio, e agora não está conseguindo lidar bem com ele. Um sinal de que isso realmente chegou aos executivos é o número de produções que serão lançadas ano que vem. Há algumas séries que chegarão ao streaming, mantendo o nicho fiel, mas seus lançamentos no cinema, mirando o grande público, foram praticamente todos atrasados, deixando apenas Deadpool 3, que tem ares de filme evento, para dar um gostinho do que esperar dos próximos lançamentos. Mais do que deixar o espectador descansar, a Marvel vai tentar fazer com que ele sinta falta dos filmes.

Obviamente, falar do fracasso de As Marvels recai também sobre a Greve da SAG-AFTRA de 2023, a Greve dos Atores de Hollywood. Reivindicando direitos mais do que justos, atores, roteiristas e diretores combinaram de não gravar ou promover filmes e séries até que suas demandas fossem atendidas. Ou seja, não houve coletivas ou junkets para divulgar As Marvels. Mas isso é apenas um dos fatores. Também é meio absurdo atribuir o fracasso do filme ao machismo, já que Capitã Marvel também sofreu uma onda de ódio completamente desproporcional e foi um sucesso. Atribuir o fracasso a um grupo tão pequeno e irrelevante assim é dar a eles uma vitória que nunca tiveram, vide também o fenômeno Barbie. O fracasso de As Marvels é recai todo sobre a própria Marvel, que perdeu a mão e num golpe ambicioso até demais deu um passo maior que a perna, subestimando seu público, desgastando a própria marca e transformando seu elogiadíssimo planejamento em um grande saco de gatos. Uma pena.

Marvel Studios. © 2023 MARVEL.

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Pedro Sobreirohttp://cinepop.com.br/
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