quinta-feira , 21 novembro , 2024

[OPINIÃO] Nova ferramenta da Netflix é um desserviço ao Cinema

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O site TheVerge noticiou que a Netflix vai lançar uma nova ferramenta que permite aos seus usuários controlar a velocidade com que se assiste a um filme ou uma série. Com o controle de velocidade, o assinante poderá assistir a um filme 1,25x ou 1,5x mais rápido que o normal, ou desacelerar e assisti-lo 0,5x ou 0,75x mais devagar. A ferramenta já existe no YouTube e faz sucesso nos podcasts. Porém, estamos falando de filmes, o que é completamente diferente.

Clássico imortal do cinema, “2001: Uma Odisseia no Espaço” é um filme de grande duração, mas esse tempo é necessário para a compreensão da filosofia que conduz a história.

Com essa nova ferramente, um filme com a tradicional 1h30 de duração poderá ser assistido em 1h ou em até 3h, dependendo da configuração que se escolha. Utilizando isso, muitos detalhes serão perdidos, tanto a nível narrativo quanto ao trabalho dos atores em si. Quando um filme é criado, diretores, roteiristas, editores e dezenas de outros profissionais trabalham para que a obra seja exibida no tempo determinado. A atuação do elenco, por exemplo, é pautada em tempo também. Uma pausa dramática, uma mudança de entonação, um olhar capcioso, um movimento de boca… Tudo isso será perdido.



Outra obra clássica é “O Iluminado”, que constrói o terror psicológico sobre um homem cedendo à loucura ao longo 2h26. Cada minuto é fundamental para a construção do filme.

A Netflix tenta justificar dizendo que a nova ferramenta não será algo fixo. Ou seja, o cliente terá de selecionar a velocidade desejada antes de cada filme, não podendo programar para que todos os conteúdos assistidos comecem instantaneamente com velocidade maior que a normal. Ok, então para quê colocar? A diferença primordial do controle de velocidade da Netflix para o do YouTube é o tipo de conteúdo que é consumido. No YouTube, você tem tutoriais, músicas, opiniões, bobeiras e diversos outros assuntos que não são feitos visando um valor artístico. Não importa tanto a forma como a mensagem é passada, o que importa é que a mensagem seja passada. O cinema funciona de maneira distinta.

Um dos grandes nomes da Teoria da Comunicação, Adorno viu o cinema e a TV serem usados como propaganda nazista. Ele ficou famoso por suas críticas ao Consumismo e à Sociedade de Mercado.

Apesar de Theodor Adorno enxergar e definir o cinema como algo destrutivo para a cultura, tratando-o como indústria – já que todos os elementos de um filme possuem departamentos próprios respondendo a um patrão, como em uma fábrica, impedindo que elementos como música e fotografia “distraiam” o espectador do ponto central do longa-metragem -, e ser apoiado por Walter Benjamin, ao afirmar que o Cinema não tem “Aura”; é fato que cada filme, dentro de sua existência, considere você artística ou não, tem suas particularidades.

Outro expoente da Teoria da Comunicação, Walter Benjamin critica a corrupção da arte pela burguesia.

Sem querer entrar no mérito se o Cinema é Arte ou Produto (eu mesmo o encaixo nas duas definições), um filme é um conjunto de elementos unidos em tela por um diretor. Você não pega “O Nascimento de Vênus“, por exemplo, desenha um vestido azul nela com um pincel e pendura na Galleria degli Uffizi, em Florença, e diz que é a obra de Botticelli. Se deturpar pinturas clássicas é proibido, por que desfigurar obras cinematográficas é “aceitável”?

Esta é uma reprodução de “O Nascimento de Vênus”. A obra original de Sandro Botticelli pode ser conferida  na Galleria degli Uffizi, em Florença, na Itália.

Concordo que essa visão de Produto, trabalhada por Walter Benjamin – de forma absurdamente mais aprofundada do que essas rasas citações que fiz nesse texto – em seu livro A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, já deforme a visão do cinema como Arte, porque entrega o filme em um formato diferente do que foi pensado pelo autor – filmes são feitos para serem exibidos na tela grande do cinema – e sem a experiência única que uma peça de teatro, por exemplo, proporcionaria. No entanto, a gente acaba fazendo vista grossa para o “Sagrado” da arte pela necessidade que temos da democratização da cultura – situação na qual serviços como a Netflix ajudam muito -, mesmo sendo inegável que os streamings tratam o cinema como Produto. A nível de comparação, um filme exibido na Netflix é como ver uma foto da Monalisa. Você entende a obra, mas não a compreende e interpreta em seu formato original. O problema é que a nova ferramenta deturpa os longas ainda mais. É como se te dessem um pôster da Monalisa com tatuagens engraçadinhas na cara. Pode ser divertido, mas destrói completamente o que foi originalmente proposto na obra. Já não pode nem mais ser considerado uma cópia do material original.

As versões deturpadas podem até divertir, mas são tão modificadas que não conseguem transmitir o mínimo que até uma réplica talvez conseguisse.

Para tentar entender melhor os efeitos da ferramenta em uma obra cinematográfica, conversei com Otavio Ugá, dono do segundo maior canal de crítica de cinema do mundo, o Super Oito. Otavio acredita que a ferramenta preste um desserviço e não vê como isso possa ajudar o cinema de alguma forma.

Otavio Ugá é crítico de cinema é dono do canal Super Oito, o segundo maior canal de críticas cinematográficas do mundo.

“Se eu concordo ou não concordo [com a ferramenta] não faz muita diferença na prática. Eu basicamente acredito que a Netflix esteja apenas incorporando um desserviço, porque é estimular uma prática que eu acho negativa, sabe? É uma prática desrespeitosa com as obras e com os profissionais que trabalham artisticamente com audiovisual. Eu tenho um canal no YouTube. Eu não me importo [com o controle de velocidade no YouTube] porque o meu canal é de um conteúdo informativo. Então você pode apressar, pode ver diferente e tudo bem. Mas não é um conteúdo artístico no cerne, então é diferente. O YouTube é diferente. Um curta obedece a mesma regra de filmes, porque é uma obra artística. Essas obras ou você aprecia da forma que o artista propôs ou não aprecia ela, ou não se dedica a ver. Conteúdo informativo é outra história”, diz Otavio.

Ele afirma também que o grande problema é como a ferramenta atrapalha a experiência de assistir e interpretar um filme.

“Eu acredito que a Netflix não tem conteúdos que se beneficiariam dessa ferramenta. Acredito que todos os tipos de conteúdo incluídos na Netflix, talvez até 99% do conteúdo, sejam filmes, séries e filmes documentais. Então todos os filmes são pensados para terem esse ritmo preservado. São experiências. Não é um conteúdo informativo, são conteúdos de experiência, de apreciação. E você não o aprecia mudando deliberadamente o ritmo, a velocidade da coisa. Um argumento que usam [para defender] é: ‘Ah, mas vai de cada um decidir como ver o filme’. Tudo bem, assim como você pode ‘ver um filme’ de olhos fechados ou ver metade do filme com os olhos fechados e tapar os ouvidos na outra metade. Você pode fazer isso, mas não quer dizer que você está experimentando o que o filme quer te proporcionar. Depois você não tem qualquer propriedade para dizer sua opinião sobre o filme.

A grande questão é: pra que você quer assistir uma coisa incompleta? Porque se o filme te proporciona duas horas, e você quer assistir na velocidade 1,5x, pra que você quer assistir 2/3 de um filme? Ter só ‘parte’ da experiência? Pra quê? Pra dizer que viu? Qual a grande função disso? Contar por aí que você tem muitos filmes ‘vistos’? Pra parecer mais culto? Pra parecer mais informado, pra estar mais antenado? Eu, honestamente, prefiro não assistir do que assistir ao filme de qualquer jeito. Óbvio que isso vai de cada um. Mas [assistir em velocidade diferente] quer dizer que você assistiu o filme? Não! Você viu ele passar. É a mesma coisa que você estar no barbeiro e ver uns trechinhos de um filme na TV, depois foi embora pra casa sem terminar de ver. Você não pode dizer que viu esse filme”, conclui Ugá.

A nova ferramenta da Netflix estimula distrações

A verdade é que, conforme deu para entender durante a conversa com Otavio Ugá, é que a nova ferramenta estimula distrações. O Cinema é uma mídia que requer atenção. Você não dirige utilizando o celular [ao menos não deveria, né?] porque a direção te obriga a estar ligado no trânsito o tempo todo para observar o que acontece ao seu redor e estar preparado para realizar uma ação, caso o pior aconteça. Da mesma forma, o Cinema te cobra essa imersão para proporcionar uma experiência, para te envolver na história. O Cinema é, historicamente, uma experiência sensorial. Por isso as salas são escuras, por isso o ambiente é silencioso e as luzes da tela são vibrantes. Os filmes te cobram visão, audição e interpretação. Por que negar isso a eles?

Os famosos Blockbusters seriam tão emocionantes e divertidos se o público não estivesse imerso neles?

É realmente difícil de compreender como um serviço que legitimamente revolucionou o mercado cinematográfico como Arte e Produto – principalmente -, que está cada vez mais próximo de dominar as premiações internacionais, pode trazer uma ferramenta para trucidar de vez a experiência de se desligar do mundo por duas horas e apreciar um bom filme.

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Pedro Sobreirohttp://cinepop.com.br/
Jornalista apaixonado por entretenimento, com passagens por sites, revistas e emissoras como repórter, crítico e produtor.

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Clássico imortal do cinema, “2001: Uma Odisseia no Espaço” é um filme de grande duração, mas esse tempo é necessário para a compreensão da filosofia que conduz a história.

Com essa nova ferramente, um filme com a tradicional 1h30 de duração poderá ser assistido em 1h ou em até 3h, dependendo da configuração que se escolha. Utilizando isso, muitos detalhes serão perdidos, tanto a nível narrativo quanto ao trabalho dos atores em si. Quando um filme é criado, diretores, roteiristas, editores e dezenas de outros profissionais trabalham para que a obra seja exibida no tempo determinado. A atuação do elenco, por exemplo, é pautada em tempo também. Uma pausa dramática, uma mudança de entonação, um olhar capcioso, um movimento de boca… Tudo isso será perdido.

Outra obra clássica é “O Iluminado”, que constrói o terror psicológico sobre um homem cedendo à loucura ao longo 2h26. Cada minuto é fundamental para a construção do filme.

A Netflix tenta justificar dizendo que a nova ferramenta não será algo fixo. Ou seja, o cliente terá de selecionar a velocidade desejada antes de cada filme, não podendo programar para que todos os conteúdos assistidos comecem instantaneamente com velocidade maior que a normal. Ok, então para quê colocar? A diferença primordial do controle de velocidade da Netflix para o do YouTube é o tipo de conteúdo que é consumido. No YouTube, você tem tutoriais, músicas, opiniões, bobeiras e diversos outros assuntos que não são feitos visando um valor artístico. Não importa tanto a forma como a mensagem é passada, o que importa é que a mensagem seja passada. O cinema funciona de maneira distinta.

Um dos grandes nomes da Teoria da Comunicação, Adorno viu o cinema e a TV serem usados como propaganda nazista. Ele ficou famoso por suas críticas ao Consumismo e à Sociedade de Mercado.

Apesar de Theodor Adorno enxergar e definir o cinema como algo destrutivo para a cultura, tratando-o como indústria – já que todos os elementos de um filme possuem departamentos próprios respondendo a um patrão, como em uma fábrica, impedindo que elementos como música e fotografia “distraiam” o espectador do ponto central do longa-metragem -, e ser apoiado por Walter Benjamin, ao afirmar que o Cinema não tem “Aura”; é fato que cada filme, dentro de sua existência, considere você artística ou não, tem suas particularidades.

Outro expoente da Teoria da Comunicação, Walter Benjamin critica a corrupção da arte pela burguesia.

Sem querer entrar no mérito se o Cinema é Arte ou Produto (eu mesmo o encaixo nas duas definições), um filme é um conjunto de elementos unidos em tela por um diretor. Você não pega “O Nascimento de Vênus“, por exemplo, desenha um vestido azul nela com um pincel e pendura na Galleria degli Uffizi, em Florença, e diz que é a obra de Botticelli. Se deturpar pinturas clássicas é proibido, por que desfigurar obras cinematográficas é “aceitável”?

Esta é uma reprodução de “O Nascimento de Vênus”. A obra original de Sandro Botticelli pode ser conferida  na Galleria degli Uffizi, em Florença, na Itália.

Concordo que essa visão de Produto, trabalhada por Walter Benjamin – de forma absurdamente mais aprofundada do que essas rasas citações que fiz nesse texto – em seu livro A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, já deforme a visão do cinema como Arte, porque entrega o filme em um formato diferente do que foi pensado pelo autor – filmes são feitos para serem exibidos na tela grande do cinema – e sem a experiência única que uma peça de teatro, por exemplo, proporcionaria. No entanto, a gente acaba fazendo vista grossa para o “Sagrado” da arte pela necessidade que temos da democratização da cultura – situação na qual serviços como a Netflix ajudam muito -, mesmo sendo inegável que os streamings tratam o cinema como Produto. A nível de comparação, um filme exibido na Netflix é como ver uma foto da Monalisa. Você entende a obra, mas não a compreende e interpreta em seu formato original. O problema é que a nova ferramenta deturpa os longas ainda mais. É como se te dessem um pôster da Monalisa com tatuagens engraçadinhas na cara. Pode ser divertido, mas destrói completamente o que foi originalmente proposto na obra. Já não pode nem mais ser considerado uma cópia do material original.

As versões deturpadas podem até divertir, mas são tão modificadas que não conseguem transmitir o mínimo que até uma réplica talvez conseguisse.

Para tentar entender melhor os efeitos da ferramenta em uma obra cinematográfica, conversei com Otavio Ugá, dono do segundo maior canal de crítica de cinema do mundo, o Super Oito. Otavio acredita que a ferramenta preste um desserviço e não vê como isso possa ajudar o cinema de alguma forma.

Otavio Ugá é crítico de cinema é dono do canal Super Oito, o segundo maior canal de críticas cinematográficas do mundo.

“Se eu concordo ou não concordo [com a ferramenta] não faz muita diferença na prática. Eu basicamente acredito que a Netflix esteja apenas incorporando um desserviço, porque é estimular uma prática que eu acho negativa, sabe? É uma prática desrespeitosa com as obras e com os profissionais que trabalham artisticamente com audiovisual. Eu tenho um canal no YouTube. Eu não me importo [com o controle de velocidade no YouTube] porque o meu canal é de um conteúdo informativo. Então você pode apressar, pode ver diferente e tudo bem. Mas não é um conteúdo artístico no cerne, então é diferente. O YouTube é diferente. Um curta obedece a mesma regra de filmes, porque é uma obra artística. Essas obras ou você aprecia da forma que o artista propôs ou não aprecia ela, ou não se dedica a ver. Conteúdo informativo é outra história”, diz Otavio.

Ele afirma também que o grande problema é como a ferramenta atrapalha a experiência de assistir e interpretar um filme.

“Eu acredito que a Netflix não tem conteúdos que se beneficiariam dessa ferramenta. Acredito que todos os tipos de conteúdo incluídos na Netflix, talvez até 99% do conteúdo, sejam filmes, séries e filmes documentais. Então todos os filmes são pensados para terem esse ritmo preservado. São experiências. Não é um conteúdo informativo, são conteúdos de experiência, de apreciação. E você não o aprecia mudando deliberadamente o ritmo, a velocidade da coisa. Um argumento que usam [para defender] é: ‘Ah, mas vai de cada um decidir como ver o filme’. Tudo bem, assim como você pode ‘ver um filme’ de olhos fechados ou ver metade do filme com os olhos fechados e tapar os ouvidos na outra metade. Você pode fazer isso, mas não quer dizer que você está experimentando o que o filme quer te proporcionar. Depois você não tem qualquer propriedade para dizer sua opinião sobre o filme.

A grande questão é: pra que você quer assistir uma coisa incompleta? Porque se o filme te proporciona duas horas, e você quer assistir na velocidade 1,5x, pra que você quer assistir 2/3 de um filme? Ter só ‘parte’ da experiência? Pra quê? Pra dizer que viu? Qual a grande função disso? Contar por aí que você tem muitos filmes ‘vistos’? Pra parecer mais culto? Pra parecer mais informado, pra estar mais antenado? Eu, honestamente, prefiro não assistir do que assistir ao filme de qualquer jeito. Óbvio que isso vai de cada um. Mas [assistir em velocidade diferente] quer dizer que você assistiu o filme? Não! Você viu ele passar. É a mesma coisa que você estar no barbeiro e ver uns trechinhos de um filme na TV, depois foi embora pra casa sem terminar de ver. Você não pode dizer que viu esse filme”, conclui Ugá.

A nova ferramenta da Netflix estimula distrações

A verdade é que, conforme deu para entender durante a conversa com Otavio Ugá, é que a nova ferramenta estimula distrações. O Cinema é uma mídia que requer atenção. Você não dirige utilizando o celular [ao menos não deveria, né?] porque a direção te obriga a estar ligado no trânsito o tempo todo para observar o que acontece ao seu redor e estar preparado para realizar uma ação, caso o pior aconteça. Da mesma forma, o Cinema te cobra essa imersão para proporcionar uma experiência, para te envolver na história. O Cinema é, historicamente, uma experiência sensorial. Por isso as salas são escuras, por isso o ambiente é silencioso e as luzes da tela são vibrantes. Os filmes te cobram visão, audição e interpretação. Por que negar isso a eles?

Os famosos Blockbusters seriam tão emocionantes e divertidos se o público não estivesse imerso neles?

É realmente difícil de compreender como um serviço que legitimamente revolucionou o mercado cinematográfico como Arte e Produto – principalmente -, que está cada vez mais próximo de dominar as premiações internacionais, pode trazer uma ferramenta para trucidar de vez a experiência de se desligar do mundo por duas horas e apreciar um bom filme.

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Pedro Sobreirohttp://cinepop.com.br/
Jornalista apaixonado por entretenimento, com passagens por sites, revistas e emissoras como repórter, crítico e produtor.

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