terça-feira , 5 novembro , 2024

Opinião | Por que ‘Coraline e o Mundo Secreto’ é a melhor escolha para o mês do Halloween

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Quando uma história é bem contada, é muito difícil esquecê-la. Normalmente, anos podem se passar e memórias da narrativa, por mais fragmentadas que estejam, ainda perambulam nossa mente e nos transportam a um momento nostálgico em que nada mais existia a não ser a pura envolvência entre o espectador e o filme: é por essas e outras razões que Coraline e o Mundo Secreto permanece como uma das melhores e mais sombrias animações já feitas, cuja amplitude de alcance não se restringe apenas a uma parcela da audiência, mas esgarça suas inúmeras ramificações e encanta qualquer um que ouse lhe assistir.

A trama gira em torno de uma jovem garota de doze anos que se muda para uma nova casa, no meio do campo, a qual compartilha com outros três moradores excêntricos e alguns vizinhos nada além de estranhos e perturbadores. Sentindo-se sozinha e abandonada pelos pais, cujas carreiras parecem ser mais importante que nutrir a natural carência da filha, ela encontra refúgio em um mundo secreto, escondido atrás de uma pequena porta na sala de estar, povoado por seres com olhos de botão que guardam consigo um terrível segredo. Em se tratando de uma obra de animação, é costumeiro cairmos na ideia de que tais filmes são destinados a criança; porém, devemos levar em conta que a história foi arquitetada por ninguém menos que Neil Gaiman, cujo tato para distorção e enriquecimento metafísico da mais simples das narrativas é inegavelmente assustador.

Em outras palavras, estamos lidando com algo muito mais profundo do que aparenta, a começar pela estética: realizado inteiramente em stop-motion, o diretor Henry Selick mergulha fundo nas estéticas expressionistas e impressionistas para dar vida às páginas de Gaiman, optando por duas paletas de cores contraditórias entre si e que refletem a atmosfera principal de cada uma das dimensões: Coraline Jones (Dakota Fanning) permanece em um estado de melancolia constante, vagando pelos corredores caindo aos pedaços do casarão e explorando o que for possível para se manter ocupada. Entretanto, seus reais desejos de passar mais tempo com a família e até mesmo cuidar do decadente jardim à frente da mansão são ofuscados pelos próprios mais, Mel (Teri Hatcher) e Charlie (John Hodgman), os quais tentam empurrá-la para outros afazeres.

A nossa heroína, com seu cabelo azul-escuro chamativo e sua capa de chuva amarelo-ovo, desde o princípio se mostra com uma personalidade irreverente e afrontosa: não é à toa que sua caracterização entra em conflito com as cores neutras do mundo real (cinza-claro, branco, preto, marrom e até mesmo uma tendência para o rosa desbotado); ela é uma forasteira e ninguém a compreende, nem mesmo seu vizinho de mesma idade, Wyborne “Wybie” Lovat (Robert Bailey Jr.), com quem tenta criar uma relação, mas acaba servindo apenas para irritá-la ainda mais perante todos os problemas que já têm que enfrentar.

Não é nenhuma surpresa que a descoberta desse novo universo, uma ramificação mais didática e compreensível das teorias do mundo invertido e da multidimensionalidade do cosmos, a conquiste logo de cara. É claro, partindo do complexo da onipotência endeusada, a Outra Mãe (também dublada por Hatcher, que faz um incrível trabalho e consegue criar dois personagens totalmente diferentes) arquiteta-o à imagem e semelhança do que Coraline já conhece: os jardins, os outros moradores, tudo embebido na mais pura magia – que, aqui, serve como um escape viciante do estresse e cruel realidade. Apesar dos incômodos botões no lugar dos olhos, assustadores desde a primeira vez que o público se depara com eles, quem não se apaixonaria por um lugar em que todos os sonhos se tornam realidade? E, além disso, devemos nos lembrar do fato da personagem principal é uma criança desamparada pelos pais a qual encontra, de repente, todo o carinho que sempre desejou.

Uma armadilha, por assim dizer, é o que se depreende conforme a narrativa vai se seguindo: nem tudo são maravilhas; Gaiman, com seu extenso background criativo, sabe muito bem que os contos de fada e suas lições de moral trazem ensinamentos contundentes com a realidade que enfrentamos – não aceite nada de estranhos, não converse com desconhecidos, não siga a trilha da floresta – e traz os tons fabulescos para uma mistura de ficção fantástica e drama, travestida da mais pura jornada do herói. Coraline é seduzida e depois percebe as consequências de seus atos. Ela confia em quem não deveria – e até a mãe e o pai verdadeiros chegam a pagar o preço, colocando-o em uma última investida para salvá-los e destruir os domínios da Outra Mãe, também conhecida como a Bela Dama.

O longa é uma mistura de Chapeuzinho Vermelho’ com João e Maria’, perscrutado com modernizações e ironias ácidas próprias de Gaiman. Apesar do revestimento infantil e que ameniza um pouco os eventos decorridos, a força-motriz da narrativa é o suspense, reafirmado até mesmo pela estética do stop-motion. Tudo é construído com curvas suntuosas, ângulos estranhos, seguindo uma dialética essencialmente catártica: a fluidez do movimento das personagens é óbvio, mas nenhuma dessas conexões entre público-filme seriam possíveis sem o belíssimo trabalho fotográfico e cênico, que preza por ângulos holandeses propositais e recorrentes e técnicas que nos remontam aos terrores clássicos de Alfred Hitchcock.

Selick também assina o roteiro e faz questão de dar o foco necessário a cada um dos personagens, incluindo os incríveis coadjuvantes. Seja na forçada dramaticidade das irmãs Spink e Forcible (dubladas por Jennifer Saunders e Dawn French, respectivamente), ou na circense e paradoxal presença do Sr. Bobinsky (Ian McShane se entregando de corpo e alma a um dos personagens mais memoráveis de sua carreira), cada um é de extrema importância para respaldar o desenvolvimento e o amadurecimento da protagonista, a qual, no final das contas, percebe como eles estavam apenas tentando ajudá-la a encontrar seu propósito.

Coraline e o Mundo Secreto é uma animação inesquecível que foge de quaisquer convencionalismos de gênero e definitivamente não se restringe apenas ao público infantil. E, como se não bastasse, a mente conturbada e genial de Gaiman não apenas nos permite se apaixonar por sua obra, como também nos lança em um constante looping de plot twists, ação, drama e a mais ácida das comédias.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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A trama gira em torno de uma jovem garota de doze anos que se muda para uma nova casa, no meio do campo, a qual compartilha com outros três moradores excêntricos e alguns vizinhos nada além de estranhos e perturbadores. Sentindo-se sozinha e abandonada pelos pais, cujas carreiras parecem ser mais importante que nutrir a natural carência da filha, ela encontra refúgio em um mundo secreto, escondido atrás de uma pequena porta na sala de estar, povoado por seres com olhos de botão que guardam consigo um terrível segredo. Em se tratando de uma obra de animação, é costumeiro cairmos na ideia de que tais filmes são destinados a criança; porém, devemos levar em conta que a história foi arquitetada por ninguém menos que Neil Gaiman, cujo tato para distorção e enriquecimento metafísico da mais simples das narrativas é inegavelmente assustador.

Em outras palavras, estamos lidando com algo muito mais profundo do que aparenta, a começar pela estética: realizado inteiramente em stop-motion, o diretor Henry Selick mergulha fundo nas estéticas expressionistas e impressionistas para dar vida às páginas de Gaiman, optando por duas paletas de cores contraditórias entre si e que refletem a atmosfera principal de cada uma das dimensões: Coraline Jones (Dakota Fanning) permanece em um estado de melancolia constante, vagando pelos corredores caindo aos pedaços do casarão e explorando o que for possível para se manter ocupada. Entretanto, seus reais desejos de passar mais tempo com a família e até mesmo cuidar do decadente jardim à frente da mansão são ofuscados pelos próprios mais, Mel (Teri Hatcher) e Charlie (John Hodgman), os quais tentam empurrá-la para outros afazeres.

A nossa heroína, com seu cabelo azul-escuro chamativo e sua capa de chuva amarelo-ovo, desde o princípio se mostra com uma personalidade irreverente e afrontosa: não é à toa que sua caracterização entra em conflito com as cores neutras do mundo real (cinza-claro, branco, preto, marrom e até mesmo uma tendência para o rosa desbotado); ela é uma forasteira e ninguém a compreende, nem mesmo seu vizinho de mesma idade, Wyborne “Wybie” Lovat (Robert Bailey Jr.), com quem tenta criar uma relação, mas acaba servindo apenas para irritá-la ainda mais perante todos os problemas que já têm que enfrentar.

Não é nenhuma surpresa que a descoberta desse novo universo, uma ramificação mais didática e compreensível das teorias do mundo invertido e da multidimensionalidade do cosmos, a conquiste logo de cara. É claro, partindo do complexo da onipotência endeusada, a Outra Mãe (também dublada por Hatcher, que faz um incrível trabalho e consegue criar dois personagens totalmente diferentes) arquiteta-o à imagem e semelhança do que Coraline já conhece: os jardins, os outros moradores, tudo embebido na mais pura magia – que, aqui, serve como um escape viciante do estresse e cruel realidade. Apesar dos incômodos botões no lugar dos olhos, assustadores desde a primeira vez que o público se depara com eles, quem não se apaixonaria por um lugar em que todos os sonhos se tornam realidade? E, além disso, devemos nos lembrar do fato da personagem principal é uma criança desamparada pelos pais a qual encontra, de repente, todo o carinho que sempre desejou.

Uma armadilha, por assim dizer, é o que se depreende conforme a narrativa vai se seguindo: nem tudo são maravilhas; Gaiman, com seu extenso background criativo, sabe muito bem que os contos de fada e suas lições de moral trazem ensinamentos contundentes com a realidade que enfrentamos – não aceite nada de estranhos, não converse com desconhecidos, não siga a trilha da floresta – e traz os tons fabulescos para uma mistura de ficção fantástica e drama, travestida da mais pura jornada do herói. Coraline é seduzida e depois percebe as consequências de seus atos. Ela confia em quem não deveria – e até a mãe e o pai verdadeiros chegam a pagar o preço, colocando-o em uma última investida para salvá-los e destruir os domínios da Outra Mãe, também conhecida como a Bela Dama.

O longa é uma mistura de Chapeuzinho Vermelho’ com João e Maria’, perscrutado com modernizações e ironias ácidas próprias de Gaiman. Apesar do revestimento infantil e que ameniza um pouco os eventos decorridos, a força-motriz da narrativa é o suspense, reafirmado até mesmo pela estética do stop-motion. Tudo é construído com curvas suntuosas, ângulos estranhos, seguindo uma dialética essencialmente catártica: a fluidez do movimento das personagens é óbvio, mas nenhuma dessas conexões entre público-filme seriam possíveis sem o belíssimo trabalho fotográfico e cênico, que preza por ângulos holandeses propositais e recorrentes e técnicas que nos remontam aos terrores clássicos de Alfred Hitchcock.

Selick também assina o roteiro e faz questão de dar o foco necessário a cada um dos personagens, incluindo os incríveis coadjuvantes. Seja na forçada dramaticidade das irmãs Spink e Forcible (dubladas por Jennifer Saunders e Dawn French, respectivamente), ou na circense e paradoxal presença do Sr. Bobinsky (Ian McShane se entregando de corpo e alma a um dos personagens mais memoráveis de sua carreira), cada um é de extrema importância para respaldar o desenvolvimento e o amadurecimento da protagonista, a qual, no final das contas, percebe como eles estavam apenas tentando ajudá-la a encontrar seu propósito.

Coraline e o Mundo Secreto é uma animação inesquecível que foge de quaisquer convencionalismos de gênero e definitivamente não se restringe apenas ao público infantil. E, como se não bastasse, a mente conturbada e genial de Gaiman não apenas nos permite se apaixonar por sua obra, como também nos lança em um constante looping de plot twists, ação, drama e a mais ácida das comédias.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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