No início de setembro de 2022 estreia mais uma adaptação de um livro do mestre do terror Stephen King. Mas essa não é simplesmente mais uma história do grande autor levada ao cinema. Trata-se de Os Vampiros de Salem (Salem’s Lot), o segundo livro escrito de toda a vasta bibliografia do escritor, que… pasmem… nunca havia sido levada anteriormente às telonas. É de se imaginar que a primeira história de vampiros escrita por uma verdadeira lenda do terror tenha lá o seu valor. E essa primeira adaptação aos cinemas é produzida pela Warner e a New Line em clima de superprodução – comandada por Gary Dauberman, roteirista de It: A Coisa (2017). A julgar pelo excelente trabalho anterior citado em uma obra de King, a expectativa até fica alta com o filme. Dauberman adapta a história no roteiro e dirige.
É justo que você possa estar confuso neste momento, querido leitor. Ao ter lido o título da matéria falando sobre a primeira versão da história e logo em seguida a afirmação de que Os Vampiros de Salem nunca foi levado aos cinemas. Bem, o que acontece é o seguinte: Os Vampiros de Salem já teve três versões para as telas, mas nenhuma foi exatamente o livro de Stephen King nos cinemas. Explico. A primeira adaptação do livro de King foi não em um filme para as telonas, e sim na forma de uma minissérie para as telinhas em duas partes – de 1h30min de duração cada uma. O programa fez enorme sucesso e depois foi comercializado na forma de fitas de vídeo nas locadoras (como um filme longo – assim como muitas obras de King, vide It – Uma Obra-Prima do Medo, Tommyknockers e A Dança da Morte). A segunda versão, aí sim ganhou ares de uma produção para o cinema. Mas ao invés de adaptar novamente o livro original do autor, a Warner resolveu criar uma continuação inédita para a história de King em 1987. Por fim, a história ganharia um remake, novamente na forma de uma minissérie em dois episódios, em 2004.
O fato não deixa de ser curioso, já que os primeiros três livros de Stephen King foram adaptados na ordem cronológica para o audiovisual, com Carrie – A Estranha escrito em 1974 (sendo levado aos cinemas em 1976 por Brian De Palma), Os Vampiros de Salem escrito em 1975 (sendo levado às telas na forma desta minissérie em 1979) e O Iluminado escrito em 1977 (transformado no famoso cult de Stanley Kubrick em 1980). Assim, com Carrie e O Iluminado resistindo ao teste do tempo, ainda como produções celebradas, da trinca original apenas Os Vampiros de Salem ficou durante todo este tempo com um pequeno pedaço do bolo, fora da badalação que geralmente as obras de King possuem. E realmente levaria mais de 40 anos até a história receber seu primeiro tratamento nas telonas. Mas a primeira versão de Os Vampiros de Salem não é uma obra descartável, mesmo com as restrições de um orçamento baixo e a aura depreciativa que as produções de TV carregavam. Pelo contrário, ainda mais na época, a minissérie fez tanto sucesso em sua exibição na rede CBS em meados de novembro de 1979 que, além de ser remontado como longa-metragem para a exibição no cinema de alguns países da Europa, ainda gerou o interesse do canal americano em transformar a história numa série regular. A ideia infelizmente não vingaria.
O grande desafio que a nova versão de Os Vampiros de Salem irá enfrentar é se distanciar do que os fãs e os críticos consideram a melhor adaptação de Os Vampiros da Salem para as telas até hoje: a minissérie em sete episódios da Netflix, Missa da Meia Noite (2021). Criada por Mike Flanagan (com roteiro e direção), o cineasta usa o livro de Stephen King como grande inspiração para seu programa de sucesso. E de tão próxima a série soa como uma versão da obra do autor. A grande diferença talvez seja o uso da fé cega e da crítica ao fanatismo religioso – elementos ausentes da obra original.
A história de Os Vampiros de Salem também fala sobre uma cidadezinha sendo aterrorizada pela chegada de uma criatura das trevas, um vampiro que começa a transformar todos os moradores em mortos-vivos ou usá-los como alimento. Também temos como protagonista um ex-morador do local retornando depois de alguns anos, somente para reparar que sua cidade natal corre imenso perigo, precisando salvar o dia. Na série de Flanagan (que já havia adaptado Stephen King para o cinema, com Doutor Sono) a subtrama envolvendo o forasteiro que retorna, sofre algumas guinadas inesperadas, o que deixa tudo mais interessante. Fora isso, a criatura das trevas também é trazida por um homem inserido na comunidade. Em Missa da Meia Noite é o padre local, e em Os Vampiros de Salem, o respeitável dono de uma loja de antiguidades raras.
Mike Flanagan optou por usar até mesmo o visual sub-humano do vampiro da minissérie Os Vampiros de Salem (1979) – uma versão monstruosa a la Nosferatu. Mas no livro original de Stephen King, o vampiro conhecido como Kurt Barlow possui ares de Drácula, um antagonista que fala e tem aparência humana. King, que geralmente encrenca com estas mudanças bruscas em suas histórias, até aceitou bem o fato de em 1979, Barlow agora ter uma aparência mais assustadora e não falar. Para o autor, isso deixaria os espectadores mais investidos nos dramas pessoais dos outros personagens. Veremos qual aparência do vampirão os realizadores desta nova versão de 2022 irão usar. Particularmente, espero que sigam o caminho de Flanagan para um impacto maior na audiência.
Os Vampiros de Salem (1979) narra a jornada de Ben Mears (David Soul), um escritor que ao retornar para sua cidadezinha natal de Salem’s Lot, começa a reparar estranhos acontecimentos, como desaparecimentos, mortes e fenômenos inexplicáveis. Aos poucos o sujeito começa a ligar os pontos, mesmo que a maioria seja cética. Ele consegue recrutar alguns para ajuda-lo, como Susan Norton (Bonnie Bedelia), seu interesse romântico, e o pai dela, o médico da cidade, o Dr. Bill Norton (Ed Flanders). O terror começa com a mudança de um estranho ao pequeno local. Richard Straker à primeira vista é apenas um empresário, dono de uma loja de antiguidades, com estranhos hábitos. Ele clama ser sócio de um tal Barlow, que nunca é visto. Straker é na verdade o servo de Barlow, e consegue vítimas para que a criatura continue viva. Assim, vivem se mudando e dizimando pequenos povoados. No papel de Straker, o nome de maior peso no elenco: James Mason, o professor Humbert Humbert, do clássico Lolita (1962).
Ah sim. A esta altura já deveria ter mencionado que a minissérie Os Vampiros de Salem possui uma direção ilustre de um verdadeiro mestre do gênero igualmente. Quem comanda os dois episódios é Tobe Hooper, escolhido pelo produtor Richard Kobritz após o sucesso de O Massacre da Serra Elétrica (1974). Mas nem sempre os planos foram levar a história para a TV. Tudo começou na verdade com a intenção de se levar Os Vampiros de Salem para as telonas, assim como os irmãos Carrie e O Iluminado. Inclusive o diretor George A. Romero, de A Noite dos Mortos-Vivos (1968), estava pronto para assumir o comando da produção cinematográfica para a Warner. Imagine o que teria sido. Porém, o que aconteceu foi um acúmulo de filmes de terror estilosos focados em vampiros, todos lançados no mesmo ano. 1979 viu, por exemplo, a estreia do remake de Drácula com Frank Langella, dirigido por John Badham, e também a nova versão de Nosferatu: O Vampiro da Noite, de Werner Herzog. Assim, a Warner tirou o time de campo e terminou optando pela TV. Com a manobra, o estúdio terminou perdendo Romero, que achava que sua visão não podia ser contida na telinha.
A inspiração de Stephen King para escrever a história viria mesmo do livro clássico de Bram Stoker, Drácula. O autor sempre foi fascinado por esta trama e ficou pensando como seria se um vampiro do porte de Drácula se mudasse para alguma cidadezinha americana nos tempos de hoje – no caso nos tempos de 1979. Essa diferença de tempo muito provavelmente será contornada no novo filme – que deverá se passar nos dias atuais, com internet e smartphones.
Analisando a minissérie para os padrões de hoje, podemos notar o clima meio “novelesco” da narrativa, favorecida por uma verdadeira multidão de personagens criados por King para povoar a cidade do título. As três horas de duração da minissérie (ou filme para a TV, depende de como você o enxerga) parecem inclusive pouco para contornar tantas subtramas. E algumas ficam sem uma conclusão clara, como o casal vivido por George Dzundza e Julie Cobb – uma mulher adúltera cujo marido traído a pega no flagra. A dupla simplesmente desaparece sem maiores explicações. De fato a intenção dos produtores era focar mais nos personagens e seus dramas do que no terror e violência. Assim, o clima no resultado final é bem o de um folhetim. Mas a produção ainda reserva sim momentos assustadores. Como as aparições de Barlow, muitas servidas de jumpscares (os famosos sustos) de acelerar o coração – em especial uma cena na residência da família Petrie (cujo filho mais novo Mark se torna um dos heróis da história, graças ao seu gosto por monstros), que marca a primeira aparição do vampiro; e uma cena na cadeia onde chega para sugar o sangue de Ned Tebbets (Barney McFadden), o encrenqueiro local.
A sanguinolência é tão reduzida que Reggie Nalder, o ator de aparência exótica que interpreta Barlow, ficou desapontado com o resultado do que viu em tela – tendo grande parte de sua participação na obra reduzida para menos de 1 minuto e meio de tempo em tela, como a principal ameaça da trama. O ator inclusive teve seu nome retirado dos créditos. Certamente a abordagem será totalmente outra na vindoura adaptação, que nos deixa desde já muito curiosos para os primeiros vislumbres nesse novo (e antigo) mundo criado por Stephen King.