De maneira misteriosa, a trama começa pelo início do fim. Se apresentando como um grande teaser, que visa saltar os olhos e inundar a mente da audiência com perguntas que – claramente – não serão respondidas em primeira instância, Little Fires Everywhere inicialmente instiga a audiência a se infiltrar pelas rachaduras das famílias brancas e “perfeitas” de uma pequena e elitista cidade dos Estados Unidos, em meio à insurgência de uma suposta ameaça social, que promete trazer à luz o racismo, o preconceito, a homofobia e tantas outras mentiras tão bem guardadas entre quatro paredes.
Inspirando sua abordagem inaugural no formato de Alfred Hitchcock em Festim Diabólico, a produção é original da Hulu e futuramente será transmitida pelo Brasil pelo streaming da Amazon – Prime Video. Em primeira instância, ela entrega ao público um crime sem resposta, destrinchando suas camadas e inebriando nossos sentidos gradativamente, em uma jornada social que promete tragar o público para as entranhas de um tempo de desigualdades que, ainda que seja relatado nos anos 90, nunca esteve tão atual como agora.
Bem produzida logo de cara, Little Fires Everywhere traz aquela estética noventista nostálgica, mas faz isso com tanta naturalidade, que é capaz de confundir os nossos olhos. Entre jeans surrados em visuais mais básicos, madeixas cacheadas e volumosas que destacam as raízes afro-americanas, cabelos lisos e alinhados com spray e ombreiras extravagantes de terninhos mais ajustados – porém exagerados, a série é uma banquete em todos os seus designs, do figurino à produção, destacando uma época que gradativamente tem voltado à moda, mas que carrega em sua essência um passado tenebroso de violência policial, conflitos entre raças e mudanças sociais que redefiniriam a cultura americana.
E a minissérie majoritariamente roteirizada pela própria autora do livro, Celeste Ng, é esse emaranhado de fatos, que cercam uma trama fictícia tão cativante e realista, que quase beira o histórico. Com mulheres protagonistas tomando a linha de frente da narrativa, a adaptação traz Reese Witherspoon e Kerry Washington em suas melhores formas, como duas mães nascidas e crescidas em uma mesma geração, que trazem backgrounds absolutamente distintos, regados por maneirismos, tradições, imposições e pressões marcadas por suas respectivas classes sociais, cor da pele e acesso (ou não) às oportunidades.
Abordando a maternidade por uma ótica franca e unapologetic, a minissérie desafia os nossos sentidos, nos provoca a cada quadro, nos levando gradativamente a uma percepção e a uma imagem maior sobre sua verdadeira essência e objetivo. Profundo e cheia de complexidades, o roteiro se desabrocha sobre o papel da mulher nos anos 90 – em meio aos contextos aos quais foram submetidas, o peso de suas escolhas e trazendo confrontos sobre questões raciais que ainda geram debates acalorados em pleno ano 2020.
Com um elenco de jovens atores que surpreende com facilidade e é capaz de conduzir a trama por conta própria, Little Fires Everywhere sabe dosar seu drama e seu desenvolvimento com precisão, tomando a audiência pela mão desde o começo. Explorando a estética da época com um frescor artístico – que ainda conta com uma deliciosa trilha sonora, a minissérie também produzida por Witherspoon e Washington pode até ser um pouquinho caricata demais nas caracterizações de suas duas protagonistas, mas revigora o poder que atrizes mais maduras possuem em contar uma boa história. E essa, promete ser genuinamente excepcional.