sábado , 2 novembro , 2024

Primeiras Impressões | ‘Lovecraft Country’ é uma fantástica e necessária aventura da HBO

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H.P. Lovecraft é um dos ícones da literatura e um dos grandes representantes da ficção de horror. Apesar de seu extenso legado estender suas ramificações até os dias de hoje – inspirando artistas contemporâneos de diversas áreas a reproduzirem e homenagearem seu panteão fantástico-científico -, é inegável dizer que suas criações vinham dotadas de diversas controvérsias, principalmente no tocante racial. Afinal, embebido pela política segregacionista da Era Jim Crow dos Estados Unidos, Lovecraft promulgava a ideia de que a etnia anglo-saxônica era superior às outras, através de criações mitológicas que exploravam desde a concepção do universo até as mazelas dos avanços tecnológicos.

Em 2016, o novelista Matt Ruff resolveu revisitar o universo místico criado por Lovecraft com Território Lovecraft, aliando-o a uma metalinguagem desgarrada que o colocou no centro dos holofotes, ainda mais por colocar um protagonista negro, fã dos escritos lovecraftianos, em um período regido pelo racismo desenfreado e pela caça a qualquer pessoa que fugisse do padrão eurocêntrico. Quatro anos depois, os direitos intelectuais da obra foram abraçados pela HBO e, dessa forma, surgiu Lovecraft Country, série televisiva supervisionada pela habilidosa Misha Green (conhecida pelo drama histórico Underground). Tornando-se uma das vindouras produções do ano, o episódio piloto veio recheado de reviravoltas coesas, diálogos pungentes e uma análise sociocultural do que era o mundo neoimperialista estadunidense em meados da década de 1950 – entregando tudo o que prometia.

Com pontuais exceções que restringem-se ao âmbito imagético – como sequências forçadas e certas construções que fogem do teor principal -, o show teve uma das melhores aberturas dos últimos anos e angariou uma fidelidade sem precedentes através de uma narrativa competente. Estrelada por Jonathan Majors e Jurnee Smollett, a trama é centrada em Atticus Freeman (Majors), um jovem ex-veterano de guerra que lutou na Coreia e que agora, embarca numa jornada para reencontrar o pai desaparecido, atravessando o país conforme luta pela sobrevivência não apenas contra monstros terríveis, mas também contra algozes supremacistas. Para essa aventura, ele se alia com uma conhecida colega de escola, Letitita “Leti” Lewis (Smollett) e seu sagaz e sábio tio, George (Courtney B. Vance).

Ainda que o roteiro destine apenas o ato final para explorar com avidez as incursões sobrenaturais, todo o restante do capítulo rende-se a um poderoso e assertivo drama guiado por personagens bastante complexos. Atticus carrega consigo traumas beligerantes que destinam-se, por enquanto, ao âmbito intimista, com potencial gigantesco para explorações futuras. Apaixonado pelos escritos de Lovecraft, ele encarna o ditado “o bom filho à casa torna” e se vê, pela primeira vez em muito tempo, na companhia de seus iguais – em uma Chicago que oferecia centelhas de esperança para pessoas constantemente maltratadas pelas reminiscências da escravidão. Entretanto, sua missão é outra: reencontrar o pai, que simplesmente sumiu do mapa.

Desde o princípio, Atticus tem certas pistas de onde seu pai pode ter ido parar – mas o complexo contexto histórico fala mais alto em diversos momentos e nos faz esquecer do pano de fundo principal. Diferente do que poderíamos imaginar, essa “leviandade” é proposital e é conduzida com maestria por Yann Demange, transformando as reflexões antropológicas em um categórico arco com diversas ramificações; em outras palavras, nota-se que a essência panfletária e documentarista deixa de existir em prol de uma amálgama artística que preza pelo drama fictício respaldado na realidade. O trio protagonista enfrenta olhares de desprezo conforme atravessando as estradas interioranas dos EUA a caminho de Devon County e ficam à beira da morte várias vezes. Demange e Green, unindo forças e gerando uma belíssima e exuberante arquitetura, imprimem um conhecimento descritivo que, apesar de fugir do didatismo exacerbado, nos leva a inferir sobre o que estão falando com detalhes irretocáveis.

Um outro ponto alto que delineia-se no episódio de estreia é a bela química entre os personagens: para além da performance epopeica de Majors, Smollett faz um belo impacto como a ousada Leti, uma ambiciosa e revolucionária jovem que luta pela igualdade racial e não mede esforços para ajudar quem precisa; de outro lado, Vance rende-se a outra atuação sem esforços, mostrando vulnerabilidade e força em apenas um relance do olhar. Novamente, percebe-se a cautela da própria narrativa em não entregar cada uma das camadas de personalidade dos protagonistas, permitindo que eles exultem um movimento de expansão e introspecção e levem o público para circinais inflexões que nem ao menos tangenciam o exagero cênico.

De fato, Lovecraft Country traz um pouco de tudo para as telinhas, não pensando duas vezes antes de homenagear clássicos do sci-fi e do terror, como Guerra dos Mundos, ‘Marte Ataca!’ e Drácula – do modo mais extemporâneo que se possa imaginar. Além disso, Green mostra um apreço apaixonante pelo saudosismo artístico do cinema de gênero, permitindo que a estética audiovisual atravesse as eras sem perdas ou hipérboles concernentes à coesão: a simplicidade da série é refinada com uma adoração a si mesma, uma metalinguagem que não necessariamente é narcisista, e sim mimética para o melhor.

No final das contas, o convite está aberto – e é tentador por todos os motivos certos. Não temos ideia do que nos aguarda no futuro; porém, sabemos de uma coisa: há algo espreitando na escuridão e, por mais arrepiante que seja, não conseguimos deixar de querer saber a que isso irá nos levar.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Em 2016, o novelista Matt Ruff resolveu revisitar o universo místico criado por Lovecraft com Território Lovecraft, aliando-o a uma metalinguagem desgarrada que o colocou no centro dos holofotes, ainda mais por colocar um protagonista negro, fã dos escritos lovecraftianos, em um período regido pelo racismo desenfreado e pela caça a qualquer pessoa que fugisse do padrão eurocêntrico. Quatro anos depois, os direitos intelectuais da obra foram abraçados pela HBO e, dessa forma, surgiu Lovecraft Country, série televisiva supervisionada pela habilidosa Misha Green (conhecida pelo drama histórico Underground). Tornando-se uma das vindouras produções do ano, o episódio piloto veio recheado de reviravoltas coesas, diálogos pungentes e uma análise sociocultural do que era o mundo neoimperialista estadunidense em meados da década de 1950 – entregando tudo o que prometia.

Com pontuais exceções que restringem-se ao âmbito imagético – como sequências forçadas e certas construções que fogem do teor principal -, o show teve uma das melhores aberturas dos últimos anos e angariou uma fidelidade sem precedentes através de uma narrativa competente. Estrelada por Jonathan Majors e Jurnee Smollett, a trama é centrada em Atticus Freeman (Majors), um jovem ex-veterano de guerra que lutou na Coreia e que agora, embarca numa jornada para reencontrar o pai desaparecido, atravessando o país conforme luta pela sobrevivência não apenas contra monstros terríveis, mas também contra algozes supremacistas. Para essa aventura, ele se alia com uma conhecida colega de escola, Letitita “Leti” Lewis (Smollett) e seu sagaz e sábio tio, George (Courtney B. Vance).

Ainda que o roteiro destine apenas o ato final para explorar com avidez as incursões sobrenaturais, todo o restante do capítulo rende-se a um poderoso e assertivo drama guiado por personagens bastante complexos. Atticus carrega consigo traumas beligerantes que destinam-se, por enquanto, ao âmbito intimista, com potencial gigantesco para explorações futuras. Apaixonado pelos escritos de Lovecraft, ele encarna o ditado “o bom filho à casa torna” e se vê, pela primeira vez em muito tempo, na companhia de seus iguais – em uma Chicago que oferecia centelhas de esperança para pessoas constantemente maltratadas pelas reminiscências da escravidão. Entretanto, sua missão é outra: reencontrar o pai, que simplesmente sumiu do mapa.

Desde o princípio, Atticus tem certas pistas de onde seu pai pode ter ido parar – mas o complexo contexto histórico fala mais alto em diversos momentos e nos faz esquecer do pano de fundo principal. Diferente do que poderíamos imaginar, essa “leviandade” é proposital e é conduzida com maestria por Yann Demange, transformando as reflexões antropológicas em um categórico arco com diversas ramificações; em outras palavras, nota-se que a essência panfletária e documentarista deixa de existir em prol de uma amálgama artística que preza pelo drama fictício respaldado na realidade. O trio protagonista enfrenta olhares de desprezo conforme atravessando as estradas interioranas dos EUA a caminho de Devon County e ficam à beira da morte várias vezes. Demange e Green, unindo forças e gerando uma belíssima e exuberante arquitetura, imprimem um conhecimento descritivo que, apesar de fugir do didatismo exacerbado, nos leva a inferir sobre o que estão falando com detalhes irretocáveis.

Um outro ponto alto que delineia-se no episódio de estreia é a bela química entre os personagens: para além da performance epopeica de Majors, Smollett faz um belo impacto como a ousada Leti, uma ambiciosa e revolucionária jovem que luta pela igualdade racial e não mede esforços para ajudar quem precisa; de outro lado, Vance rende-se a outra atuação sem esforços, mostrando vulnerabilidade e força em apenas um relance do olhar. Novamente, percebe-se a cautela da própria narrativa em não entregar cada uma das camadas de personalidade dos protagonistas, permitindo que eles exultem um movimento de expansão e introspecção e levem o público para circinais inflexões que nem ao menos tangenciam o exagero cênico.

De fato, Lovecraft Country traz um pouco de tudo para as telinhas, não pensando duas vezes antes de homenagear clássicos do sci-fi e do terror, como Guerra dos Mundos, ‘Marte Ataca!’ e Drácula – do modo mais extemporâneo que se possa imaginar. Além disso, Green mostra um apreço apaixonante pelo saudosismo artístico do cinema de gênero, permitindo que a estética audiovisual atravesse as eras sem perdas ou hipérboles concernentes à coesão: a simplicidade da série é refinada com uma adoração a si mesma, uma metalinguagem que não necessariamente é narcisista, e sim mimética para o melhor.

No final das contas, o convite está aberto – e é tentador por todos os motivos certos. Não temos ideia do que nos aguarda no futuro; porém, sabemos de uma coisa: há algo espreitando na escuridão e, por mais arrepiante que seja, não conseguimos deixar de querer saber a que isso irá nos levar.

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