Harlan Coben é um dos autores mais conhecidos do mercado literário contemporâneo e ganhou proeminência em meados dos anos 1990 com suas envolventes publicações de mistério e suspense, normalmente voltados a fantasmas do passado e questões não resolvidas que causam uma reviravolta no mundo dos complexos protagonistas que traz à tona. Ao longo de dezenas de obras, Coben ascendeu a um dos romancistas mais bem sucedidos da atualidade, com inúmeros livros sendo adaptados para o cinema e para a televisão, como a aclamada produção francesa ‘Não Há Segunda Chance’, que levou para casa diversos prêmios europeus. Agora, chegou a vez da Netflix investir em mais um título para seu catálogo espanhol com ‘O Inocente’, também baseada na narrativa homônima do autor lançada em 2013 no Brasil através da Editora Arqueiro.
Através dos três primeiros episódios que foram disponibilizados para a crítica, nota-se que o gênero thriller tem um lugar especial não apenas na gigante do streaming, mas também em diversas outras emissoras e plataformas. Apenas nas últimas semanas, Kate Winslet encarnou a protagonista da ovacionada ‘Mare of Easttown’, investigando o brutal assassinato de uma jovem garota, enquanto Sarah Paulson retomou as discussões sobre a Síndrome de Munchausen com ‘Fuja’ e Deborah Ayorinde lutou contra forças sobrenaturais (e seus próprios vizinhos) na impactante ‘Them’. Aqui, é Mario Casas quem rouba os holofotes como o complexado Mateo Vidal, acusado injustamente de assassinato e mantido em cárcere durante quatro longos anos, enquanto observava impotente toda sua vida virar de cabeça para baixo.
Mat, como é apelidado, era apenas um jovem estudante de direito que, numa noitada, foi arrastado para uma briga e acabou empurrando um de seus agressores contra a calçada, causando uma concussão que lhe tirou a vida. Após um extenso julgamento, ele é mandado à prisão, onde desenvolve uma armadura contra pressões externas e aguarda pacientemente até sua pena chegar ao fim, retomando a vida de onde parou e aliando-se ao irmão para um escritório de advocacia. É depois de conhecer e se envolver com a sedutora Olivia Costa (Aura Garrido) que Mat percebe que histórias não resolvidas de uma época que acreditou ter acabado podem alcançá-lo com a força mortal de uma locomotiva – ainda mais porque Olivia, a pessoa em quem mais confia, esconde segredos obscuros.
É um fato dizer que a obra, em si, vale mais pela dinâmica narrativa do que pela originalidade técnico-artística vista em tantas modalidades semelhantes. De certa forma, é inegável construir comparações entre esta série e tantas outras que vieram antes dela, principalmente dentro do panteão Netflix. As construções estéticas são bem parecidas no tocante dramática e ousam, volta e meia, para enquadramentos diferenciados ou uma fotografia que fuja do convencional, apostando fichas nos arcos dos protagonistas e coadjuvantes e em uma humanização da “epopeia heroica” que costuma acompanhar tramas desse tipo. É por esse motivo que o respaldo de personalidade de Mat soe um pouco pré-determinado, a princípio, antes de deixar que conhecemos suas inseguranças e seu lado mais vulnerável.
Enquanto Casas faz um trabalho consideravelmente coeso no piloto, é Alexandra Jiménez quem nos conquista e nos carrega para os próximos capítulos. A atriz é engolfada em um melancólico enredo que apresenta a traumática backstory de Lorena Ortiz, que, quando criança, presenciou o suicídio do pai e nunca mais se abriu para ninguém. Recusando-se a ter uma família e transformando-se em uma máquina de resolver crimes, Lorena escondeu todos os seus sentimentos em prol da fria lógica que alavancaria a carreira como detetive local e colocaria no centro de uma engrenagem perigosa que envolve a obtusa morte de uma freira (Juana Acosta) e uma organização criminosa que estende ramificações inclusive para os oficiais de justiça.
A minissérie ganha ambivalência não apenas pela intrincada história, que tangencia os aspectos da antologia e garante que cada construção seja metaforicamente transformada em um arquétipo da sociedade urbana, mas também por uma condução ágil, frenética – que, em virtude desse frenesi desmedido, se extenua mais rápido do que o imaginado. A identidade visual mantém-se intacta pela multiplicidade laboral de Oriol Paulo (showrunner, criador, diretor e roteirista da produção), mas deixa se levar pelas demasiadas informações que transbordam a tela e saem dos trilhos aqui e ali. Felizmente, os deslizes pontuais são ofuscados pela soberba e diabolicamente sórdida química do elenco e pela densa atmosfera que paira em cada gancho e cada twist.
É preciso dizer que, no final das contas – e relembrando que analiso, aqui, os três episódios iniciais do show -, ‘O Inocente’ começa mais acertando do que errando, mesmo que deixe uma sensação frustrante por não conseguir resolver qualquer incursão secundária e por abrir mais e mais questões a cada minuto que passa. Enquanto o restante das iterações não é disponibilizada na Netflix, podemos apenas esperar que as coisas caminhem para um catártico clímax e consigam resolver o que pode ser um dos melhores mistérios de 2021.