Desde sua estreia, ‘Coringa’ tem sido o filme mais comentado nas redes sociais. Com mais de dois milhões de público, o espectador brasileiro já se deu conta de que o filme não é mero entretenimento; ao contrário, é uma história que precisa ser debatida, conversada e explicada por diversos vieses, afinal, a densidade com que os temas são abordados no longa de Todd Phillips são muito impactantes.
Na tentativa de esclarecer alguns dos pontos principais do longa, nós do CinePOP estamos fazendo uma série de matérias especiais abordando várias áreas de conhecimento. Hoje convidamos o psicólogo clínico e mestre em psicopedagogia Mario Dias para conversar sobre os pontos mais conflitantes de ‘Coringa’ e o quanto a construção desse personagem está diretamente ligada à nossa realidade.
Primeiramente, é importante observarmos o condicionamento de Arthur Fleck, pois logo na abertura do longa ficamos sabendo que ele tem uma espécie de distúrbio, que o faz não possuir controle sobre sua risada marcante e incômoda.
Sobre isso, Mario Dias comenta que “as causas orgânicas, por vezes minúsculas, podem ser a base de muitos distúrbios de personalidade, como a sociopatia e psicopatia – dois diagnósticos prováveis para o Coringa. Se os problemas mentais de Arthur têm um fundo orgânico, como uma má formação congênita no cérebro ou um desequilíbrio químico, torna-se possível que ele tenha respostas incomuns a situações de estresse. As risadas seriam de fato incontroláveis e possivelmente intratáveis. O mesmo podemos dizer da personalidade do Coringa, pois se esta é fruto de um problema orgânico, ela acabaria aparecendo mais cedo ou mais tarde. Uma pessoa pode responder a situações de conflito de maneiras inusitadas, com risos ou gargalhadas diante de fortes gatilhos. Não sendo uma condição psicológica ou psiquiátrica, o mais provável é que estas respostas sumam ou amadureçam com o tempo”.
Para além do filme, o terapeuta ressalta que “caso as risadas tenham origem em desvios, elas podem sim ser tratadas, mas cada caso precisa ser avaliado, pois não existe uma fórmula mágica que possa ser aplicada a todos de maneira uniforme”.
Ainda sobre a questão do riso, destacamos que Penny Fleck, mãe de Arthur, é a pessoa que sempre pede para que ele seja feliz, que coloque um sorriso no rosto. No filme anterior, com Heath Ledger, essa exigência já tinha sido apontada. Essa pressão familiar e social contribuiria, então, para uma positividade tóxica?
O psicólogo responde: “sim existe uma positividade tóxica. Talvez não como você imagine. O conflito é inerente à natureza humana, não existe relação afetiva sem que haja conflito. Entender que os conflitos existem e que muitos não podem ser evitados faz parte do nosso crescimento emocional. Pessoas extremamente felizes podem estar em episódios maníacos, que podem ser entendidos como o oposto diametral da depressão. Os episódios maníacos levam a comportamentos preocupantes, como a adição, conflitos sociais, busca por situações de risco, descontrole financeiro, percepção de grandiosidade e, em alguns casos, uma ilusão de invulnerabilidade”.
Tudo isso nos leva a pensar que o controle constante das próprias emoções e uma Gotham que não o insere em seu meio leva o personagem Arthur Fleck ao que a psicologia chama de ponto de ruptura.
Sobre isso, Mario Dias salienta que “apesar da pauta do filme ser um drama sobre um personagem de quadrinhos, ela se baseia fortemente em situações reais de estresse e conflito, portanto, a ruptura – como você aponta e como acontece no filme – é bem próxima do que podemos encontrar na “vida real”. De uma forma geral, os personagens da galeria de vilões de Batman, assim como o próprio Homem-Morcego, têm origens bem próximas das tragédias comuns, que infelizmente encontramos diariamente trabalhando com a saúde mental. O ponto de ruptura é individual. Problemas que me afetam profundamente podem ser rotineiros para você ou outra pessoa. Não existe um índice que possa servir de marcador para identificar acúmulo de sofrimento. Estresses diários, conflitos emocionais constantes, problemas no trabalho ou até mesmo um incidente insignificante, como perder um objeto, podem disparar as mais diversas reações. Tudo depende do investimento emocional de cada um. Contudo, existe uma questão ainda mais importante: devemos nos perguntar se Arthur Flecker já nasceu sendo o Coringa. Se este for o caso, não poderíamos fazer nada, ele se tornaria o vilão independentemente de amor ou carinho”.
Outro ponto que anda sendo comentado acerca este e outros filmes recentes de super-heróis é sobre uma possível romantização dos vilões, algo que muitas pessoas têm se incomodado por se verem sentindo empatia por sujeitos que deveriam ser odiados. Uma vez que os vilões são personagens necessários para a construção de certas narrativas, o psicólogo Mario Dias aprofunda a questão, apontando que “dizer que o Coringa é um vilão e ignorar os abusos cometidos pelo Batman em sua cruzada contra o crime é igualmente problemático. Claro que o resultado final da narrativa sempre favorece o herói, mas porque estamos falando de histórias. Não existe uma linha clara entre heróis e vilões na nossa realidade. O filme narra uma história de conflitos e angústias, e escolhe como protagonista um vilão notório”.
O terapeuta ainda ressalta que esta abordagem não é inédita no cinema, e levanta outros filmes em que o artifício foi utilizado. “Será que nós estaríamos discutindo isso se o filme fosse sobre um personagem inédito? Criado especificamente para esse roteiro? O Coringa líder anarquista da obra de Todd Phillips é essencialmente diferente dos personagens de Edward Norton e Brad Pitt em ‘Clube da Luta’? Um filme que descreve um personagem com problemas psicológicos, que cria uma personalidade nova para guiar um grupo de anarquistas? Não…. mas ninguém aponta Norton e Pitt como vilões do filme. Scar, Darth Vader, Goldfinger são vilões famosos e romantizados, sem os mesmos problemas. Por isso, penso que devemos nos perguntar se nós como sociedade não estamos mais doentes e com medo dos problemas que estamos criando a ponto de precisar criar um problema literalmente fictício para nos distrair dos problemas reais”.
Por esse caminho, podemos começar a entender que Arthur Fleck e Coringa não seriam, ao fim, a mesma pessoa. “O Coringa é uma resposta dissociativa, uma defesa, uma personalidade mais forte que a de Arthur Fleck, mais adaptada à realidade em que eles viviam”, explica o psicólogo. “Para conseguir sobreviver ao caos, ele opta por uma personalidade próxima à sociopatia, que pode ser entendida como a resposta emocional de inconformidade violenta às normas sociais. Como sociopata ele se sente livre para matar e mudar o mundo em que vive”.
Mario Dias destaca que existe um elemento dissociativo no Coringa de Joaquin Phoenix: ‘quando ele vira o Coringa, ele deixa de rir de forma assustadora em situações de estresse. O riso desconfortante vira a dança, que pode ser entendida como o controle do corpo e do entorno. O Coringa dá a Arthur Fleck a liberdade e o controle emocional que ele precisava, mas o faz, em última análise, de forma caótica e pouco construtiva”.
Tudo isso nos leva à questão: será que toda essa construção não teria tornado o filme ‘Coringa’ um filme tóxico? “É primordial entender que todos temos um limite, seja físico, cognitivo ou emocional. Conhecer estes limites nos ajuda a buscar ajuda e, com isso, evitar situações mais trágicas”, comenta o psicólogo. “Coringa é um filme impactante, pois surpreende transformando um personagem de quadrinhos em um anti-herói. Ninguém esperava que ele fosse tão realista, e isso assustou a crítica, que ficou sem ter como descrever a obra”.
O problema sobre este filme residiria, então, em nossa sociedade, na forma como estamos recebendo este ‘Coringa’. Mas isso é assunto para nossa próxima matéria.