Quando participou de E.T. – O Extraterrestre em 1982, um dos filmes mais amados da história do cinema, a então pequena e engraçadinha Drew Barrymore entraria para os anais da sétima arte como uma das sensações mirins dos anos 80. Hoje, ela é um dos maiores exemplos de carreiras começadas na infância que deram certo. Uma estrela estabelecida em Hollywood, dona de inúmeros sucessos e inclusive dona de sua própria produtora de cinema (que retém os direitos de franquias como As Panteras, por exemplo), além de ter se adaptado muito bem aos novos tempos na TV – seja através de parcerias frutíferas com a Netflix ou por ter criado seu próprio talk-show -, definitivamente Drew Barrymore é o que podemos citar como “power house” da indústria.
Existe, porém, um período sombrio na vida pessoal de Drew Barrymore, que refletiu em alguns de seus trabalhos. A ausência de uma figura paterna, e a criação de Jaid Mako (sua mãe) não exatamente exemplar (para dizer no mínimo), levaram a menina de então 9 anos de idade a iniciar um processo autodestrutivo ao ter contato com álcool e dois anos depois ingressar nas drogas. Some a isso a depressão, entradas e saídas de clínicas de reabilitação e a tentativa de suicídio aos 14 anos, fatos que fizeram de Drew Barrymore uma das jovens estrelas mais problemáticas de Hollywood. Em 1995, a atriz posaria para a revista masculina Playboy. Essa história, ainda bem, terminou de forma positiva, com Barrymore se reinventando aos novos tempos e hoje criando de forma própria e digna suas duas filhas.
No meio deste turbilhão pelo qual passou, mais precisamente no início dos anos 1990, Drew Barrymore saía da infância e mudava a imagem da criança fofinha de E.T. para a de uma jovem Femme Fatale. Nesse período, muitos produtores decidiram capitalizar em cima da imagem de Bad Girl conquistada pela atriz e a colocaram para estrelar longas provocativos e eróticos. Talvez o pontapé inicial e ápice deste momento em sua carreira seja o filme Relação Indecente (Poison Ivy no original – algo como Hera Venenosa), lançado em 1992. O longa completa 30 anos de estreia em 2022, e apresenta uma Drew Barrymore que o público mais jovem, acostumado com a imagem que a estrela tem hoje – de “tiazona do pavê” -, nem imagina que ela teve um dia. Mas é justamente deste thriller erótico, baseado, em partes, em uma história real, que iremos falar aqui nesta matéria.
Relação Indecente marcou sua estreia em janeiro de 1992, no prestigiado Festival de Sundance, a casa do cinema independente norte-americano. Bancado e distribuído pela New Line Cinema, antes do estúdio se tornar subsidiário da Warner, o longa teve um orçamento pequeno, mostrando seus ares de filme indie, de US$3 milhões. É preciso lembrar que nesta época, Drew Barrymore saía da carreira mirim para mostrar que era uma bela jovem mulher madura, embora na época do lançamento a atriz tivesse apenas 17 anos de idade, sendo ainda menor. A estreia oficial em grande circuito do longa nos EUA ocorreria no dia 8 de maio, e no Brasil chegaria no dia 2 de julho do mesmo ano de 1992.
A história é simples e direta. Drew Barrymore interpreta uma jovem loira e fatal conhecida como Ivy – embora nunca fiquemos sabendo seu verdadeiro nome durante o filme. Ela faz amizade com Sylvie (papel de Sarah Gilbert) e as duas logo se tornam melhores amigas. Sylvie é uma adolescente introvertida e solitária, e Ivy é tudo que ela deseja ser. Vinda de família rica, Sylvie leva a andarilha nova melhor amiga para dentro de sua casa, onde a loira fatal começa a se meter nas vidas dos pais de Sylvie. Ela seduz o patriarca Darryl (Tom Skerrit) e começa a jogar para escanteio a reclusa, deprimida e enferma Georgie, a mãe, papel de Cheryl Ladd. Aqui é onde temos uma destas coincidências curiosas. Ladd foi a pantera Kris Munroe no seriado As Panteras, de 1977 a 1981. E como sabemos, anos mais tarde, em 2000, seria a vez de Barrymore estrelar a primeira versão para o cinema do programa.
Relação Indecente é um filme feminino em seu núcleo, mesmo que há 30 anos no passado produções deste tipo fossem ainda muito raras. Acontece que o longa foi escrito por uma mulher, e também dirigido por uma mulher. Melissa Goodard foi quem bolou a história e escreveu o roteiro. A ideia saiu de uma experiência pessoal da roteirista, quando ela recebeu em sua casa uma amiga, que passou a viver com sua família. Em pouco tempo, a tal amiga havia seduzido o padrasto de Goodard, fazendo a roteirista criar a personagem de Sarah Gilbert no longa para usar como sua persona nesta história.
Ah sim, e caso você esteja se perguntando onde se encaixa Leonardo DiCaprio nesta história, o ator que é um ano mais velho que Barrymore e já tinha 18 anos, havia protagonizado seu primeiro filme para o cinema no ano anterior, com o “terrir” Criaturas 3 (1991). Aqui, no entanto, para o bem ou para o mal, DiCaprio é creditado apenas como “Rapaz”, não tem nenhuma fala sequer e vive um dos alunos na sala de aula das protagonistas – embora muitos afirmem que ele não aparece no longa, tendo sua cena sido cortada. DiCaprio, é claro, ganharia sua revelação logo no ano seguinte, em filmes como O Despertar de um Homem (com Robert De Niro) e Gilbert Grape: Aprendiz de Sonhador (com Johnny Depp). Em 1995, chamaria atenção com Diário de um Adolescente.
Voltando ao tópico feminino de Relação Indecente, o filme foi dirigido por Katt Shea, pupila de Roger Corman em filmes B de baixíssimo orçamento. A diretora acreditava que essa seria sua grande chance de adentrar o time principal de Hollywood. Não foi o caso. Filmado em 35 dias, a produção viveu para se tornar um fracasso financeiro nas bilheterias em sua estreia, ficando em vigésima posição no ranking dos filmes mais rentáveis daquele fim de semana nos EUA. Em tal fim de semana, quem dominava as bilheterias era outro suspense erótico, este se tornando extremamente popular, querido até hoje, e fazendo de sua protagonista, Sharon Stone, uma estrela renomada internacionalmente. É claro que me refiro à Instinto Selvagem, o grande campeão do ranking. O desempenho de Relação Indecente foi tão pobre junto ao público em seu lançamento, que ficou atrás até de Orquídea Selvagem 2, um fiasco pouco lembrado que não conta com nenhum dos atores do original – apenas com o mesmo diretor. Coincidentemente, no elenco desta sequência temos o mesmo Tom Skerrit.
Mas nem tudo estava perdido para Relação Indecente. O fracasso do filme fechou portas para a cineasta Katt Shea, ao invés de abri-las como ela esperava, mas foi graças ao auge das videolocadoras – que começou seu boom nos anos 1980 – que diversos filmes como Relação Indecente puderam ver uma segunda chance rumo ao sucesso e ao consciente coletivo dos espectadores. O longa ressurgiu em fita nas locadoras, onde fez tanto barulho que encorajou os produtores a lançarem mais duas continuações (direto em vídeo).
Fora isso, é dito que Relação Indecente inaugurou uma nova onda de thrillers eróticos protagonizados por ninfetas sedutoras, subgênero que os especialistas chamaram de “lethal Lolita” e “slutsploitation” – gerando outros longas no estilo protagonizados pela própria Barrymore (A História de Amy Fisher e Enigma Mortal), Alyssa Milano (A Sedução do Mal e Instinto Sedutor) e até mesmo Alicia Silverstone (Paixão sem Limite e Uma Babá Objeto do Desejo). E foi graças a esse ressurgimento em vídeo que Katt Shea pôde seguir com sua carreira no comando de produções como A Maldição de Carrie (1999) e mais recentemente Nancy Drew e a Escada Secreta (2019), com Sophia Lillis.
Relação Indecente capitalizou em cima da figura de “garota selvagem” de Drew Barrymore – que na época ia a talk-shows como o de David Letterman e levantava sua blusa para o apresentador. Foi um marco importante para a transição e amadurecimento da “garotinha de E.T.” como sua peça-chave na forma como a atriz era percebida então. Em recente entrevista em seu novo programa, Barrymore recebeu Sarah Gilbert, hoje uma lésbica assumida. Gilbert revelou que seu primeiro beijo com uma mulher ocorreu nos bastidores de Relação Indecente, com a então selvagem Drew, e que considerava a jovem atriz a pessoa mais “legal” que já havia conhecido, relatando a forma como a estrela adolescente dançava no capô de carros. Esse trecho emocionante pôde ser encontrado online.
Tudo que nos ocorre é parte essencial de nossa construção evolutiva. E ao olharmos para trás, podemos notar que, há trinta anos, Relação Indecente, considerado trash por uns, e cult por outros, faz parte do sucesso que se tornou a carreira de Drew Barrymore.