A mente artística de Beyoncé é algo que sempre esteve em pauta de discussão.
Tendo começado sua carreira oficialmente em 1997 ao integrar o grupo Destiny’s Child, Beyoncé sempre se uniu a nomes de grande calibre para revolucionar não apenas a si própria, mas também a indústria musical. Não é surpresa que ela seja considerada um dos ícones do R&B e do pop dos anos 2000, desde o lançamento de seu primeiro álbum solo, ‘Dangerously in Love’, passando pelo subestimado ‘4’ e culminando em uma profunda mudança estilística que ocorreria a partir de 2013 com o aclamado disco homônimo que inclusive sacudiu as bases do cenário fonográfico. E, se em 2016 ela entregou aos fãs sua magnum opus com o testamentário e celebratório ‘Lemonade’, ninguém poderia imaginar o que ela vinha nos preparando para seis anos mais tarde.
Em 2022, o mundo clamava pelo retorno da Queen B à música – o que ela já tinha feito ao lado do marido, Jay-Z, com o compilado ‘The Carters’, e até mesmo com sua releitura do clássico ‘O Rei Leão’ através das incursões ‘The Gift’ e ‘Black Is King’. Todavia, seria com o anúncio de ‘Renaissance’ (primeiro capítulo de uma importante trilogia) que ela voltaria a chamar nossa atenção, fazendo um glorioso comeback que, em pouco tempo, marcou década e reiterou sua enorme importância cultural mainstream. Com um total de dezesseis faixas impecáveis, o álbum ergueu-se em um arauto de homenagem a estilos originalmente arquitetados pela comunidade negra dos Estados Unidos e possibilitou uma ampla discussão sobre o resgate de elementos que haviam sido apropriados por musicistas brancos.
A princípio, é preciso comentar que toda a estrutura do disco é pautada em uma confluência de samples utilizados com inteligência ímpar e que transforma o compilado em um encontro entre passado e presente. Infundido em espetaculares arranjos de house e dance, seja nas batidas bem demarcadas de “BREAK MY SOUL”, no sensual pot-pourri de “PURE/HONEY” ou na eletricidade reverberante de “ALIEN SUPERSTAR”, Beyoncé une-se a um time de habilidosas mãos por trás da composição e da produção que exalta uma necessidade de dar os devidos créditos a quem promoveu a revolução – e a quem utilizou a música em si como arma política, identitária e racial para reafirmar seu lugar no planeta.
Se pararmos para pensar, a essência house e dance promovida por ‘Renaissance’ é um convite a revisitar a história como ela realmente é. Tais subgêneros da música eletrônica partiram de uma remodelação do disco, em que DJs como Frankie Knuckles, Ron Hardy, Jesse Saunders e tantos outros desejavam fornecer uma atmosfera mais mecanizada a essas faixas. Então, a partir do final dos anos 1980, essas investidas culturais ganharam força no mainstream e começaram a viralizar ao redor do mundo – ora, não é surpresa que encontremos marcas registradas do house clássico desde “Vogue”, de Madonna (que ajudou a popularizar o estilo), passando por “Waiting for Tonight”, de Jennifer Lopez (aqui, incorporando-se à ascensão do latin house), e culminando em tracks recentes como “Rain On Me”, de Lady Gaga e Ariana Grande, e “Contact”, de Kelela.
E é a partir daí que Beyoncé permite que o house ganhe uma nova dimensão, não sagrando-se a porta-voz de um movimento contracultural de extrema importância, mas utilizando a plataforma pela qual lutou a vida inteira para resgatar nomes que merecem maior destaque e reconhecimento. Ora, temos menções a Donna Summer e Giorgio Moroder em “SUMMER RENAISSANCE”, enquanto Kilo Ali é sutilmente transposto às interpolações de “AMERICA HAS A PROBLEM”. Mais do que isso, a artista permite que as faixas tragam temáticas importantes para discussão e que tomaram fortes proporções ao viralizarem nas redes sociais – ora, é só pensarmos na promoção da liberdade sexual com “CUFF IT” e “PLASTIC OFF THE SOFA”, ou nas pautas raciais que emergem com “COZY” e “HEATED” (todas mascaradas com um hedonismo diabolicamente apaixonante e energizante).
Beyoncé também usa a plataforma para garantir que a comunidade queer seja aplaudida como deve – novamente, buscando as raízes da cultura clubber de Chicago. Não é surpresa que ela pinte a bandeira LGBTQIA+ com uma textura deliciosa em “COZY”, ou que ela mencione diretamente uma de suas maiores inspirações – seu Tio Johnny, a quem inclusive agradeceu ao receber a estatueta de Melhor Álbum Eletrônico no Grammy Awards – em “HEATED” (duas faixas que já foram comentadas no parágrafo acima). Como se não bastasse, há a presença de Big Freedia em um rearranjo geracional que nos enche os olhos e que garante uma proximidade de suma importância, algo que apenas uma artista do calibre da nossa Queen B poderia fazer.
Completando dois anos no dia de hoje, 29 de julho, ‘Renaissance’ já carrega um impacto significativo na cultura pop – e esse legado é reiterado pelas inúmeras discussões que despertou desde seu lançamento. O álbum foi apenas o primeiro passo para que Beyoncé pudesse resgatar os estilos musicais que foram criados pelas comunidades afro-americanas ou que beberam dessas mesmas comunidades, nos envolvendo em um vórtice explosivo do mais puro prazer sonoro e de um cuidado detalhista de tirar o fôlego. Não é por qualquer motivo que o compilado já possa ser considerado não apenas um dos melhores da década, mas do século XXI – reafirmando o intocável status da performer.