“Nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”.
Na autobiografia epônima lançada em 2016, Rita Lee já sabia que essa era a frase que gostaria de colocar como epitáfio, após a morte. A cantora, compositora e multi-instrumentista brasileira, que se tornou um dos maiores ícones da música mundial em poucos anos desde sua estreia no cenário fonográfico, nunca pensou duas vezes antes de falar o que pensava e utilizava a arte que lhe havia sido concedida para falar de assuntos importantes e “jogar sal nas feridas” abertas do Brasil.
No último dia 08 de maio, Lee infelizmente faleceu, aos 75 anos, em virtude de um estado de saúde precário decorrente do câncer de pulmão. Entretanto, ainda que seu corpo tenha deixado o plano terreno, seu legado viverá mais forte do que nunca – visto que continua a inspirar diversas gerações de artista com uma sagacidade imortal e uma discografia nada menos que lendária. Ora, não é nenhuma surpresa que a cantora apareça em listas e mais listas de “melhores de todos os tempos”: dona de uma voz inconfundível e de uma lírica ácida, cada uma de suas canções foi arquitetada de forma a fundir música e imagem, som e cor, diluindo as barreiras entre as artes em prol de uma idiossincrasia invejável e apaixonante.
Já nos anos 1960, Rita uniu forças com Arnaldo Baptista e Sérgio Dias para fundar a banda Os Mutantes. Além de assinar os versos e emprestar os vocais, ela também ficava responsável por tocar flauta e percussão, e se aventurava pelo banjo e pelo sintetizador de forma a construir jornadas fonográficas inesquecíveis – como “Ave, Lúcifer”, “Ando Meio Desligado”, “Não Vá Se Perder Por Aí” (esta contando com a colaboração de Raphael Tadeu e Roberto Loyola) e “Panis Et Circenses”. Já aqui, o grupo trazia inovações para o mundo da música nacional, apostando fichas em gêneros e subgêneros que não eram muito populares – como o rock psicodélico, o rock progressivo e o tropicalismo (que inclusive se espalhou para outros âmbitos culturais e viria se consagrar como o movimento Tropicália).
Para aqueles que não conhecem a história ou não se recordam, eventualmente Lee foi expulsa do grupo por Baptista – que assinou um contrato com a gravadora Polydor por conta própria, ou seja, sem incluir os outros integrantes, visto que os executivos da companhia queriam lançá-la em carreira solo. E foi a partir daí que ela ascendeu a uma fama esplêndida e muito maior que poderia ter imaginado – consagrando-se como uma vanguardista inata em 1975, com o lançamento de ‘Fruto Proibido’, realizado em parceria com a banda Tutti Frutti. Com apenas 37 minutos de duração, a obra se tornou um marco na história do rock brasileiro e influenciou todas as gerações que se seguiriam depois – guiadas pelo desmembramento sônico da faixa-título, de “Agora só Falta Você” e “Esse Tal de Roque Enrow”, apenas para citar algumas.
Mas isso não é tudo. A importância de Rita não se limitou apenas à música, mas a uma configuração complexa de como ela se inseriria dentro da sociedade: ao longo de sua carreira, temos canções que falam sobre empoderamento feminino e o papel fundamental da mulher como parte da engrenagem democrática; sexo; drogas; irreverência e rebeldia; entre muitos outros temas. De um lado, “Ovelha Negra” preza por uma libertação identitária, dizendo que está tudo bem em não pertencer a algum lugar – uma hora ou outra, você vai se encontrar; de outro, “Amor & Sexo” traz o melhor da MPB à tona em uma cândida melodia que utiliza metáforas certeiras sobre o que significa amar e o que significa o desejo carnal – ambos necessários para qualquer pessoa. É notável como esse movimento de vai e vem é constante em seus discos e singles – e é isso que nos encanta.
Ativista ferrenha, Lee emprestou sua voz para lutar por causas importantes, vivendo sob a Ditadura Militar que acometeu o Brasil por mais de duas décadas e fazendo questão de aporrinhar o autoritário e repressor Estado que dominava o país. E ela se manteve em militância até nos dizer adeus, recusando-se a falar com meias palavras e dando todas as cartas do jogo para se fazer entender. Ora, Rita foi até mesmo presa por um ano e teve de pedir permissão para poder sair de casa e fazer seus shows.
Sua visão crítica sobre o país em que morava e sobre o próprio mundo perduraria por anos a fio, garantindo que fosse centro de polêmicas inexplicáveis que aterrorizavam os conservadores e retrógrados. É só nos lembrarmos da controversa narrativa de “Obrigado Não”, que integrou seu álbum ‘Santa Rita de Sampa’, de 1997. A canção faz questionamentos sobre legalização da maconha, do exacerbado maniqueísmo nacional, da ditadura, das falácias dos políticos – que posam como perguntas retóricas, visto que as respostas já conhecemos. E ela nunca deixaria que forças externas a impedissem de ser quem bem quisesse – ciente de que tem defeitos e qualidades e que não é melhor que ninguém (apenas alguém que tem uma perspectiva diferente dos outros).
Os fios entremeados do legado de Rita Lee vão de Gilberto Gil e Tim Maia a Pitty e NX Zero. Sua importância atravessa gerações e é revisitada ou redescoberta ano após ano; não é surpresa que sua partida deixará muitas saudades, mas, como ela bem disse, está “de alma presenta no céu, tocando minha autoharp e cantando para Deus: ‘thank you, Lord, finally sedated’”.