FRAMES DO TERROR
A hora e a vez dos palhaços assassinos
Em 2016,os palhaços macabros voltaram a habitar o imaginário cinéfilo. A refilmagem de It, adaptação da obra de Stephen King, e 31, nova insanidade audiovisual do cineasta Rob Zombie, demonstraram que a carga dramática destes personagens ainda não se esgotou. Com isso, as primeiras aparições de pessoas fantasiadas de palhaços em momentos pouco comuns em ruas e esquinas dos Estados Unidos foram encaradas como possíveis campanhas de marketing para os filmes citados.
Após o descarte das hipóteses, o medo e a aflição começaram a ganhar espaço. Assim como as pessoas ficaram com medo de entrar no mar depois de assistirem ao filme Tubarão, alguns cidadãos deixaram a sua coulrofobia (termo psicanalítico para medo de palhaços) aflorar. Os estadunidenses, sempre férteis no que tange aos temas da psicopatia, foram os primeiros a registrar casos.
Um homem misterioso apareceu nos arredores de um condomínio na Carolina do Sul, vestido de palhaço. De acordo com os relatos, tentou atrair crianças para uma floresta próxima. Ao informarem aos pais, rumores baseados neste fato isolado começaram a se espalhar, instalando desconforto na sociedade. Algumas semanas depois, na Alemanha, um jovem tentou assustar um grupo e foi atacado. Na Áustria, no mesmo período, um rapaz de 19 anos foi abordado e atacado por um trio de jovens transtornados, sendo que um deles estava vestido de palhaço.
Diante de tais registros, agora numa escala global-ocidental, a questão tornou-se uma preocupação pública, gerando matérias oportunistas e debates na mídia convencional e amadora. Não demorou a chegar a notícia de que Jonathan Martin, de 20 anos, havia sido preso, também nos Estados Unidos, por usar máscara em local público e apresentar comportamento desordeiro. Ele circulava pelos arredores de uma região arbórea e saltava na frente dos carros visando pregar peças assustadoras entre os que circulavam naquela área.
Mediante os acontecimentos, as associações cinematográficas são inevitáveis. Basta jogar na internet termos como “palhaço”, “clown”, “assassinos”, dentre outros. Há uma avalanche de informações transbordando na esfera virtual, bem como nos perfis de redes sociais, aplicativos e no boca a boca nosso de cada dia. Termos como “parece com aquele filme” ou “isso é a sua cara, amigo” ao relatar tais acontecimentos numa conversa, sendo o emissor ciente da minha relação com a crítica de cinema, são bastante comuns.
Nos anos 1980, o cineasta Victor Salva, conhecido pelos filmes da franquia Olhos Famintos, dirigiu o assustador Palhaço Assassino. Na trama alguns jovens são perseguidos por três fugitivos de um hospício, todos vestidos com a fantasia circense. Ao seguir a cartilha slasher, a perseguição é implacável, atormentando os personagens e o público, tamanha a catarse diante da trama bem concebida. It – Uma Obra Prima do Medo e Palhaços Assassinos do Espaço Sideral são as obras que complementam o cânone do subgênero. O cineasta Eli Roth, da franquia O Albergue, também produziu a sua versão sanguinária para o tema em 2014, mas não teve tanto êxito.
Para completar os registros da memória, há o famoso caso de John Wayne Gacy, o “verdadeiro” palhaço assassino, um dos assassinos em séries mais conhecidos dos Estados Unidos. Casado e com família, Gacy matou vários jovens e enterrou no porão da sua casa. Conhecido na vizinhança por frequentar eventos vestido de palhaço, a sua trajetória foi elemento fértil para a indústria cinematográfica, campo que inclusive investiu numa irregular cinebiografia em 2010.
Com tantas referências cinematográficas, os acontecimentos da realidade se confrontam com os relatos ficcionais criando uma zona bem próxima do que concebemos por lenda urbana. Há notícias verossímeis, mas também os oportunistas de plantão e as suas matérias de caráter duvidoso, mesmo quando veiculadas em “meios oficiais” ou “autorizados”.
Em Green Bay, a polícia alegou que não pode fazer nada porque não há lei alguma que aponte irregularidade ou proíba alguém de se vestir de palhaço em público. A preocupação na cidade veio na esteira da presença de um homem misterioso vestido de palhaço, a carregar balões escuros e circular pela cidade à noite. Aparentemente inofensivo, mas não menos assustador, o personagem social não se apresentou como perigoso, diferente do que ocorreu na investigação para descobrir quem esfaqueou um adolescente até a morte após uma briga que começou quando uma pessoa apareceu vestida de palhaço. Em Ohio, interior dos Estados Unidos, há relatos de escolas fechadas durante um dia inteiro, graças aos rumores de uma mulher que havia sido atacada por um homem fantasiado de palhaço.
Verdade ou fantasia? Até que se prove o contrário, estamos no terreno do real, invadido por elementos que acreditávamos ser ficcionais. A tal vítima, Kim Youngblood, até estampou os noticiários. Segundo o seu relato, enquanto fumava em sua varanda, o homem apareceu fantasiado, apertou o seu pescoço e disse “eu devia matá-la agora”. Assustada, Youngblood procurou a polícia. Preocupados com a questão, em Tucson, no Arizona, o evento Clowns Lives Matter expôs de forma pacífica como os profissionais que atuam no ramo estavam se sentindo ameaçados, ao serem confundidos como monstros ou assassinos.
O que começou com eventos isolados acabou ganhando maiores proporções, chegando, inclusive, ao Brasil, local em que já foram registrados vários casos curiosos. Em São Paulo, as aparições não foram registradas pelos meios oficiais (polícia), mas bombearam nas redes sociais, espaço fértil para semeadura do medo. Guarulhos e Itaquera foram alguns dos locais que manifestaram tais aparições.
Na Bahia, as aparições dos tais palhaços macabros foram registradas em Juazeiro. No dia 17 de outubro de 2016, alguns jovens tiveram a ideia de filmar e expor na internet a abordagem surpresa aos que circulavam por determinados espaços da cidade. Resultado? Foram detidos e precisaram dar esclarecimentos à polícia. Um deles munia um machado. Em Alagoinhas, há registros semelhantes. Em Salvador não há caso algum registrado, mas um evento no Facebook, intitulado “Caça aos Palhaços Assassinos”, marcado para o começo de dezembro deste ano, já tem 900 presenças confirmadas.
Será brincadeira ou o evento pretender levar a questão a serio? As informações não são suficientes para afirmar nada. O que podemos inferir neste caso é que as pessoas que se envolvem nestas fantasias e causam estranhamento na sociedade, mesmo cientes do caráter peremptório de suas ações, buscam se tornar populares e instigar as autoridades, estabelecendo a sensação de instabilidade social. Sentem-se parte de algo e resgatam elementos que geralmente somos expostos ao assistirmos narrativas cinematográficas que exploram estes medos.
A mesma reflexão, entretanto, não pode ser feita no caso do maníaco da seringa, outro relato social de desconforto, comumente associado aos filmes de assassinos em séries e investigações policiais. E desta vez, não estamos falando de nenhuma modinha pop estadunidense que ganhou ressonância em território brasileiro. O medo, desta vez, é real e começou na Bahia há poucas semanas.
Quem tem medo do maníaco da seringa?
O que parece um enredo típico de filme de psicopata tem se tornado uma realidade no cotidiano da capital baiana. Recentemente, os veículos de informação oficiais, bem como aplicativos e redes sociais, tem compartilhado os relatos de pessoas atacadas pelo que se convencionou chamar de “maníaco da seringa”.
Inicialmente, acreditava-se que os ataques originavam-se de uma única pessoa, provavelmente transtornada psicologicamente. De cara, imaginamos logo o tecido narrativo de filmes como Pânico, Eu Sei O Que Vocês Fizeram no Verão Passado, O Observador, de O Colecionador Corpos, dentre outros, salvas, obviamente, as suas devidas proporções, haja vista a dinâmica da realidade (uma picada com a seringa sem interesse mortal) e a trajetória das obras ficcionais (psicopatas mascarados ou trajados com alguma fantasia a assassinar pessoas por motivos de ordem pessoal).
Com a investigação ainda em aberto, a polícia baiana arriscou algumas possibilidades, dentre elas, a ação cometida por mais de uma pessoa, pois segundo os registros durante os 16 casos divulgados, o retrato falado modifica-se ao passo que as informações são coletadas. Será um grupo? Será boato? Há pessoas capazes de forjar os ataques? Até que ponto nós estamos diante da realidade e em que momento adentramos no pantanoso terreno do imaginário?
Se a hipótese de um grupo for afirmada na posteridade, as relações ficcionais estarão bem próximas da série The Following, uma trama macabra sobre um psicopata que comete crimes baseados nas obras de Edgar Allan Poe, mas diferente da maioria das tramas supracitadas, o criminoso age em grupo, graças a uma legião de seguidores que criou ao longo dos anos do planejamento de seus delitos.
A situação em Salvador não chegou a ser considerada tão alarmante, mas em regiões como o centro e a cidade baixa, a instabilidade tem se apresentado como um problema público. De acordo com as reportagens, a maioria das queixas foram registradas na 3ª Delegacia, situada na Cidade Baixa, no entanto, há relatos mais recentes na região metropolitana, especificamente, em Lauro de Freitas, bem como em áreas razoavelmente mais distantes, como Feira de Santana.
A região atingida, diferente das áreas corporais prediletas dos assassinos em série ficcionais, é o braço. As pessoas recebem profilaxia para AIDS e Hepatite, o que significa o uso de vacinas e medicamentos por um período curto, mas não menos incomodo e angustiante. A polícia alega que apenas uma das 16 vítimas se dispôs a realizar uma descrição detalhada do homem que a atacou.
Em estado de alerta, as autoridades estão em processo investigativo e já informaram que o crime pode render até quatro anos de cadeia, com o (s) indivíduo (s) respondendo por lesão corporal. A situação desconfortável gerou uma confusão tipicamente cinematográfica no metrô de Salvador há alguns dias: uma passageira confundiu um dos passageiros com o maníaco da seringa e gerou conflitos durante uma travessia entre estações.
De acordo com os relatos, ao passar na catraca, o cartão de acesso do homem tocou o braço da passageira. Assustada diante do clima de tensão estabelecido na cidade mediante os rumores sobre o maníaco da seringa, a mulher achou que havia sido picada. Daí alertou os seguranças, deu margem aos jornalistas amadores espalharem fotos sem a devida apuração e promoveu, mediante a sua instabilidade, um circo midiático momentâneo.
A situação, apesar de ser oriunda de um clima de medo e pânico da realidade, é material carregado de potencialidades, fermento ficcional para alguma narrativa policialesca ou de terror. Quem sabe não assistiremos a uma versão produzida pela NETFLIX daqui a algum tempo?
Sobre Palhaços, Tubarões e Maníacos Urbanos – Parte 1