‘The Good Place’ estreou na NBC ainda em 2016 e em pouco tempo ascendeu ao topo de uma das comédias mais adoradas da atualidade. Sua narrativa fantasiosa e hilária sobre um grupo de humanos que morre e se torna parte de um experimento pós-vida ofereceu reflexões profundas e mascaradas com incríveis quebras de expectativa sobre o que existe na morte e como as pessoas são julgadas pelo próprio universo – mostrando que até seres celestiais e infernais são passíveis de cometer os erros mais grotescos e inimagináveis possíveis.
Com a chegada de 2020, os fãs começaram a se preparar para os episódios finais, esperançosos de que o show entregasse exatamente o que precisávamos sem se valer de resoluções corriqueiras ou esperadas. Felizmente, a quarta temporada da produção manteve o altíssimo nível de qualidade e caminha triunfante para um series finale emocionante e na dosagem certa entre humor, drama e superação – e, quatro anos mais tarde desde seu término, permanece como uma das maiores produções do século do circuito seriado.
É certo dizer que a série transformou-se em uma distopia desconstruída e menos densa (sem cair nas mazelas de um simplismo barato) que as costumeiras adaptações jovem-adultas do cinema dos últimos anos. Afinal, depois de serem envolvidos em um novo testes e recuperarem suas memórias, o quarteto formado por Eleanor (Kristen Bell), Chidi (William Jackson Harper), Tahani (Jameela Jamil) e Jason (Manny Jacinto) retornam para a dimensão controlada e organizada pela cronologia Jeremy Bearimy do além-vida e voltam a se unir a Michael (Ted Danson), um demônio em forma de lula de fogo que agora passa seus dias no traje humanizado de um velho senhor. Para aqueles que não se recordam, Michael passou a ajudar Eleanor e os outros em meados da segunda temporada, assim que desenvolveu uma relação de amizade com eles e decidiu ajudá-los a mudar o injusto “processo seletivo” para que as pessoas adentrassem o Lugar Bom.
Traindo seus semelhantes e lutando por algo maior que todos os seres do expansivo universo em que habitam, Michael e Eleanor são os líderes de um novo experimento que pretende mostrar que os humanos, antes condenados às torturas constantes no Lugar Ruim, são capazes de mudar quanto postos à prova – e, dessa forma, lutam contra Trevor (Adam Scott), que tenta sabotá-los a qualquer custo. Com o passar dos episódios, eles eventualmente conseguem provar seu ponto, mas levam a Juíza Gen (Maya Rudolph) a decidir rebootar tudo o que já foi criado e dar um novo início à raça humana – levando-os a correr contra o tempo para impedir que os planos da insana entidade se consolidem.
De fato, a nova iteração lapida os vários erros de ritmo vistos na temporada anterior, buscando inclusive explorar uma mitologia própria que se perdera em meio a episódios lineares e previsíveis. De um lado, o roteiro, supervisionado pela aplaudível mente de Michael Schur, transita entre o amadurecimento de Eleanor, que é forçada a observar sua “alma gêmea” ter a memória apagada e se envolver com outra mulher – ao passo que cuida da vizinhança atualizada e tenta impedir que tudo desmorone -, e Michael, que cada vez mais se sente desconectado do grupo de seres místicos, acreditando que há algo maior o esperando em algum momento de sua infinita existência.
Do outro lado, os brilhantes diálogos, pincelados com um humor ácido que encontra equilíbrio entre o classicismo das sitcoms e a renovação promovida pela própria contemporaneidade da indústria televisiva, levam os inúmeros personagens a pensarem sobre suas atitudes – além de nos convidar abertamente a conhecer certas partes da psique humano e do organismo que oriente nossa ética, nossa moral e nossas escolhas. Tudo isso é convergido para um único receptáculo povoado de protagonistas e coadjuvantes que, surpreendentemente, são mais necessários do que se poderia imaginar – e manuseado com uma adorável sutileza e uma fluidez sensacional que se estende até um épico e redondo último capítulo.
É certo dizer que a direção dos anos predecessores nunca ousou para além do que shows de comédia permitissem – com exceções claras patenteadas pela estética cubista de ‘The Office’ ou ‘Veep’. Mesmo assim, Schur (apropriando-se de um único episódio em 2020), resolve seguir sua intuição e construir um incrível plano-sequência que não apenas revigora a arte de uma de suas obras-primas, como também permite que ele funcione como um média-metragem à parte, um epílogo necessário para que tenhamos a oportunidade de dizer adeus a personagens tão queridos e que estiveram ao nosso lado durante todo esse tempo.
‘The Good Place’ não apenas fecha com chave de ouro, como também alcança o patamar de uma das melhores séries da década anterior (e desta também, por que não?). Fundindo inúmeras emoções e humanizando uma temática outrora repleta de obscurantismos repreensíveis, é inegável dizer que sentiremos uma falta imensa de cada pedacinho desse paraíso às avessas.