É inegável que nossa sociedade mundial evoluiu muito nas últimas décadas. E conforme cada grande salto de tal reajuste chegam também as enormes barreiras criadas por aqueles que acreditam que antes tudo era melhor. Mudar é difícil e os privilegiados nunca querem abrir mão de seu status hierárquico. O que vemos na verdade, porém, é apenas uma transformação positiva que tende a igualar a todos dentro de um sistema social. É claro que muita coisa ainda precisa mudar para se chegar num patamar de igualdade. Ao olharmos 30 anos no passado, por exemplo, já podíamos notar as rodas evolutivas em movimento, dando a partida do que temos hoje.
Por isso a história é tão importante. Serve, dentre inúmeras outras coisas, como parâmetro para notarmos como éramos, como evoluímos e notar que estamos andando na direção certa. E nesse sentido o cinema é uma ferramenta importantíssima. Embora alguns só o percebam como forma de entretenimento, mesmo nos filmes mais escapistas podemos fazer uma análise social, de como vivíamos e nos comportávamos no passado; o que era aceitável, o que mudou e o que é visto com muita reprovação com os olhos de hoje.
Especificamente nesta nova matéria iremos abordar o tópico do empoderamento feminino, um assunto ainda muito debatido atualmente. Cada vez mais filmes visam dar espaço ao protagonismo feminino, afinal o lugar da mulher na sociedade evoluiu muito desde a década de 1960 e corre a patamares inalcançáveis anteriormente. Em Hollywood, por exemplo, discute-se muito os bons papeis femininos, que não sejam apenas coadjuvantes dos homens ou que não dependam deles para fazer girar sua narrativa. Fora isso, não existe mais um gênero onde a mulher não possa protagonizar, e desde os anos 90 a mulher invadiu até mesmo os faroestes – gênero tipicamente considerado masculino: em produções como Rápida e Mortal (1995) e Quatro Mulheres e um Destino (1994), por exemplo.
Aqui voltaremos justamente para a década de 1990, mas para seu início, em 1991, há trinta anos no passado, para dar uma olhada em duas produções que visavam discutir a mulher em nossa sociedade de diferentes formas em diferentes gêneros.
É claro que não poderíamos começar de outra forma. Presente no acervo do Telecine Play, Thelma & Louise é considerado um dos grandes marcos do movimento feminista moderno na sétima arte. Comemorando seu trigésimo aniversário em 2021, é curioso notar como o longa estava à frente de seu tempo, permanecendo ainda muito atual hoje. Dirigido por Ridley Scott, que marcava seu nome na ficção científica então (com Alien – O Oitavo Passageiro e Blade Runner – O Caçador de Androides), o drama feminino era um ponto fora na curva para o cineasta – que originalmente iria apenas produzir o material. O coração do filme, no entanto, é o roteiro escrito por uma mulher, a roteirista Callie Khouri, que levou o Oscar por seu trabalho (o único que o filme receberia, num total de seis indicações).
Eu sei que se fosse feito hoje, teríamos uma mulher dirigindo o longa, mas na época o número de cineastas mulheres com as portas abertas pelos grandes estúdios (como a MGM aqui) para comandar produções deste tipo era bastante reduzido. Se hoje os números não são vastos, imagine há trinta anos. De qualquer forma, esse é um dos percalços que já podemos notar num filme feminista de trinta anos atrás: ele tinha que ser dirigido por um homem! Como dito, porém, o que conta mesmo aqui é a história e a mensagem por trás dela. Numa sociedade machista do sul dos EUA, duas mulheres planejam um fim de semana juntas para escapar de suas rotinas opressoras. Louise é uma garçonete do típico diner norte-americano e Thelma é uma dona de casa solenemente maltratada por seu marido traste.
Visando respirar um pouco, as duas caem na estrada, mas já na primeira noite são colocadas à prova. Tudo por motivo de arcaicos ditados como “você procurou”, “não soube se comportar”. Três anos antes, Acusados (1988), com Jodie Foster, narrava sobre uma jovem estuprada em um bar. Aqui, algo semelhante ocorre quando Thelma, animada num bar, bebe umas e outras, aceita dançar com um aparente cavalheiro simpático e termina arrastada para fora do estabelecimento por ele. No estacionamento o sujeito se mostra um cafajeste, se força sobre ela e quando a mulher diz não, o filme mostra que há trinta anos não existia o hoje famoso e necessário “não é não”. Pronto a estupra-la, Thelma consegue no último minuto ser resgatada por Louise, mas termina no calor do momento (e muito sangue nos olhos) por matar o infeliz. Legítima defesa, é claro. Mas há trinta anos e no Texas, como as duas apontam, receberiam a pena de morte pois todos no bar testemunhariam que ela “estava pedindo”. Agora cabe a dupla fugir até que possam colocar essa história a limpo. O desfecho, no entanto, que chamou muita atenção em seu lançamento devido ao impacto, se tornando uma das cenas mais memoráveis dos últimos trinta anos no cinema, hoje pode atestar negativamente para o discurso. Ou seja, a única forma de uma mulher escapar ilesa da lei após ter sido abusada é a morte.
Thelma & Louise, é claro, foram imortalizadas por Geena Davis e Susan Sarandon, respectivamente. Ambas foram indicadas ao Oscar e fica difícil imaginarmos outras atrizes no papel. No entanto, algumas outras estrelas de Hollywood quase ficaram com as personagens antes da dupla. De começo, Meryl Streep e Goldie Hawn, que procuraram um projeto para estrelarem juntas, chegaram perto de fazer o filme, mas terminaram optando por algo mais leve e seguiram para a comédia A Morte Lhe Cai Bem (1992) no ano seguinte. Em outro momento, os produtores queriam Streep ao lado de Cher protagonizando – mas as duas recusaram.
Curiosamente, a autora do roteiro Callie Khouri visualizou Holly Hunter (O Piano) e Frances McDormand (Fargo) como a dupla protagonista. Mas quem assinou contrato para estrelar mesmo foram Michelle Pfeiffer e Jodie Foster. Já imaginaram como seria o filme com estas duas? Como a demora foi grande para o início da produção – ambas desistiram do projeto, mesmo tendo sido Pfeiffer que sugeriu que Scott dirigisse o longa além de produzir. Foster seguiu para O Silêncio dos Inocentes no mesmo ano (e levou o Oscar de protagonista) e Pfeiffer, é claro, desempenharia seu papel mais icônico, o da Mulher Gato em Batman, O Retorno (1992).
Thelma & Louise estreou no prestigiado festival de Cannes em maio de 1991, e se tornou um dos filmes mais populares da época. Em dezembro do mesmo ano, outro filme viria a fazer coro com ele. Trata-se de Tomates Verdes Fritos, adaptação de um famoso best-seller do período, presente no acervo atual da Amazon Prime Video. A história também traz como foco a amizade entre mulheres, se apoiando e lutando para escapar das amarras sociais de uma cultura patriarcal e machista. Narrativamente construída em duas épocas distintas, a trama apresenta quatro mulheres como protagonistas, duas em cada linha temporal. Diferente de Thelma & Louise, Tomates Verdes Fritos não é tão moderno e dinâmico, ao menos na forma como o longa foi filmado e montado, fazendo uso basicamente do drama, ao contrário do filme de Ridley Scott que também aposta na ação, no suspense e numa narrativa policial.
A história principal de Tomates Verdes Fritos se passa na década de 1980, e é estrelada por Kathy Bates, que então acabara de ganhar um Oscar de protagonista por Louca Obsessão – um dos melhores thrillers dos anos 90, baseado em Stephen King. Aqui, ela vive uma personagem muito diferente, a subjugada Evelyn Couch (Sofá em inglês). Esposa rechonchuda de um sujeito rechonchudo, Evelyn vive à sombra como a típica dona de casa da época. Em uma visita à uma casa de repouso com o marido, ela termina por conhecer a idosa Ninny, papel da saudosa veterana Jessica Tandy – vencedora do Oscar no ano anterior por Conduzindo Miss Daisy. A relação entre Evelyn e Ninny será complementar e irá mudar a vida das duas. Ninny aproveita a companhia de Evelyn no local, a cada nova visita podendo relembrar o passado e lhe contar um pouco de sua história de vida. Essa recordação irá inspirar e motivar Evelyn, que usará em sua própria vida muito do que lhe é apresentado nos contos da velha senhora.
Ninny a narra em especial a relação entre a independente Idgie (papel da it girl dos anos 80 Mary Stuart Masterson) e a donzela Ruth (Mary-Louise Parker). Donas de personalidades e vivências diferentes, as duas criarão um forte laço de amizade, cujo subtexto pode ser lido para além disso, numa relação amorosa mais intensa e não muito vocalizada na época. Idgie sempre foi a “moleca”, uma menina travessa que se comportava como um menino e isso gerou toda a sua independência. Forte e decidida, ela assume na década de 1920 uma postura vista como inadequada para os padrões das mulheres naquele período. Já Ruth se encontra mais presa dentro de tal estrutura, sendo uma mulher “enlatada” do período. Ela inclusive se casa, como era esperado, e sofre abuso doméstico – num dos discursos mais fervorosos do filme.
Como o laço intenso já havia se desenvolvido entre as duas, Idgie a resgata da vida de sofrimento para a liberdade ao seu lado. As duas abrem um restaurante e começam a servir, entre outras coisas, o tal tomate verde frito do título, no local. A relação amorosa entre as duas fica apenas subliminarmente pincelada para quem quiser ler nas entrelinhas. No período do lançamento provavelmente passou batido pela maioria. Hoje, com a percepção mais ativa neste sentido, é impossível não notar o elo formado por essas mulheres. Diferente do que temos em Thelma & Louise, por exemplo. A personagem Idgie, embora receba propostas de homens, deixa bem clara sua recusa. Ela só tem olhos para Ruth. Falar de um tema como este, de uma relação lésbica abertamente no cinema de grande público (num lançamento de um grande estúdio como a Universal) era um tabu, e a forma como os realizadores encontraram para dar seu recado foi esta – muito mais induzida do que explícita, porém, a eficiência e impacto consegue ser melhor assimilado do que muitas histórias atuais onde só temos o apelo visual sem qualquer ressonância narrativa.
Assim como Thelma & Louise, em Tomates Verdes Fritos temos uma história muito feminina, escrita por mulheres. O livro em que é baseado tem autoria de Fannie Flagg, e o roteiro foi adaptado por Carol Sobieski, nome quente na indústria, falecida infelizmente aos 51 anos de idade em 1990, sem ver a estreia de um de seus trabalhos mais populares. Mas também teve o comando de um homem, o diretor Jon Avnet – conhecido produtor em sua estreia como realizador. Tomates Verdes Fritos recebeu duas indicações ao Oscar no mesmo ano de Thelma & Louise: melhor atriz coadjuvante para Jessica Tandy e melhor roteiro adaptado (de forma póstuma) para Sobieski.
Com ambos os filmes disponíveis atualmente em plataformas de streaming populares, este é o momento ideal de revisitarmos essas produções icônicas e muito femininas da sétima arte em seu trigésimo aniversário – seja dando uma nova olhada ou desbravando-os pela primeira vez. Uma coisa é certa, ambos surgem como boa fonte de estudo social do papel e evolução da mulher.