sexta-feira , 15 novembro , 2024

Crítica | Uma Noite de Crime 2 – Anarquia

Depois do sucesso inesperado do primeiro filme, uma continuação para este instigante argumento era certa: nos Estados Unidos, uma vez por ano, as pessoas estão livres para cometerem crimes e qualquer atividade ilegal, sem cair nas garras do sistema judiciário. Intitulado “Expurgo”, na seara do filme, este foi o caminho que os governantes encontraram para diminuir a taxa de criminalidade durante todo o ano, promovendo um dia de “carnavalização” no país. Durante 24 horas, tudo pode acontecer. Focando um grupo distinto e mantendo poucas relações com a trama do primeiro filme, Uma Noite de Crime 2 – Anarquia toca em temas caros para a política e a vida na sociedade atual: corrupção, pirâmide social, direito de expressão, dentre outras abordagens que tentarei explicitar ao longo do texto.

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O filme começa em 21 de março de 2022, algumas horas anteriores ao expurgo. Funcionárias de uma lanchonete dialogam sobre o que pretendem fazer durante este período de confinamento, enquanto a montagem alternada trata de ir apresentando outros personagens: um casal ansioso para chegar em casa e se proteger da situação, mascarados nas ruas aguardando a liberação para o banho de sangue e violência, um homem misterioso em busca de vingança (seu filho foi uma vítima de atropelamento e, consequentemente, do sistema, que não penalizou o culpado) e um curioso fanático político-religioso que declama preces e rasga o verbo na televisão, denunciando o conceito corrupto por trás do expurgo.



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Assim que o Estado libera a criminalidade por 24 horas, os problemas obviamente começam: uma das garçonetes, destaque do elenco, chega em casa, confina-se com a filha e o pai, mas logo adiante descobre que este será uma das vítimas de uma família rica e eventualmente criminosa (alguma similaridade com O Albergue não é mera coincidência, é referência mesmo). O misterioso homem em busca de vingança segue pelas ruas sedento por sangue, encontra outros personagens em busca de proteção, como o casal apresentado nos primeiros momentos, desesperados, pois infelizmente o carro foi sabotado pelos mascarados que aguardavam a liberação do expurgo. O roteiro, então, trata de reunir estes personagens, criar uma narrativa tensa e com algumas surpresas, dentre elas, uma família disfuncional. O discurso promove uma reflexão sobre uma sociedade onde as máscaras caem (metaforicamente, porque no filme há muitos anarquistas assustadoramente mascarados), através de um processo discursivo baseado numa ficção que representa valores antagônicos ao que ao longo do tempo se convencionou chamar de utopia. Sendo assim, Uma Noite de Crime 2 – Anarquia pode ser considerado um filme no panorama das distopias cinematográficas.

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No que tange aos aspectos técnicos, o filme garante um ótimo espetáculo visual para os amantes do gênero suspense: a montagem frenética, um roteiro que apresenta os seus personagens de forma básica, mas o suficiente para que criemos a sensação de proximidade, e, por conseguinte, a catarse. Por ser uma produção de Michael Bay, que bancou a eficiente refilmagem de O Massacre da Serra Elétrica, o suspense é orquestrado por uma trilha angustiante, bem como um cuidadoso trabalho de som. As atuações seguem o padrão, na medida, com alguns personagens caricatos, mas que não prejudicam a oxigenação da narrativa. A direção de arte e o trabalho de fotografia se preocupam bem em manter o clima, principalmente ao utilizar a paleta de cores selecionadas para o filme de maneira equilibrada, pintando os seus personagens e ambientes de acordo com as cores que lhe são convenientes. A direção e o roteiro continuaram nas mãos de James DeMonaco.  A produção, por sinal, foi realizada com ajuda do sistema de incentivo fiscal da Califórnia, saindo do esquema dos grandes estúdios.

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Duas observações relevantes se fazem necessárias para complementar meu ponto de vista sobre o filme: no caminho para casa, serviços de segurança são oferecidos por transeuntes. Diante disso, um questionamento surge: se o Estado oferece proteção, porque somos obrigados a contratar serviços particulares? Aqui no Brasil, por exemplo, há condomínios ou até moradores  de determinado aglomerado social que contratam seguranças particulares para sinalização de possíveis ataques criminosos. O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, por exemplo, apresenta esta situação de maneira bastante crítica. E não é preciso ir ao cinema para confirmar isso: eu, como cidadão, já fui pagante de segurança da rua onde morava há exatos dez anos, tamanha a onda de assaltos que o local apresentava constantemente naquele período, situação que se agravou, por sinal, nos dias atuais. Atualmente, a revista Veja publicou que no Brasil, o crime mata mais que as mortes da atual onda de guerra da Faixa de Gaza: verdade ou exagero de uma publicação detidamente partidária, o crime é uma realidade cada vez mais assustadora e Uma Noite de Crime 2 – Anarquia questiona o sistema e a relação dos cidadãos com as leis, punição, etc. A outra questão é uma reflexão que parte de um dos personagens do filme, o fanático político-religioso, que afirma serem “os pobres a morrerem e os ricos a lucrarem”.

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Com a queda da criminalidade e a liberação do crime uma vez ao ano, as pessoas se contém durante 364 dias, liberando a sua energia criminosa e a tendência para o crime durante 24 horas, mas neste painel, os pobres, que não possuem dinheiro para se defender, morrem ou são vítimas de assaltos, enquanto os ricos estão protegidos em suas fortalezas. O Estado, normalizando a sociedade ao excluir “itens” que custam caro ao governo, lucra, os ricos lucram e todos os habitantes do topo da pirâmide social se dão bem. A partir daí, a discussão adentra campos como a sociologia, economia, ciências políticas e até mesmo a Psicanálise. Deixo o caminho reflexivo, caro leitor, sinalizado, caso queira trilhar. Aqui, infelizmente, não teremos este espaço, tamanha a densidade deste tipo de argumentação e discurso.

Ao assistir a este filme, um aparente suspense simplório de perseguição e crimes, somos remetidos a várias outras produções que já trataram do assunto, mas há uma relação oriunda dos primórdios do cinema que merece destaque. Metrópoles, do alemão Fritz Lang. A narrativa em ritmo de distopia já questionava parcialmente esta relação de pirâmide social, anarquia e descontentamento, através de enquadramentos oblíquos e jogo de sombras. Na década de 1980, especificamente no último ano, a cantora Madonna, sob a direção astuta de um David Fincher iniciante, recria o clima do filme de Fritz Lang, através do videoclipe da canção Express Yourself, um dos maiores sucessos da sua carreira. Diferente do filme, que promove um final onde as soluções são encontradas e a sociedade entra em equilíbrio, Madonna prefere dar um ar contemporâneo e mais realista, mostrando que a luta de classes é a sina da humanidade, reconfigurando o filme. Percebemos, desta forma, que a temática é retroalimentada constantemente, seja no campo do cinema, do videoclipe ou da televisão: metalinguagem em profusão, promovendo muitas reflexões ao longo da história do audiovisual.

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Uma Noite de Crime possui um argumento astuto e se continuar nas mãos de produtores inteligentes, pode ganhar uma versão anual ou bianual. O tema é reconfigurado na mídia constantemente, basta cada continuação focar em um nicho da sociedade, manter o clima de tensão e debater, mesmo dentro do espetáculo violento, os tais temas caros explicitados na abertura desta reflexão. Produtores: fica a dica. E para aqueles que questionarem as possibilidades de uma narrativa em tom seriado, deixo a indagação: não somos brindados por James Bond, mesmo com algumas atuações vergonhosas e de roteiro forçado, há tantas décadas? E mais: diferente do convencional, este filme consegue ser tão interessante, talvez até melhor que o primeiro filme, algo raro na indústria cinematográfica lotada de continuações pífias e caça-níquéis, principalmente no âmbito do gênero suspense/terror, que geralmente adora ressuscitar assassinos em série mortos, forçar a barra com espíritos que não são exorcizados mesmo depois de vários rituais ou um mentor psicótico que conseguiu realizar a rede de crimes mais inverossímil, rizomática e exagerada da história do cinema: Jogos Mortais, alguém lembra?

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O filme começa em 21 de março de 2022, algumas horas anteriores ao expurgo. Funcionárias de uma lanchonete dialogam sobre o que pretendem fazer durante este período de confinamento, enquanto a montagem alternada trata de ir apresentando outros personagens: um casal ansioso para chegar em casa e se proteger da situação, mascarados nas ruas aguardando a liberação para o banho de sangue e violência, um homem misterioso em busca de vingança (seu filho foi uma vítima de atropelamento e, consequentemente, do sistema, que não penalizou o culpado) e um curioso fanático político-religioso que declama preces e rasga o verbo na televisão, denunciando o conceito corrupto por trás do expurgo.

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Assim que o Estado libera a criminalidade por 24 horas, os problemas obviamente começam: uma das garçonetes, destaque do elenco, chega em casa, confina-se com a filha e o pai, mas logo adiante descobre que este será uma das vítimas de uma família rica e eventualmente criminosa (alguma similaridade com O Albergue não é mera coincidência, é referência mesmo). O misterioso homem em busca de vingança segue pelas ruas sedento por sangue, encontra outros personagens em busca de proteção, como o casal apresentado nos primeiros momentos, desesperados, pois infelizmente o carro foi sabotado pelos mascarados que aguardavam a liberação do expurgo. O roteiro, então, trata de reunir estes personagens, criar uma narrativa tensa e com algumas surpresas, dentre elas, uma família disfuncional. O discurso promove uma reflexão sobre uma sociedade onde as máscaras caem (metaforicamente, porque no filme há muitos anarquistas assustadoramente mascarados), através de um processo discursivo baseado numa ficção que representa valores antagônicos ao que ao longo do tempo se convencionou chamar de utopia. Sendo assim, Uma Noite de Crime 2 – Anarquia pode ser considerado um filme no panorama das distopias cinematográficas.

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No que tange aos aspectos técnicos, o filme garante um ótimo espetáculo visual para os amantes do gênero suspense: a montagem frenética, um roteiro que apresenta os seus personagens de forma básica, mas o suficiente para que criemos a sensação de proximidade, e, por conseguinte, a catarse. Por ser uma produção de Michael Bay, que bancou a eficiente refilmagem de O Massacre da Serra Elétrica, o suspense é orquestrado por uma trilha angustiante, bem como um cuidadoso trabalho de som. As atuações seguem o padrão, na medida, com alguns personagens caricatos, mas que não prejudicam a oxigenação da narrativa. A direção de arte e o trabalho de fotografia se preocupam bem em manter o clima, principalmente ao utilizar a paleta de cores selecionadas para o filme de maneira equilibrada, pintando os seus personagens e ambientes de acordo com as cores que lhe são convenientes. A direção e o roteiro continuaram nas mãos de James DeMonaco.  A produção, por sinal, foi realizada com ajuda do sistema de incentivo fiscal da Califórnia, saindo do esquema dos grandes estúdios.

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Duas observações relevantes se fazem necessárias para complementar meu ponto de vista sobre o filme: no caminho para casa, serviços de segurança são oferecidos por transeuntes. Diante disso, um questionamento surge: se o Estado oferece proteção, porque somos obrigados a contratar serviços particulares? Aqui no Brasil, por exemplo, há condomínios ou até moradores  de determinado aglomerado social que contratam seguranças particulares para sinalização de possíveis ataques criminosos. O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, por exemplo, apresenta esta situação de maneira bastante crítica. E não é preciso ir ao cinema para confirmar isso: eu, como cidadão, já fui pagante de segurança da rua onde morava há exatos dez anos, tamanha a onda de assaltos que o local apresentava constantemente naquele período, situação que se agravou, por sinal, nos dias atuais. Atualmente, a revista Veja publicou que no Brasil, o crime mata mais que as mortes da atual onda de guerra da Faixa de Gaza: verdade ou exagero de uma publicação detidamente partidária, o crime é uma realidade cada vez mais assustadora e Uma Noite de Crime 2 – Anarquia questiona o sistema e a relação dos cidadãos com as leis, punição, etc. A outra questão é uma reflexão que parte de um dos personagens do filme, o fanático político-religioso, que afirma serem “os pobres a morrerem e os ricos a lucrarem”.

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Com a queda da criminalidade e a liberação do crime uma vez ao ano, as pessoas se contém durante 364 dias, liberando a sua energia criminosa e a tendência para o crime durante 24 horas, mas neste painel, os pobres, que não possuem dinheiro para se defender, morrem ou são vítimas de assaltos, enquanto os ricos estão protegidos em suas fortalezas. O Estado, normalizando a sociedade ao excluir “itens” que custam caro ao governo, lucra, os ricos lucram e todos os habitantes do topo da pirâmide social se dão bem. A partir daí, a discussão adentra campos como a sociologia, economia, ciências políticas e até mesmo a Psicanálise. Deixo o caminho reflexivo, caro leitor, sinalizado, caso queira trilhar. Aqui, infelizmente, não teremos este espaço, tamanha a densidade deste tipo de argumentação e discurso.

Ao assistir a este filme, um aparente suspense simplório de perseguição e crimes, somos remetidos a várias outras produções que já trataram do assunto, mas há uma relação oriunda dos primórdios do cinema que merece destaque. Metrópoles, do alemão Fritz Lang. A narrativa em ritmo de distopia já questionava parcialmente esta relação de pirâmide social, anarquia e descontentamento, através de enquadramentos oblíquos e jogo de sombras. Na década de 1980, especificamente no último ano, a cantora Madonna, sob a direção astuta de um David Fincher iniciante, recria o clima do filme de Fritz Lang, através do videoclipe da canção Express Yourself, um dos maiores sucessos da sua carreira. Diferente do filme, que promove um final onde as soluções são encontradas e a sociedade entra em equilíbrio, Madonna prefere dar um ar contemporâneo e mais realista, mostrando que a luta de classes é a sina da humanidade, reconfigurando o filme. Percebemos, desta forma, que a temática é retroalimentada constantemente, seja no campo do cinema, do videoclipe ou da televisão: metalinguagem em profusão, promovendo muitas reflexões ao longo da história do audiovisual.

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Uma Noite de Crime possui um argumento astuto e se continuar nas mãos de produtores inteligentes, pode ganhar uma versão anual ou bianual. O tema é reconfigurado na mídia constantemente, basta cada continuação focar em um nicho da sociedade, manter o clima de tensão e debater, mesmo dentro do espetáculo violento, os tais temas caros explicitados na abertura desta reflexão. Produtores: fica a dica. E para aqueles que questionarem as possibilidades de uma narrativa em tom seriado, deixo a indagação: não somos brindados por James Bond, mesmo com algumas atuações vergonhosas e de roteiro forçado, há tantas décadas? E mais: diferente do convencional, este filme consegue ser tão interessante, talvez até melhor que o primeiro filme, algo raro na indústria cinematográfica lotada de continuações pífias e caça-níquéis, principalmente no âmbito do gênero suspense/terror, que geralmente adora ressuscitar assassinos em série mortos, forçar a barra com espíritos que não são exorcizados mesmo depois de vários rituais ou um mentor psicótico que conseguiu realizar a rede de crimes mais inverossímil, rizomática e exagerada da história do cinema: Jogos Mortais, alguém lembra?

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