Em 2014, o cineasta David Fincher e a escritora/roteirista Gillian Flynn arrebataram as audiências com o retrato sádico de uma bela mulher de cabelos loiros, rosto misterioso e um comportamento obsessivo e compulsivo. A sagacidade de ‘Garota Exemplar’ apresentou às audiências do mundo todo uma personagem cheia de artimanhas diabólicas, bem planejadas e impecáveis. Com o vitimismo à flor da pele, ela distorce pontos de vistas e cria provas contra e a favor de si mesma, manipulando tudo ao seu redor.
A história de Amy Dunne se parece muito com a da atriz americana Marie McDonald. Estereotipada após uma aparição na comédia ‘Pardon My Sarong’ (1942), da dupla Abbott e Costello, a jovem e bela de cabelos loiros foi apelidada por Hollywood como Marie “O Corpo”, graças às suas curvas bem marcadas. O título acabou sendo um entrave na sua carreira, que teve seu auge em inúmeros papéis coadjuvantes e apenas um de protagonista ao lado de Gene Kelly no musical ‘Vida à Larga’ (1947). Com o tempo, sua carreira minguou, assim como seu nome. Ficou apenas aquele conturbado relato de um sequestro, seguido por espancamento, à la ‘Garota Exemplar’. A história renasceu, com um minucioso trabalho de pesquisa feito pela revista americana EW, que hoje nós contamos para você.
30 e poucos anos e quatro casamentos já na conta, McDonald chegou a ser amante do infame gangster Bugsy Siegel, até ele ter sido assassinado à queima roupa de dentro de sua mansão em Beverly Hills. Sua relação mais tumultuada foi com o magnata de calçados Harry Karl, com quem ela casou duas vezes, sendo a segunda apenas seis semanas depois de formalizar o divórcio. Mas o que ele tem a ver com tudo isso? Já vamos chegar lá.
Era a madrugada de três de janeiro de 1957, quando Marie McDonald ouviu um barulho de fora da janela de sua suntuosa residência na região nobre de Los Angeles. Com seus três filhos, a empregada e o motorista dormindo, a atriz se viu em meio a um sequestro, pouco depois de testemunhar seu cachorro correndo atrás de um homem que insistia em perturbar seu sossego familiar com insistentes batidas na cerca. Ao lado dele, outro rapaz armado. Ambos trajavam jaquetas de couro.
O clássico conto de suspense não para aí. Cheios de ameaças, os agressores – um afro americano e um mexicano – forçaram sua entrada na casa, pediram joias, dinheiro… e seu corpo. Pegaram tudo o que queriam, mas antes de partir deixaram um bilhete feito com recortes de jornal, que dizia “ela não será machucada por dinheiro”. O colocaram dentro da caixa de correios da residência e partiram com McDonald vendada para um lugar desconhecido.
Após dirigirem pelo deserto californiano por mais de uma hora, a atriz ficou refém dos sequestradores em uma espécie de bangalô, onde foi forçada a tomar uma série de comprimidos com whiskey, conseguindo driblá-los, escondendo alguns debaixo da língua. Pouco depois, Marie Tuboni – mãe de Marie – recebe uma ligação de um homem alegando estar com sua filha, ameaçando-a caso a polícia seja contatada. O mesmo acontece com Harry Karl, seu (ex)marido. Com a polícia envolvida no crime, faltava encontrar a atriz desaparecida.
Sob o comando dos sequestradores, Marie tinha acesso a um telefone, deliberadamente deixado em um cômodo vazio onde ela estava com seus olhos vendados. Após horas em cativeiro, a atriz decidiu usá-lo para pedir socorro. Sua primeira ligação é para o colunista de fofoca Harrison Carroll. A segunda foi feita a Michael Wilding – futuro ex-marido da atriz Elizabeth Taylor. A terceira foi para o empresário Harold Plant.
Ao ser pega no telefone pelos bandidos, Marie se vê em uma luta corpo a corpo com a dupla, que ameaça matá-la. Após ser brutalmente espancada, ela é novamente vendada e jogada dentro do carro. Pouco depois ela é colocada para fora, sendo abandonada em meio à paisagem desértica. Machucada e perambulando pelo crepúsculo, ela se depara com os fortes faróis de um caminhão, dirigido por Richard D. Corn.
Essa foi a história contada por Marie McDonald em 4 de janeiro de 1957 à imprensa hollywoodiana e à polícia de Los Angeles. Cercada por holofotes, policiais e repórteres desesperados para descobrir o que aconteceu, a atriz assume as mesmas características de Amy Dunne, relatando as 12 horas de terror e sofrimento. Ela vira notícia nacional, se torna alvo de pena e compaixão da opinião pública. Até que sua história começa a degringolar.
Os flashes e a atenção alimentaram ainda mais a história de Marie, que quanto mais era contada, maior ficava. Alegações de abuso sexual e novos relatos feitos diretos do hospital (alguma semelhança à Amy Dunne?) surgiram. Após uma extensa investigação, informações contraditórias e análises de perícia que diagnosticaram totalmente o contrário, Marie McDonald foi a julgamento, onde o seu suposto caso foi encerrado e seus agressores “jamais” encontrados.
Com sua história perdendo força, uma nova reviravolta trouxe seu ex-marido para o centro do turbilhão. Alegando ter encontrado seus sequestradores em Las Vegas, Marie teria pagado U$5 mil dólares em troca de informações sobre o mandante do crime, que era ninguém menos que Harry Karl. O empresário chegou a se submeter voluntariamente ao detector de mentiras para provar sua inocência. À partir disso, o descrédito com o caso da atriz simplesmente desvaneceu.
Saindo das sombras em direção aos holofotes, o conto de Marie McDonald é uma daquelas histórias peculiares, que mescla o drama hollywoodiano com a constante luta contra o ostracismo social, natural de um ramo sedento por novos artistas que atraiam a atenção do público. Se tudo isso foi pelas mesmas razões doentias de Amy Dunne, é difícil saber, mas a atriz conseguiu resgatar – de maneira verídica – aquele mesmo anseio dilacerado nas palavras de Norma Desmond, de ‘Crepúsculo dos Deuses’: “Eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos”.