A cerimônia de abertura do 78º Festival de Cannes foi conduzida com elegância e profundidade pelo ator francês Laurent Lafitte, que transformou o palco do Grand Théâtre Lumière em um espaço tanto de celebração quanto de reflexão. Em um discurso espirituoso e incisivo, Lafitte exaltou o papel dos atores, atrizes e cineastas, relembrando ícones como James Stewart, Jean Gabin, Marlene Dietrich, Adèle Haenel e o ex-ator e atual presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky.
Encerrando seu discurso com força simbólica, Lafitte declarou: “Então, viva o cinema, viva o Festival de Cannes, viva a humanidade apesar de tudo. E que nós, atores e atrizes, estejamos à altura de nossos personagens. Nós, cineastas, à altura de nossas obras. E à altura desta frase de Frank Capra: ‘Apenas os audaciosos deveriam fazer cinema.'”
Homenagem a Juliette Binoche
Logo após, Lafitte chamou ao palco os nove membros do júri da competição oficial, presidido por Juliette Binoche, “nascida atriz nesta própria sala”, como destacou o mestre de cerimônias. A atriz francesa foi homenageada em seguida por sua brilhante carreira, pontuada por colaborações com cineastas de diferentes escolas e países:
Abbas Kiarostami, Jean-Luc Godard, Krzysztof Kieslowski, Claire Denis, Léos Carax, Louis Malle, André Téchiné, Chantal Akerman, John Boorman, Jean-Paul Rappeneau, Bruno Dumont, Diane Kurys, Olivier Assayas, David Cronenberg, Anthony Minghella, Christophe Honoré, Amos Gitaï, Tran Anh Hung e Hirokazu Kore-eda.
Binoche emocionou o público ao trazer à tona o conflito entre Israel e Palestina e homenagear a jovem fotojornalista Fatma Hassouna, morta em Gaza em abril deste ano:
“No dia 16 de abril, ao amanhecer, em Gaza, a fotojornalista Fatma Hassouna, de 25 anos, e dez de seus entes queridos foram mortos por um míssil que atingiu sua casa. Ela havia escrito: ‘A morte passou por mim, a bala do atirador me atravessou e me tornei um anjo aos olhos de uma cidade imensa, maior que meus sonhos, maior que esta cidade. Tornei-me uma poeta sagrada aos olhos de uma floresta, tornando-me eremita e tomando um cipreste como oferenda.’”
A presidente do júri ainda lembrou que na véspera de sua morte, a jovem recebeu a notícia de que o filme do qual participou havia sido selecionado para o Festival de Cannes. Fatma, portanto, deveria estar naquela sala entre os participantes.
Tributo a David Lynch
Outro momento tocante da noite foi a homenagem ao cineasta David Lynch, falecido em janeiro deste ano. O tributo começou a partir de uma cena de Coração Selvagem (1990), com Nicolas Cage e Laura Dern, e a cantora franco-canadense Mylène Farmer apresentou uma canção inédita, uma espécie de “canção de ninar” dedicada ao eterno explorador do estranho e do onírico.
Apesar da beleza da performance, vale salientar que a apresentação musical não teve o mesmo impacto da do ano anterior, quando Zaho de Sagazan fez uma poderosa releitura de Modern Love, de David Bowie, contagiando os espectadores e levando Greta Gerwig às lágrimas.
Palma de Ouro Honorária a Robert de Niro
O grande homenageado da noite, Robert De Niro, subiu ao palco após ser apresentado por Leonardo DiCaprio, e fez um discurso fortemente político, posicionando-se abertamente contra o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Ele criticou os ataques à cultura e às artes, e alertou para os perigos do autoritarismo.
“Isso nos diz respeito a todos, porque as artes são por essência democráticas. A arte é inclusiva, ela reúne as pessoas como esta noite. A arte é uma busca por liberdade. A arte inclui a diversidade, e é por isso que a arte está ameaçada. É por isso que somos uma ameaça para os autocratas e fascistas deste mundo.”
E ainda alertou: “O presidente filisteu americano se autoproclamou à frente de uma de nossas instituições culturais. Ele simplesmente retirou os fundos para as ciências humanas, para a formação superior. E agora anunciou 100% de tarifas sobre os filmes produzidos fora dos Estados Unidos. É algo que merece reflexão. A criatividade não tem preço. Mas, aparentemente, podemos impor tarifas à criatividade – o que é inaceitável. Todos esses ataques são inaceitáveis”.
Um Grito de Cinema: “Cannes Está Aberto!”
Encerrando a noite com energia e paixão, Quentin Tarantino tomou o palco para abrir oficialmente o festival. Com sua típica intensidade, gritou: “IT’S MY HONOUR TO DECLARE THE 78TH FESTIVAL OPEN!!!”
A 78ª edição do Festival de Cannes começa com um chamado claro: resistir com arte, com coragem e com humanidade. Nos próximos doze dias, filmes de todo o mundo disputarão a Palma de Ouro — entre eles o brasileiro O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, mas, como ficou claro na cerimônia, o espírito do festival vai muito além do prêmio. É sobre liberdade, memória e transformação.