As delícias e as amarguras da transição entre a adolescência e a vida adulta se entrelaçam em La Petite Dernière, na tradução livre seria A Caçula, com a complexidade da fé islâmica e o desejo de viver plenamente. Hafsia Herzi, em sua direção sensível e firme, mergulha na jornada de Fatima (Nadia Melliti), uma jovem dividida entre a rigidez de sua formação religiosa e os desejos que emergem com a descoberta de si mesma. Em um ambiente onde a repressão é regra, o desejo torna-se uma forma de resistência.
Cercada por uma família devota aos dogmas do Islã e fiel às suas orações diárias, Fatima vive um embate interno silencioso. Veste-se de forma esportiva, é constantemente lembrada de sua aparência pouco feminina e segue, à primeira vista, os preceitos do Islã – inclusive mantendo um “namoradinho” platônico, sem toques, como exige a tradição. Mas é nos detalhes que Herzi constroi sua protagonista: ela só se relaciona com amigos homens e ouve calada piadas misóginas, naturalizadas em seu meio.
Descoberta no cinema por Abdelatif Kechiche em O Segredo do Grão (2007), Hafsia Herzi se distancia do estilo hiperssexualizado de seu padrinho cinematográfico, famoso por filmes como Azul é a Cor Mais Quente (2013). Em vez disso, propõe um olhar mais intimista, respeitando os limites religiosos e emocionais de sua personagem. O erotismo, aqui, surge nas entrelinhas – nas mãos, no pescoço, no rosto de Fatima – nunca no corpo exposto. Herzi subverte a lógica do desejo masculino que domina o cinema, ao filmar o prazer feminino sob uma ótica respeitosa e subjetiva.
A câmera de Herzi é hipnotizada por sua protagonista. Os planos fechados no rosto de Fatima revelam uma força silenciosa e uma vulnerabilidade envolvente. Seus lábios carnudos, frequentemente destacados, tornam-se ponto focal de atenção dos parceiros e do próprio espectador. Fatima é fã de futebol, treina sozinha, prende os cabelos em um rabo de cavalo e veste-se como uma atleta, sendo apelidada, não sem ironia, de Lara Croft pelos colegas – uma referência à heroína sexualizada dos videogames, que aqui ganha uma releitura melancólica e realista.
O ponto de virada se dá após um confronto direto com um dos colegas. Em silêncio, mas com uma determinação crescente, Fatima começa a explorar seus desejos por meio de um aplicativo de encontros queer. O que poderia ser uma simples rebeldia adolescente transforma-se num mergulho existencial profundo – uma tentativa de reconciliar fé, corpo e desejo em um mundo que insiste em colocá-los como opostos inconciliáveis. Até, por fim, apaixonar-se e sofrer toda a disilusão acompanhada deste sentimento de forma bastante realista.
La Petite Dernière é um filme sensível e corajoso, que não recorre ao choque fácil ou ao apelo visual explícito. Hafsia Herzi entrega um retrato poderoso da juventude islâmica contemporânea, marcada por contradições, desejos e silêncios. Semelhante ao belo indiano Sempre Garotas (2024), a diretora termina seu filme não como uma resolução feliz, mas uma conversa entre mãe e filha, a qual ainda não sabemos até que ponto elas estão preparadas para enfrentar às expectativas uma da outra. Este é um filme do olhar, do gesto e da ausência, que pulsa na carne e na alma de sua protagonista.