Jane Austen é uma das autoras inglesas mais lembradas de todos os tempos. Seus romances tragicômicos perpassam com grande destreza por diversos temas sociais que, à prima vista, podem parecer superficiais, mas na verdade carregam consigo uma profundidade imprevisível e que dialoga tanto com a época na qual foram escritos e possuem a atemporalidade de estenderem suas críticas e metáforas para os dias de hoje. Logo, não é nenhuma surpresa que livros como ‘Razão e Sensibilidade’ e ‘Persuasão’ ganhem releituras para o cinema e finquem a importância da novelista no escopo literário mundial.
É claro que a popularização de sua obra-prima, ‘Orgulho e Preconceito’, chamou a atenção de diversos cineastas e, desde a década de 1940, o romance centrado em dois personagens de classes sociais diferentes e que negam qualquer sentimento próspero entre eles sofreu investidas cada vez mais endossadas para diversos meios de entretenimento. Entretanto, é a versão mais recente que faz jus ao legado de Austen, na incrédula estreia diretorial do que viria a ser um dos nomes mais conhecidos da indústria cinematográfica: Joe Wright. Através de uma habilidade muito fluida tanto com a narrativa quanto as técnicas fílmicas, o emergente cineasta conseguiu resgatar todo o escopo do material original ao mesmo tempo em que forneceu uma perspectiva única para a história de Elizabeth Bennet e o Sr. Darcy.
ULTIMATE AUSTEN
Adaptar uma obra literária nunca é um trabalho fácil, principalmente quando ela pertence a um legado tão marcante quanto a de Austen. Porém, mesmo com todo o peso que recaiu sobre Wright, o longa-metragem é sem sombra de dúvida a melhor rendição do universo inglês burguês da autora, justamente por se preocupar em absorver a sensibilidade crítica, mesclando de forma equilibrada a comédia, a tragédia e os costumes de uma sociedade pautada na regência patriarcal e no conservadorismo.
Logo de cara percebemos que ‘Orgulho e Preconceito’ será um filme sensorial. Se nas páginas do livro a saturação descritiva é a sua principal característica, toda a subjetividade fornecida pela protagonista é traduzida em seu modo de olhar o mundo em que está inserida e como sua “disfuncional” família, por assim dizer, funciona como um cosmos à parte da sociedade urbana. Não é à toa que o cineasta demonstra essa contradição primeiro pelo manejo da câmera e segundo pelas escolhas visuais que compõe a caracterização dos personagens. O primeiro plano-sequência da obra preza pela fluidez onírica que acompanha os sonhos de uma jovem mulher chamada Elizabeth (Keira Knightley), a qual praticamente dança em seu caminho para casa à medida em que uma luz dourada a guia numa trajetória quase infinita. A ambientação já imponente torna-se ainda mais inalcançável e majestosa pela construção cênica que consegue ao mesmo nome entrar em contradição com a decadente posição social da família em questão, os Bennet, ao mesmo tempo em que fornece uma base para os futuros conflitos a serem desenrolados.
A apresentação dos outros personagens é feita de forma quase teatral e, como sempre, a partir da visão de Lizzie: ela observa seus pais tendo uma conversa um tanto quanto supérflua acerca dos benefícios e da necessidade do casamento para suas filhas, as quais devem ser desposadas antes que tornem-se velhas demais, por uma janela quadrada. Essa escolha a coloca não como protagonista da própria história, mas sim como uma mera espectadora que não tem controle sobre o destino e mesmo assim aceita todas as condições sob as que vive. Também não é por qualquer razão que a iluminação difusa permite-lhe se juntar à casa em que cresceu e que sempre serviu como uma bolha para o mundo lá fora até ser conquistada por um cavalheiro e ser entregue das mãos protetoras da mãe para seu marido.
Olhando por cima, a trama principal parece resgatar os ideais impossíveis dos romances românticos do século XIX, os quais basicamente eram pautados na superficialidade. Entretanto, não é até o final do primeiro ato que percebemos o jogo narrativo nos levando a um caminho completamente diferente do que esperávamos: primeiro, precisamos entender que a família principal é dotada de diversas figuras caricatas ou arquetípicas, dialogando com os inúmeros tipos sociais das peças de costumes que se tornaram populares com a virada para o século XX, funcionando inclusive como uma premeditação para o futuro da comunidade britânica. Se Lizzie representa toda a ideologia libertária, rebelde e irrefreável, suas irmãs Liddy (Jena Malone) e Kitty (Carey Mulligan) entram como a válvula de escape cômica, lutando para conseguirem um rico e benéfico marido que suprirá todas as suas necessidades.
A química entre as personagens coadjuvantes é adorável e odiável ao mesmo tempo, não de forma acidental, mas sim proposital. Elas carregam maneirismos quase insuportáveis em cena, os quais são reflexo da constante influência causada pela mãe, a Sra. Bennet (Brenda Blethyn), uma mulher que pode ser tudo, menos ingênua. Seus discursos acerca da importância da instituição matrimonial são esparsos por uma razão bem clara: criticar a supervalorização de uma vertente decadente e que só era reafirmada com uma força irrefreável para resgatar o brilho perdido da Igreja, ofuscada pelas crescentes investidas econômicas mercantis, e de valores cíclicos e que, eventualmente, se perderiam com a fragmentação do próprio ser humano. As análises que Austen promove em seu livro são, ao mesmo tempo, sutis e perceptíveis, ainda que passíveis de serem ignoradas.
Por incrível que pareça, uma das figuras mais desconstruídas dentro do longa é a do Sr. Bennet. Donald Sutherland encarna o patriarca de modo incrivelmente bem delineado: suas feições austeras na verdade são apenas uma máscara para um terno coração que definitivamente não liga para títulos sociais, mas preza pela real felicidade de suas filhas, muitas vezes abusando de sua condição como provedor daquele núcleo familiar para entrar em conflito com a mentalidade unilateral de sua esposa. E, ao mesmo tempo, esse casal torna-se mais complexo por entrarem em discordância e ainda sim de amarem incondicionalmente, ainda que esse amor tenha sido construído ao longo do tempo.
O pano de fundo é de imprescindível importância para a moção dos personagens principais, isso não se pode negar. Mas a cena é roubada tanto pela doçura de dois gumes de Knightley quanto pela chegada do amargurado e charmoso Sr. Darcy (Matthew Macfayden). Para aqueles que não conhecem a história de ‘Orgulho e Preconceito’, Lizzy e Darcy são um dos casais mais famosos justamente por não serem convencionais. O primeiro encontro entre duas personalidades tão distintas e contraditoriamente tão semelhantes ocorre durante um baile para a chegada da “realeza britânica” ao pequeno condado de Hertfordshire, incluindo o personagem em questão e seu melhor amigo, o animado e levemente confuso Sr. Bingley (Simon Woods).
Pense em todos os momentos do cinema, da televisão e da literatura em que um garoto e uma garota se apaixonavam logo que se encontravam e enterre tudo isso o mais fundo possível: o filme não é um conto de fadas, e sim um retrato real de uma burguesia decadente e que se fincava em relações amorosas lucrativas para reafirmar seu poder. Entretanto, estamos lidando com Darcy, um homem tão blasé quanto suas expressões acerca das mulheres que o cortejam, e Lizzy, que não se importa realmente com mais ninguém além dela mesma e de sua família e que utiliza de suas falas afiadas como forma de proteção e quebra de paradigmas.
Entretanto, essa nobre renegação entre os dois é o ponto de partida para o crescimento gradativo e inesperado de um romance. Eles escondem e utilizam de xingamentos dolorosos um para com o outro para afastarem-se e impedirem que uma “tragédia” aconteça. O orgulho que sentem é maior do que a relação que poderiam firmar pouco tempo depois de se conhecerem, enquanto o preconceito externo é lembrete constante para a diferença de classes sociais entre os dois: todo esse escopo, eventualmente, é o que explica o jogo de palavras que forma o título da obra, muito mais profundo do que parece.
Austen cria em seu livro um discurso indireto para a liberdade de expressão, colocando de forma satírica todos os seus pensamentos na figura de Lizzy. Para a época, esse afronte impertinente era visto com maus olhos principalmente pelas gerações anteriores, e Wright resgata isso com a construção de uma das melhores cenas do longa. Em determinado momento, a protagonista viaja com sua melhor amiga, Charlotte (Claudie Blakley) e seu esposo, Mr. Collins (Tom Hollander) para o palácio de Lady Catherine de Bourg, interpretada pela sempre incrível Judi Dench. Lady Catherine talvez seja a encarnação de todos os valores reacionários e conservadores que permeiam a cultura britânica desde os tempos medievais, utilizando de sua posição e da ideia de que as mulheres devem ser prendadas para servirem à “inegável superioridade” dos homens. Não é nenhuma surpresa que, durante um jantar-interrogatório, a protagonista utilize de seu pensamento conciso para rebater todas as insossas perguntas da nobre. Essa sequência não se mantém apenas em primeiro plano, mas estende-se para o futuro embate entre progresso e tradicionalismo.
A LUZ DOS OLHOS TEUS
Wright não apenas consegue transpassar toda o magnífico épico de Austen em diálogos muito bem pensados e estruturados, mas também cria uma concepção estética emocionante e envolvente, conseguindo envolver toda a magia das terras britânicas com uma visceralidade catártica.
Todo o niilismo da fotografia arquitetada por Roman Osin bate de frente com personagens movidos por valores milenares. A mudança das escolhas de iluminação é clara à medida em que a independência de Darcy e Lizzy dá lugar a uma angústia interior, representada pela transição gradativa das cores vivas, douradas e quentes para uma paleta mais pastel e suave, marcada pela escolha mórbida e quase monocromática do preto, do marrom e do verde, pincelados com alguns momentos de ternura com o vermelho e o laranja, principalmente em cenários mais fechados. E não é surpresa que o uso de tons mais esverdeados, normalmente conversando com a ideia de segurança, esteja presente nos momentos de maior tensão.
É engraçado colocarmos duas sequências muito bem construídas e analisarmos como elas representam causa e consequência para a vida dos personagens. Ao final do primeiro encontro entre o futuro casal, Lizzy mostra que não está interessada no rancoroso homem e se vira para ir embora, atravessando um gigantesco corredor. Sua expressão de contentamento, reafirmada pela luz dura, logo dá margem para feições de dúvida e leve arrependimento, marcados pelo escurecimento da fotografia que se mantém até a próxima vez que os dois se encontram. Com o final do segundo ato, os dois se reencontram em um gazebo logo depois que ela descobre um segredo terrível de Darcy. Após se confrontarem, temos praticamente o mesmo jogo de luzes, mas agora com o charmoso nobre, que não pode mais esconder seus sentimentos e não consegue mais manter-se indiferente quanto à jovem.
Cada uma das composições funciona como uma pintura. Resgatando elementos do barroco e do renascimento, criando assim uma amálgama atemporal para o filme, as sequências que premeditam um possível choque dialógico, por exemplo, que ocorre entre Lizzy e a prima do Sr. Bingley, a sedutora e venenosa Caroline (Kelly Reilly), a qual se importa mais com as aparências que os reais sentimentos. Em determinado momento, temos a clara distinção de classes entre a humildade mascaradas dos Bennet, cuja esperança de transcenderem para uma classe social mais abastada é transparecida pela escolha kitsch de suas vestimentas chamativas, e o hedonismo supérfluo dos Bingley, ressaltada pela sutileza e simetria de seus trajes (vide acima).
Como já é de se esperar, o final da narrativa nos fornece uma perspectiva otimista em relação ao “amor verdadeiro”. Ainda que se afaste dos convencionalismos de tramas similares, o reencontro dos protagonistas segue um padrão conhecido, acompanhado principalmente por uma fotografia que não chega a ser redundante, mas desenrola de modo dançante em tela: Lizzy está em seu momento reflexivo acerca do recente pedido de casamento feito por Bingley à sua irmã mais velha, Jane (Rosamund Pike) e ao descobrir o arco de redenção no qual Darcy se lançou. Logo depois, o homem aparece andando de forma objetiva através das campinas para finalmente falar com sua amada e firmar algo que sempre desejaram – e, assim que o duo deixa claro quais as intenções um para com o outro, a luz difusa do sol desponta no horizonte e os envolve mais uma vez na atmosfera onírica do primeiro ato.
O bucolismo próprio do cenário inglês também é de grande ajuda para a experiência sensorial. Todas essas sensações são também buscadas através pela trilha sonora pautada basicamente no piano clássico e delineada pela habilidade de Dario Marianelli, o qual se entrega para o drama histórico e permite ousar de forma a atingir todo o potencial que explora.
MRS. DARCY
A história pode ser repetitiva, mas ‘Orgulho e Preconceito’ deixa que seus pouco mais de 120 minutos passem em um piscar de olhos. Não apenas pela envolvente atmosfera, mas também pela incrível química que Knightley e Macfayden trazem em seus personagens, utilizando-se de monólogos extensos e crus para permitir que a conexão entre as figuras que encarnam seja tão forte quanto aquela com o público, que não pode deixar de se emocionar com cada uma das viradas dentro do roteiro.
Além disso, o romance não ortodoxo preza por inúmeras críticas sociais que perpassam por instituições inquebráveis, como o matrimônio e as classes sociais, bem como a sutileza da diferença de estilos de época e a impossibilidade de duas pessoas com abismos econômicos tão grandes poderem ficarem juntas. Não apenas a obra literária como também o filme de Wright permitem que essas ironias mostrem uma permanência do orgulho e do preconceito que sempre serão inerentes à personalidade do ser humano.