domingo , 22 dezembro , 2024

Artigo | ‘A Despedida’ é uma poderosa dramédia que merece ser apreciada por completo

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Awkwafina ganhou notoriedade há alguns anos por dois principais motivos: o primeiro é sua já vindoura arte musical, visto que é uma rapper estadunidense que tem dois álbuns de estúdio lançados – e mais um em produção; o segundo volta-se para as performances cinematográficas e seriadas, tendo participado de diversas obras em papéis secundários (como Oito Mulheres e Um Segredo’, Podres de Ricos’ e, mais recentemente, em ‘Shang-Chi’). Agora, chegou a vez da atriz e compositora brilhar em seu primeiro grande papel nas telonas com a comédia dramática A Despedida, cujo retrato intimista do que é ser uma família transformou o filme em um dos melhores do ano.

Do ponto de vista estrutural, a trama é bastante simples: Billi Wang (Awkwafina) descobre através de seus pais que sua avó, carinhosamente apelidada de Nai Nai (Zhao Shuzhen) foi diagnosticada com câncer terminal e tem apenas mais três meses de vida. Mas o problema não é esse, e sim o fato de que todo o núcleo familiar não quer contar a ela sobre sua situação – o que leva Billi e os próprios espectadores a acharem absurdo tirar tal conhecimento de uma pessoa. E é aí que a habilidade autobiográfica de Lulu Wang entra em cena para nos guiar numa pungente luta entre valores tradicionalistas e a contemporaneidade do mundo em que vivemos.



A diretora, que também fica responsável pelo roteiro, anunciou antes mesmo de entrar em pré-produção, que traria certas histórias de seu cotidiano para as telonas. Em entrevista ao programa de rádio This American Life, Wang comentou sobre como lidou diariamente com “a relação com a minha família versus a relação com meus amigos e meus colegas e o mundo que habito”. Dessa forma, dividiu a narrativa em dois ciclos principais: Billi como uma construção norte-americana (capitalista e individualista) e sua herança chinesa (pautada na coletividade e na sociedade); não é surpresa que, desde o princípio, até seus pais tentam esconder-lhe a condição da avó com medo de que ela não aceite o consenso a que chegaram e acabe revelando o segredo.

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Mesmo assim, a protagonista resolve viajar para sua terra natal (da qual saiu aos seis anos de idade ao lado dos pais) e, por se considerar uma “turista”, por assim dizer, estranha como seus parentes se portam e como a organicidade de seu outrora cotidiano é posta em xeque. Os constantes choques promovidos pelo enredo são o que entregam a beleza do filme, seja mais sutilmente – como a família criar o pretexto de um casamento para que os filhos e netos vejam a matriarca uma última vez -, seja com força dramática – os embates ideológicos que ocorrem entre Billi e o pai, Haiyan (Tzi Ma), e a mãe, Lu (Diana Lin). Na verdade, a arquitetura complexa da personagem principal não é única, estendendo-se para a constante queixa da geração mais antiga: Lu, por exemplo, engolfa-se em uma chocante autoafirmação ao discorrer sobre o teor de velórios chineses (“se você não chora o bastante, significa que não amava quem partiu”, ela repete).

Por mais racionais que consideremos os povos asiáticos, não podemos deixar de lado a outra perspectiva que Wang imprime em seu longa-metragem. A exímia delineação entre cultura e vivência desmembra-se em um agonizante estudo antropológico que pode não ser conhecido por nós, bombardeados constantemente por gigantescas produções hollywoodianas dia após dia, mas é intrínseco a eles. Para além disso, Billi sente-se compulsoriamente isolada por perder o senso de pertencimento a qualquer grupo social, transformando-se em uma amargurada figura cuja voz é posta de lado em prol de um “compartilhamento de responsabilidades”, como bem pontua o tio Haibin (Jiang Yongbo).

A parcialidade é posta de lado e aproveita essa atenuação para nos embebedar com uma narcótica experiência que desconstrói os limites cênicos e nos leva a reflexões emblemáticas sobre nossa própria vida. E é claro que a cineasta não deixaria de se ater à belíssima composição cênica que, apesar de tratar de dois mundos tão opostos, os une em uma melancólica identidade imagética, tanto na excessiva simetria dos enquadramentos (ainda que não pareçam), quanto na propositalmente engessada e cúbica edição e na fria paleta de cores que nem mesmo nas sequências matrimoniais ousam sair do espectro a que se propõe.

As restrições da obra não são autoimpostas, como erroneamente pensaríamos ao lembrar-nos dos melodramas familiares; na verdade, Wang se afasta de quaisquer rótulos e deturpa até os momentos menos tensos em uma irônica sátira que se estende para os outros elementos. E, também diferente do que se possa imaginar, cada beat, cada frame é pensado com diferentes objetivos, a fim de que o público compreenda a transição do arco dos personagens, sejam eles coadjuvantes ou protagonistas – Billi acaba aceitando de cabeça baixa o destino da avó e o fato de provavelmente não poder lhe dizer adeus, enquanto a mãe e o pai sofrem por se lembrarem dessa milenar tradição; a única que se recusa (e não por falta de tentativas) a sair de sua plenitude é a avó, que pode ser muito bem um espelho daqueles que amamos.

A Despedida é uma “boa mentira” cujas consequências não são explanadas em tela: na verdade, a iteração termina sem um fim, deixando as pontas soltas ainda mais soltas. A mudança de atmosfera é destinada a suas personas e somente a elas – e, apesar de conseguirmos prever os próximos capítulos desse metódico tour-de-force, a frustração de não existir nenhum parâmetro confirmativo é canalizado para uma resignada heroína e para nós.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Awkwafina ganhou notoriedade há alguns anos por dois principais motivos: o primeiro é sua já vindoura arte musical, visto que é uma rapper estadunidense que tem dois álbuns de estúdio lançados – e mais um em produção; o segundo volta-se para as performances cinematográficas e seriadas, tendo participado de diversas obras em papéis secundários (como Oito Mulheres e Um Segredo’, Podres de Ricos’ e, mais recentemente, em ‘Shang-Chi’). Agora, chegou a vez da atriz e compositora brilhar em seu primeiro grande papel nas telonas com a comédia dramática A Despedida, cujo retrato intimista do que é ser uma família transformou o filme em um dos melhores do ano.

Do ponto de vista estrutural, a trama é bastante simples: Billi Wang (Awkwafina) descobre através de seus pais que sua avó, carinhosamente apelidada de Nai Nai (Zhao Shuzhen) foi diagnosticada com câncer terminal e tem apenas mais três meses de vida. Mas o problema não é esse, e sim o fato de que todo o núcleo familiar não quer contar a ela sobre sua situação – o que leva Billi e os próprios espectadores a acharem absurdo tirar tal conhecimento de uma pessoa. E é aí que a habilidade autobiográfica de Lulu Wang entra em cena para nos guiar numa pungente luta entre valores tradicionalistas e a contemporaneidade do mundo em que vivemos.

A diretora, que também fica responsável pelo roteiro, anunciou antes mesmo de entrar em pré-produção, que traria certas histórias de seu cotidiano para as telonas. Em entrevista ao programa de rádio This American Life, Wang comentou sobre como lidou diariamente com “a relação com a minha família versus a relação com meus amigos e meus colegas e o mundo que habito”. Dessa forma, dividiu a narrativa em dois ciclos principais: Billi como uma construção norte-americana (capitalista e individualista) e sua herança chinesa (pautada na coletividade e na sociedade); não é surpresa que, desde o princípio, até seus pais tentam esconder-lhe a condição da avó com medo de que ela não aceite o consenso a que chegaram e acabe revelando o segredo.

Mesmo assim, a protagonista resolve viajar para sua terra natal (da qual saiu aos seis anos de idade ao lado dos pais) e, por se considerar uma “turista”, por assim dizer, estranha como seus parentes se portam e como a organicidade de seu outrora cotidiano é posta em xeque. Os constantes choques promovidos pelo enredo são o que entregam a beleza do filme, seja mais sutilmente – como a família criar o pretexto de um casamento para que os filhos e netos vejam a matriarca uma última vez -, seja com força dramática – os embates ideológicos que ocorrem entre Billi e o pai, Haiyan (Tzi Ma), e a mãe, Lu (Diana Lin). Na verdade, a arquitetura complexa da personagem principal não é única, estendendo-se para a constante queixa da geração mais antiga: Lu, por exemplo, engolfa-se em uma chocante autoafirmação ao discorrer sobre o teor de velórios chineses (“se você não chora o bastante, significa que não amava quem partiu”, ela repete).

Por mais racionais que consideremos os povos asiáticos, não podemos deixar de lado a outra perspectiva que Wang imprime em seu longa-metragem. A exímia delineação entre cultura e vivência desmembra-se em um agonizante estudo antropológico que pode não ser conhecido por nós, bombardeados constantemente por gigantescas produções hollywoodianas dia após dia, mas é intrínseco a eles. Para além disso, Billi sente-se compulsoriamente isolada por perder o senso de pertencimento a qualquer grupo social, transformando-se em uma amargurada figura cuja voz é posta de lado em prol de um “compartilhamento de responsabilidades”, como bem pontua o tio Haibin (Jiang Yongbo).

A parcialidade é posta de lado e aproveita essa atenuação para nos embebedar com uma narcótica experiência que desconstrói os limites cênicos e nos leva a reflexões emblemáticas sobre nossa própria vida. E é claro que a cineasta não deixaria de se ater à belíssima composição cênica que, apesar de tratar de dois mundos tão opostos, os une em uma melancólica identidade imagética, tanto na excessiva simetria dos enquadramentos (ainda que não pareçam), quanto na propositalmente engessada e cúbica edição e na fria paleta de cores que nem mesmo nas sequências matrimoniais ousam sair do espectro a que se propõe.

As restrições da obra não são autoimpostas, como erroneamente pensaríamos ao lembrar-nos dos melodramas familiares; na verdade, Wang se afasta de quaisquer rótulos e deturpa até os momentos menos tensos em uma irônica sátira que se estende para os outros elementos. E, também diferente do que se possa imaginar, cada beat, cada frame é pensado com diferentes objetivos, a fim de que o público compreenda a transição do arco dos personagens, sejam eles coadjuvantes ou protagonistas – Billi acaba aceitando de cabeça baixa o destino da avó e o fato de provavelmente não poder lhe dizer adeus, enquanto a mãe e o pai sofrem por se lembrarem dessa milenar tradição; a única que se recusa (e não por falta de tentativas) a sair de sua plenitude é a avó, que pode ser muito bem um espelho daqueles que amamos.

A Despedida é uma “boa mentira” cujas consequências não são explanadas em tela: na verdade, a iteração termina sem um fim, deixando as pontas soltas ainda mais soltas. A mudança de atmosfera é destinada a suas personas e somente a elas – e, apesar de conseguirmos prever os próximos capítulos desse metódico tour-de-force, a frustração de não existir nenhum parâmetro confirmativo é canalizado para uma resignada heroína e para nós.

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