quinta-feira , 2 janeiro , 2025

Artigo | Dez anos depois, ‘American Horror Story: Asylum’ permanece como a melhor temporada da antologia

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A segunda temporada de American Horror Story é o que podemos chamar de uma pequena pérola das produções televisivas contemporâneas. Ambientado em um manicômio, o capítulo seguinte da produção antológica criada por Ryan Murphy e Brad Falchuk não apenas apara as pontas soltas e aprende com os deslizes, mas entrega uma jornada epopeica através do período pós-II Guerra Mundial, atravessando o território inexplicável da vida extraterrestre, mergulhando nas consequências do holocausto judeu da década de 1940 e até mesmo explorando temas como homofobia, livre-arbítrio e devoção.

Não é de se esperar que o conceito-base da série tenha sido elevado a um nível ainda mais distorcido, principalmente se levarmos em consideração a mente distorcida de seus idealizadores artísticos. O terror e o gore talvez nunca tenham emergido com uma mistura tão contraditória quanto esta: a brutalidade de sua ambiência e da atmosfera sobrenatural entrando em conflito com personagens sutis e críveis o suficiente para se conectarem com as diferentes parcelas do público-alvo.



A atemporalidade com que suas múltiplas narrativas são adornadas tornam Asylum’, como foi subtitulada, a melhor entrada da parceria Murphy-Falchuk para o épico do horror a entrar no imenso catálogo da FX. E, diferentemente de Murder House’, os showrunners puderam usar e abusar de seus maneirismos para arquitetarem um universo próprio do misticismo surrealista que envolve o principal cenário da trama – um complexo carcerário tão macabro quanto aqueles que vemos em histórias de terror. E se já nos deliciávamos com as inúmeras referências fílmicas da primeira temporada, a próxima certamente superou as expectativas ao abrir seu leque ainda mais.

BEM-VINDOS A BRIARCLIFF

Assim como a mansão do ano de estreia de AHS’, Briarcliff é uma instituição de reabilitação mental para os psicóticos e insanos que parece estar à parte do mundo que conhecemos. Erguida pela Igreja Católica com um apoio ferrenho do Estado, o complexo hospitalar é, na verdade, um dos lugares mais contraditórios de todo o microcosmos da série justamente por estar povoado de personagens que pregam valores que não seguem ou que varrem para debaixo do tapete para benefício próprio.

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A priori, precisamos entender que a concepção arquitetônica de Briarcliff nos lembra propositalmente dos cenários expressionistas dos clássicos cinematográficos, como Nosferatu’ (1922) e O Gabinete do Doutor Caligari’ (1920). É claro que a estrutura material em sua forma mais bruta permanece com uma simetria quase assustadora, mas a composição de cada um dos frames opta pelos plongées e contra-plongées muito bem pensados para a emersão de uma atmosfera ameaçadora, ao mesmo tempo em que exala um misticismo convidativo. Até o acoplamento de lentes grande-angular e olho-de-peixe contribuem para a presença do sobrenatural e do inexplicável, atraindo os olhos do público e nos fazendo voltar a atenção para uma das protagonistas da trama: Lana Winters (Sarah Paulson).

Lana é uma repórter, ou seja, a representação do herói curioso que entra num círculo de mentiras e perigos por sua insistente personalidade de buscar respostas para aquilo que não conhece. Chegando à instituição com a mais “pura das intenções”, ela se encontra com a Irmã Jude (Jessica Lange), uma austera freira que comanda o lugar a partir dos cuidados indiretos do Monsenhor Timothy (Joseph Fiennes). É impressionante analisarmos o choque de gerações entre as duas personagens, visto que uma traz uma robustez própria de alguém que encontrou o “caminho divino” após passar por um grande trauma, e a outra é pincelada com o espírito aventureiro e transgressor de meados da década de 1960 – uma jornalista lésbica, independente e muito à frente de seu tempo.

É claro que, aos olhos conservadores dos órgãos que cuidam do hospício, Lana é uma grande ameaça, tanto para sua reputação quanto para a integridade de seus funcionários. Ela, diferentemente do que pensávamos, desejava investigar os crimes cometidos pelo Cara Sangrenta, um serial killer que esteve aterrorizando a cidade de Massachusetts e que aparentemente foi pego pelas autoridades e mandado para Briarcliff. Não temos certeza da veracidade dos fatos: primeiro, Evan Peters encarna o suposto assassino Kit Walker, mas logo no episódio piloto, ele protagoniza um prólogo essencialmente ininteligível sobre abdução e alienígenas, tornando-o traumatizado pelos eventos do passado, mas não passível de cometer atrocidades como esfolar mulheres vivas e esquartejá-las.

Além dos personagens principais, temos também os coadjuvantes – e garanto que, dentro do escopo idealizado por Murphy, Falchuk e todo o time criativo, cada um tem a sua importância para a complexidade de Asylum’. Temos, por exemplo, Pepper (Naomi Gross), uma mulher com microcefalia acusada injustamente de cortar as orelhas de sua irmã e afogar seu sobrinho na banheira e que, nos primeiros momentos em que aparece, parece não prometer muitas coisas. Entretanto, sua incrível capacidade de associação lógica e de cinismo a tornou uma aliada sem precedentes para os “mocinhos” da história. Outra grande entrada coadjuvante é a de Ian McShane como o psicopata Leigh Emerson, responsável por matar 18 pessoas na noite de Natal e conseguir escapar de Briarcliff após crucificar o Monsenhor.

Tratar as criações narrativas desta série com maniqueísmos, porém, é um dos piores equívocos a serem cometidos. Afinal, a credibilidade de AHS’ vem justamente com a humanização e a materialização do impossível; desta forma, cada um dos arquétipos que encontramos aqui é passível de erros e acertos – ora, o maior exemplo disso é, sem sombra de dúvida, o arco de redenção no qual Jude entra após perceber as terríveis escolhas que fez para com Lana, Kit, Grace (Lizzie Brocheré) e outros. À medida em que os episódios se seguem conseguimos abandonar a visão simplista do “bom” e do “ruim”, conhecendo os dois lados de cada história; cada um deles tem seus próprios medos a serem enfrentados e, por mais que tentem, não resistem às tentações mundanas – mas é esse lado fraco que os torna humanos e os torna palpáveis para o público.

Mas para traçar uma linha mais compreensível, podemos colocar alguns personagens como aparições vilanescas. Temos, por exemplo, James Cromwell como o soturno Dr. Hans Grupe, disfarçado sob o pseudônimo de Arthur Arden após fugir de seu destino como médico nazista para encontrar um novo lar na América e poder realizar seus experimentos desumanos. Zachary Quinto também faz seu retorno para a série encarnando o psiquiatra Oliver Thredson – que revela ser o real Cara Sangrenta em uma das sequências mais aterrorizantes da televisão contemporânea.

O constante embate entre o que é certo e o que é justo é um dos principais motivos que tornam a segunda temporada uma das, senão a melhor entrada de toda a antologia. A narrativa segue de forma frenética e emocionante através dos estreitos corredores de Briarcliff, transformando um cenário claustrofóbico em um labirinto interminável de horrores, pacientes abandonados e a constante presença da morte. Combine isso a uma direção perscrutada por câmeras na mão, planos holandeses disformes e uma estética onírica que nos dá uma visão dúbia sobre o que nos é apresentado. Quando confrontamos o passado dos protagonistas, permanecemos na dúvida quanto à veracidade dos acontecimentos, recuperando alguns elementos da iteração predecessora e firmando um império anacrônico.

O ANJO CAÍDO

O tema principal a acompanhar todas as subtramas da Asylum’ pode ser encarado como um subsídio até clichê, mas tratado com a máxima de cautela: a luta do divino com o mundano. Em meados do segundo episódio, Tricks and Treats, vemos que, durante uma sequência de exorcismo performado dentro dos territórios da instituição mental, uma das criaturas mais perigosas e sedutoras a habitarem o imaginário popular – o anjo caído Lucífer – entra no corpo de uma das jovens freiras – a Irmã Mary Eunice (Lily Rabe, em o que podemos considerar uma das melhores performances de sua carreira inteira). A atriz em questão demonstrou, em todos os episódios, uma versatilidade diabólica para encarnar uma sobreposição de Súcubo e os picos de controle de seu ID, o qual tentava se libertar do ser que aprisionava-a em seu próprio subconsciente.

Mary Eunice acaba se transformando por completo, dando indicações de que está possuída por uma força desconhecida ao adotar para sua caracterização a cor vermelha – ou seja, uma paleta que nos remete à luxúria, à sedução, ao sangue e à instabilidade emocional. É interessante notarmos como a caracterização de tal personagem vem carregada com sutilezas simbólicas e cínicas, incluindo suas incríveis falas sobre o pecado original, a fraqueza humana e os vícios negligentes que afastam as “boas pessoas” de um caminho de salvação. O contraste vem em primeiro plano, principalmente quando temos os tons monocromáticos de preto, cinza e branco de Briarcliff ofuscados pelo vermelho-sangue de sua lingerie, de seus lábios ou até mesmo de seus olhos – e tudo incrivelmente se inclina para referências a O Exorcista’ (1973), mas apenas se o demônio dentro da pequena Regan McNeil prevalecesse.

Entretanto, não espere ver uma luta épica entre Deus e Satã nas instalações do complexo; as coisas vão além disso, alcançando um nível metafórico inimaginável ao colocar duas criaturas sobre-humanas em um confronto pelo controle do efêmero, do passageiro e do frágil: as próprias pessoas. Frances Conroy dá vida ao Anjo da Morte, a nêmeses de Mary Eunice, visto que aparece como uma criatura da vida eterna e da salvação do sofrimento para aqueles que já cumpriram sua missão no plano terrestre. Suas aparições são constantemente acompanhadas com uma melódica música clássica – e até mesmo seu beijo fatídico é eximiamente bem coreografado, como se estivéssemos assistindo à grandiloquência de um ballet à la Lago dos Cisnes’ ou A Megera Domada’. Ela não precisa impor sua majestuosidade: temendo ou não, crendo ou não, todos estão fadados a entregar sua vida em algum momento – afinal, a morte é uma das poucas certezas de que temos.

O arquétipo do anjo caído, como já podemos imaginar, não se restringe ao campo bíblico. Ele atravessa as barreiras da intertextualidade para fazer alusão à crescente luta enfrentada pelos homossexuais em meados do século XX, cuja orientação sexual era tratada como doença e passível de internação psiquiátrica – e é com muita angústia e persuasão que Lana acaba se tornando paciente de Briarcliff contra sua vontade, apenas para servir como objeto de estudo pela mentalidade reacionária de suas comandantes – Jude, Arthur e Mary Eunice – e se tornar um “animal de estimação” nas mãos do condescendente, porém superficialmente adorável Dr. Thredson, o qual deixa a entender que não deseja fazer nada além de ajudá-la a escapar dali.

As coisas ficam ainda mais sombrias quando percebemos essa necessidade pela paz interior dando lugar a patologias em gradativo dentro de uma sociedade amedrontada pelos horrores da guerra e pela inconstância humana: Oliver é um homem completamente desequilibrada que busca em suas vítimas uma representação de sua mãe, a qual lhe abandonou quando mais novo. Seu Complexo de Édipo, porém, o levou a canalizar as frustrações para a descamação de mulheres, procurando ver-se dentro de uma figura iconoclasta e utópica de uma figura que nunca existiria – justamente por ele negar sua presença ainda que a desejasse.

É quase impossível imaginar como, em treze episódios, a multiplicidade de pontos de vista narrativos não encontra sua saturação. A explicação, todavia, é bem simples: em Asylum’, a busca vai por outro caminho, recusando-se a discorrer sobre o passado dos personagens, mas sim como todos eles convergem para a construção de uma microsociedade banhada pela tragédia e pelo caos. Queremos entender como a mente deles funciona, e não como foi formada – todos podemos ter ideia dos traumas que perscrutam o passado de um psicopata, um maníaco sexual ou até mesmo uma cristã convertida; o que queremos é vê-los em ação e ver com o presente atua num futuro irremediável e ainda mais complicado.

ABANDONAI TODA A ESPERANÇA, VÓS QUE AQUI ENTRAIS

Se a primeira temporada de American Horror Story foi um ambiente de experimentalismo, a nova iteração pode ser encarada como uma versão madura, sádica e recheada com o melhor do gore e do terror que tanto habitou o imaginário de artistas audiovisuais da década e 1940 e 1950. Além da incrível capacidade nostálgica de nos transportar ao passado, as conversas com temas de grande importância na contemporaneidade entregam a versatilidade do time criativo por trás da série.

Não é de assustar que Ryan Murphy realize com tanto prazer seus trabalhos. É possível ver a identidade que o acompanhou em obras anteriores ganhar mais voz, mais espaço no meio artístico – e, bom… Mais sangue. E com Asylum’, seu império entrou mais uma vez numa reafirmação óbvia, mas sempre digna de menção.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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A segunda temporada de American Horror Story é o que podemos chamar de uma pequena pérola das produções televisivas contemporâneas. Ambientado em um manicômio, o capítulo seguinte da produção antológica criada por Ryan Murphy e Brad Falchuk não apenas apara as pontas soltas e aprende com os deslizes, mas entrega uma jornada epopeica através do período pós-II Guerra Mundial, atravessando o território inexplicável da vida extraterrestre, mergulhando nas consequências do holocausto judeu da década de 1940 e até mesmo explorando temas como homofobia, livre-arbítrio e devoção.

Não é de se esperar que o conceito-base da série tenha sido elevado a um nível ainda mais distorcido, principalmente se levarmos em consideração a mente distorcida de seus idealizadores artísticos. O terror e o gore talvez nunca tenham emergido com uma mistura tão contraditória quanto esta: a brutalidade de sua ambiência e da atmosfera sobrenatural entrando em conflito com personagens sutis e críveis o suficiente para se conectarem com as diferentes parcelas do público-alvo.

A atemporalidade com que suas múltiplas narrativas são adornadas tornam Asylum’, como foi subtitulada, a melhor entrada da parceria Murphy-Falchuk para o épico do horror a entrar no imenso catálogo da FX. E, diferentemente de Murder House’, os showrunners puderam usar e abusar de seus maneirismos para arquitetarem um universo próprio do misticismo surrealista que envolve o principal cenário da trama – um complexo carcerário tão macabro quanto aqueles que vemos em histórias de terror. E se já nos deliciávamos com as inúmeras referências fílmicas da primeira temporada, a próxima certamente superou as expectativas ao abrir seu leque ainda mais.

BEM-VINDOS A BRIARCLIFF

Assim como a mansão do ano de estreia de AHS’, Briarcliff é uma instituição de reabilitação mental para os psicóticos e insanos que parece estar à parte do mundo que conhecemos. Erguida pela Igreja Católica com um apoio ferrenho do Estado, o complexo hospitalar é, na verdade, um dos lugares mais contraditórios de todo o microcosmos da série justamente por estar povoado de personagens que pregam valores que não seguem ou que varrem para debaixo do tapete para benefício próprio.

A priori, precisamos entender que a concepção arquitetônica de Briarcliff nos lembra propositalmente dos cenários expressionistas dos clássicos cinematográficos, como Nosferatu’ (1922) e O Gabinete do Doutor Caligari’ (1920). É claro que a estrutura material em sua forma mais bruta permanece com uma simetria quase assustadora, mas a composição de cada um dos frames opta pelos plongées e contra-plongées muito bem pensados para a emersão de uma atmosfera ameaçadora, ao mesmo tempo em que exala um misticismo convidativo. Até o acoplamento de lentes grande-angular e olho-de-peixe contribuem para a presença do sobrenatural e do inexplicável, atraindo os olhos do público e nos fazendo voltar a atenção para uma das protagonistas da trama: Lana Winters (Sarah Paulson).

Lana é uma repórter, ou seja, a representação do herói curioso que entra num círculo de mentiras e perigos por sua insistente personalidade de buscar respostas para aquilo que não conhece. Chegando à instituição com a mais “pura das intenções”, ela se encontra com a Irmã Jude (Jessica Lange), uma austera freira que comanda o lugar a partir dos cuidados indiretos do Monsenhor Timothy (Joseph Fiennes). É impressionante analisarmos o choque de gerações entre as duas personagens, visto que uma traz uma robustez própria de alguém que encontrou o “caminho divino” após passar por um grande trauma, e a outra é pincelada com o espírito aventureiro e transgressor de meados da década de 1960 – uma jornalista lésbica, independente e muito à frente de seu tempo.

É claro que, aos olhos conservadores dos órgãos que cuidam do hospício, Lana é uma grande ameaça, tanto para sua reputação quanto para a integridade de seus funcionários. Ela, diferentemente do que pensávamos, desejava investigar os crimes cometidos pelo Cara Sangrenta, um serial killer que esteve aterrorizando a cidade de Massachusetts e que aparentemente foi pego pelas autoridades e mandado para Briarcliff. Não temos certeza da veracidade dos fatos: primeiro, Evan Peters encarna o suposto assassino Kit Walker, mas logo no episódio piloto, ele protagoniza um prólogo essencialmente ininteligível sobre abdução e alienígenas, tornando-o traumatizado pelos eventos do passado, mas não passível de cometer atrocidades como esfolar mulheres vivas e esquartejá-las.

Além dos personagens principais, temos também os coadjuvantes – e garanto que, dentro do escopo idealizado por Murphy, Falchuk e todo o time criativo, cada um tem a sua importância para a complexidade de Asylum’. Temos, por exemplo, Pepper (Naomi Gross), uma mulher com microcefalia acusada injustamente de cortar as orelhas de sua irmã e afogar seu sobrinho na banheira e que, nos primeiros momentos em que aparece, parece não prometer muitas coisas. Entretanto, sua incrível capacidade de associação lógica e de cinismo a tornou uma aliada sem precedentes para os “mocinhos” da história. Outra grande entrada coadjuvante é a de Ian McShane como o psicopata Leigh Emerson, responsável por matar 18 pessoas na noite de Natal e conseguir escapar de Briarcliff após crucificar o Monsenhor.

Tratar as criações narrativas desta série com maniqueísmos, porém, é um dos piores equívocos a serem cometidos. Afinal, a credibilidade de AHS’ vem justamente com a humanização e a materialização do impossível; desta forma, cada um dos arquétipos que encontramos aqui é passível de erros e acertos – ora, o maior exemplo disso é, sem sombra de dúvida, o arco de redenção no qual Jude entra após perceber as terríveis escolhas que fez para com Lana, Kit, Grace (Lizzie Brocheré) e outros. À medida em que os episódios se seguem conseguimos abandonar a visão simplista do “bom” e do “ruim”, conhecendo os dois lados de cada história; cada um deles tem seus próprios medos a serem enfrentados e, por mais que tentem, não resistem às tentações mundanas – mas é esse lado fraco que os torna humanos e os torna palpáveis para o público.

Mas para traçar uma linha mais compreensível, podemos colocar alguns personagens como aparições vilanescas. Temos, por exemplo, James Cromwell como o soturno Dr. Hans Grupe, disfarçado sob o pseudônimo de Arthur Arden após fugir de seu destino como médico nazista para encontrar um novo lar na América e poder realizar seus experimentos desumanos. Zachary Quinto também faz seu retorno para a série encarnando o psiquiatra Oliver Thredson – que revela ser o real Cara Sangrenta em uma das sequências mais aterrorizantes da televisão contemporânea.

O constante embate entre o que é certo e o que é justo é um dos principais motivos que tornam a segunda temporada uma das, senão a melhor entrada de toda a antologia. A narrativa segue de forma frenética e emocionante através dos estreitos corredores de Briarcliff, transformando um cenário claustrofóbico em um labirinto interminável de horrores, pacientes abandonados e a constante presença da morte. Combine isso a uma direção perscrutada por câmeras na mão, planos holandeses disformes e uma estética onírica que nos dá uma visão dúbia sobre o que nos é apresentado. Quando confrontamos o passado dos protagonistas, permanecemos na dúvida quanto à veracidade dos acontecimentos, recuperando alguns elementos da iteração predecessora e firmando um império anacrônico.

O ANJO CAÍDO

O tema principal a acompanhar todas as subtramas da Asylum’ pode ser encarado como um subsídio até clichê, mas tratado com a máxima de cautela: a luta do divino com o mundano. Em meados do segundo episódio, Tricks and Treats, vemos que, durante uma sequência de exorcismo performado dentro dos territórios da instituição mental, uma das criaturas mais perigosas e sedutoras a habitarem o imaginário popular – o anjo caído Lucífer – entra no corpo de uma das jovens freiras – a Irmã Mary Eunice (Lily Rabe, em o que podemos considerar uma das melhores performances de sua carreira inteira). A atriz em questão demonstrou, em todos os episódios, uma versatilidade diabólica para encarnar uma sobreposição de Súcubo e os picos de controle de seu ID, o qual tentava se libertar do ser que aprisionava-a em seu próprio subconsciente.

Mary Eunice acaba se transformando por completo, dando indicações de que está possuída por uma força desconhecida ao adotar para sua caracterização a cor vermelha – ou seja, uma paleta que nos remete à luxúria, à sedução, ao sangue e à instabilidade emocional. É interessante notarmos como a caracterização de tal personagem vem carregada com sutilezas simbólicas e cínicas, incluindo suas incríveis falas sobre o pecado original, a fraqueza humana e os vícios negligentes que afastam as “boas pessoas” de um caminho de salvação. O contraste vem em primeiro plano, principalmente quando temos os tons monocromáticos de preto, cinza e branco de Briarcliff ofuscados pelo vermelho-sangue de sua lingerie, de seus lábios ou até mesmo de seus olhos – e tudo incrivelmente se inclina para referências a O Exorcista’ (1973), mas apenas se o demônio dentro da pequena Regan McNeil prevalecesse.

Entretanto, não espere ver uma luta épica entre Deus e Satã nas instalações do complexo; as coisas vão além disso, alcançando um nível metafórico inimaginável ao colocar duas criaturas sobre-humanas em um confronto pelo controle do efêmero, do passageiro e do frágil: as próprias pessoas. Frances Conroy dá vida ao Anjo da Morte, a nêmeses de Mary Eunice, visto que aparece como uma criatura da vida eterna e da salvação do sofrimento para aqueles que já cumpriram sua missão no plano terrestre. Suas aparições são constantemente acompanhadas com uma melódica música clássica – e até mesmo seu beijo fatídico é eximiamente bem coreografado, como se estivéssemos assistindo à grandiloquência de um ballet à la Lago dos Cisnes’ ou A Megera Domada’. Ela não precisa impor sua majestuosidade: temendo ou não, crendo ou não, todos estão fadados a entregar sua vida em algum momento – afinal, a morte é uma das poucas certezas de que temos.

O arquétipo do anjo caído, como já podemos imaginar, não se restringe ao campo bíblico. Ele atravessa as barreiras da intertextualidade para fazer alusão à crescente luta enfrentada pelos homossexuais em meados do século XX, cuja orientação sexual era tratada como doença e passível de internação psiquiátrica – e é com muita angústia e persuasão que Lana acaba se tornando paciente de Briarcliff contra sua vontade, apenas para servir como objeto de estudo pela mentalidade reacionária de suas comandantes – Jude, Arthur e Mary Eunice – e se tornar um “animal de estimação” nas mãos do condescendente, porém superficialmente adorável Dr. Thredson, o qual deixa a entender que não deseja fazer nada além de ajudá-la a escapar dali.

As coisas ficam ainda mais sombrias quando percebemos essa necessidade pela paz interior dando lugar a patologias em gradativo dentro de uma sociedade amedrontada pelos horrores da guerra e pela inconstância humana: Oliver é um homem completamente desequilibrada que busca em suas vítimas uma representação de sua mãe, a qual lhe abandonou quando mais novo. Seu Complexo de Édipo, porém, o levou a canalizar as frustrações para a descamação de mulheres, procurando ver-se dentro de uma figura iconoclasta e utópica de uma figura que nunca existiria – justamente por ele negar sua presença ainda que a desejasse.

É quase impossível imaginar como, em treze episódios, a multiplicidade de pontos de vista narrativos não encontra sua saturação. A explicação, todavia, é bem simples: em Asylum’, a busca vai por outro caminho, recusando-se a discorrer sobre o passado dos personagens, mas sim como todos eles convergem para a construção de uma microsociedade banhada pela tragédia e pelo caos. Queremos entender como a mente deles funciona, e não como foi formada – todos podemos ter ideia dos traumas que perscrutam o passado de um psicopata, um maníaco sexual ou até mesmo uma cristã convertida; o que queremos é vê-los em ação e ver com o presente atua num futuro irremediável e ainda mais complicado.

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Se a primeira temporada de American Horror Story foi um ambiente de experimentalismo, a nova iteração pode ser encarada como uma versão madura, sádica e recheada com o melhor do gore e do terror que tanto habitou o imaginário de artistas audiovisuais da década e 1940 e 1950. Além da incrível capacidade nostálgica de nos transportar ao passado, as conversas com temas de grande importância na contemporaneidade entregam a versatilidade do time criativo por trás da série.

Não é de assustar que Ryan Murphy realize com tanto prazer seus trabalhos. É possível ver a identidade que o acompanhou em obras anteriores ganhar mais voz, mais espaço no meio artístico – e, bom… Mais sangue. E com Asylum’, seu império entrou mais uma vez numa reafirmação óbvia, mas sempre digna de menção.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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