terça-feira, abril 23, 2024

Artigo | ‘Matilda’, estrelado por Mara Wilson, é um filme bem mais complexo do que parece

Não sei por que, mas tenho uma memória bastante inesperada com a icônica aventura infantil ‘Matilda’. Lembro-me de assistir ao filme alguns anos depois que ele já havia saído – ainda mais porque, à época de seu lançamento oficial, não tinha nascido ainda -, e de morrer de medo de algumas das cenas do longa-metragem. Revisitando-o tempos depois de conferi-lo pela primeira vez, é bem provável que a figura da Srta. Trunchbull, interpretada pela incrível Pam Ferris, tenha sido a responsável por me dar arrepios, seja por sua construção, seja por tudo que tenha simbolizado no decorrer da narrativa.

Com o anúncio de um novo filme musical, cortesia da Netflix, recuperar as memórias de um dos maiores clássicos dos anos 1990 parece um trabalho óbvio a se fazer, principalmente se você nunca teve a oportunidade de vê-lo. Afinal, a produção, dirigida por ninguém menos que Danny DeVito (que, além de comandar, atua em papel duplo como o narrador e como o abusivo pai da personagem titular), possui um importante papel que vai para além do mero didatismo e incita o público infantil a perceber, por conta própria, as mazelas que se escondem no mundo e como enfrentá-los.

Para aqueles que não se recordam ou não conhecem, o enredo acompanha Matilda Wormwood (Mara Wilson), uma jovem e sagaz menina que tem uma afeição por livros que não condiz nem às predileções de outras crianças da sua idade nem ao tóxico ambiente familiar em que se insere – considerando que, nas primeiras cenas, vemos o pai, a mãe (Rhea Perlman) e o irmão (Brian Levinson) engolfados em um vício pela futilidade que a joga para escanteio. Mais do que isso, Matilda começa a desenvolver habilidades telecinéticas que a ajudam a lidar com os múltiplos obstáculos que enfrentará no caminho, incluindo o fato dos pais a forçarem a ser admitida na Escola Crunchem, comandada pela impiedosa Agatha Trunchbull (ambos os nomes carregados com arquétipos bem claros e que premeditam uma série de eventos incríveis que culminarão no grand finale).

Apesar das obviedades do roteiro, cada uma das engrenagens é polida com minuciosa cautela, permitindo que as crianças assimilem os acontecimentos cronológicos e consigam diferenciar o que significa ser bom e ser ruim. É claro que, em boa parte dos momentos, o público lida com os maniqueísmos da indústria hollywoodiana em sua mais gloriosa forma: Matilda é a representação máxima da ingênua criança que começa a despontar curiosidade por aquilo à própria volta, sendo podada por forças maiores que desejam moldá-la a seu bel-prazer; Agatha, por sua vez, materializa uma das discussões principais do âmbito da pedagogia – posando como uma tirana autoritária que utiliza os mais variados métodos de tortura psicológica e física para manter os alunos na linha. Além disso, ela é tradução de um termo conhecido como panóptico, cunhado pelo filósofo Michel Foucault, uma estrutura de controle social que tudo vê e que nada deixa passar (como a onipresença de Trunchbull pelos corredores da escola, a qual, por sua vez, é construída como uma amedrontadora e obscura prisão).

Neste complexo cosmos, que se baseia nos escritos homônimos de Roald Dahl, DeVito colabora com os roteiristas Nicholas Kazan e Robin Swicord para arquitetar um diálogo mais conciso e sólido com os espectadores ao mergulhar de cabeça na atemporalidade da jornada do herói. Matilda eventualmente cruza o limiar entre o universo que conhece e o universo que desconhece, enfrentando uma espécie de coming-of-age que a lança de encontro a Agatha e a coloca numa posição de elo com as outras crianças. E, como é de se esperar, ela é auxiliada pela inocência manchada dos colegas de classe e pela mentora, Jennifer Honey (Embeth Davidtz), uma professora devota e gentil que é sobrinha de Trunchbull e aturou seus abusos por toda a vida. Mas, em contraposição à diferenciação comum da jornada supracitada, Jennifer é marcada por um trauma profundo que inclui a misteriosa morte do pai (que acredita ter sido assassinado pela tia) e uma impotência intrínseca à sua natureza benevolente, atraída pela personalidade de Matilda e vendo nela uma oportunidade de mudar as coisas na escola.

As temáticas exploradas não absorvidas com a mesma magnitude pelas crianças, mas servem como reflexo de sutilezas mais passiva-agressivas que podem enfrentar na vida adulta e, por essa razão, mostram-se com importância necessária para causar a sensação de desconforto, medo e de superação e empoderamento de que elas precisam para começar a compreender o mundo. E a cereja do bolo vem com as belíssimas sequências coreografadas por DeVito e sua incrível equipe criativa, além de caracterizações exageradas que auxiliam na diferenciação de personagens através de marcações mnemônicas que variam desde a aura bondosa da Srta. Honey ao peso dramático e entorpecente da Srta. Trunchbull.

Não deixe de assistir:

Por incrível que pareça, ‘Matilda’ mostra-se como um filme infantil, porém, escondendo por trás da máscara investidas que, quando ruminadas, oferecem uma compreensão eximiamente bem desenvolvida que, agora, ganhará uma nova roupagem por uma das gigantes do streaming. É óbvio que esperamos o melhor, mas não podemos deixar de ficar com um pé atrás: de qualquer forma, o clássico de 1996 sempre estará lá para conferirmos – e é sempre uma pedida bem-vinda para um final de semana em família.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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