sexta-feira, março 29, 2024

Artigo | O classicismo instantâneo de ‘Cantando na Chuva’, um dos maiores filmes de todos os tempos

São poucos os filmes que realmente fazem parte da nossa memória, mesmo que de uma forma indireta. E por indireta, digo que alguns nomes, por mais que nunca tenham se manifestado visual e concretamente para nós, se tornam conhecidos pela popularidade e pela atemporalidade com as quais são tratadas, reafirmando inclusive a sua importância para a História das narrativas audiovisuais – e posso dizer, sem sombra de dúvida, que Cantando na Chuva’ faz parte desse seleto panteão cinematográfico, ao lado de outros clássicos que soam nostálgicas para inúmeras gerações. Não é nenhuma surpresa, pois, que o musical dirigido por Stanley Donen e Gene Kelly seja reaproveitado até os dias de hoje através de singelas homenagens e readaptações que têm a clara noção que nunca chegarão aos pés desse pontapé inicial.

É até mesmo engraçado analisar a história por trás desta produção, visto que seu lançamento fez um modesto barulho em meio à crítica e ao público – sendo indicado, por exemplo, a apenas duas estatuetas do Oscar à época – e, com o passar dos anos, sendo visto e revisto pelos especialistas até chegar ao inenarrável patamar que ocupa entre os melhores longas-metragens de todos os tempos. E é mais incrível ainda prestarmos atenção a esse pano de fundo se levarmos em consideração que uma das bases narrativas do filme é justamente essas constantes contradições de Hollywood.

A trama gira em torno do famoso ator do cinema mudo Don Lockwood (Kelly), cuja ascensão ao sucesso tornou-se uma aspiração para todos, conquistando, através de seu inegável carisma, uma legião de fãs ao redor do mundo. A primeira sequência do filme já trabalha com grande maestria uma montagem que havia sido explorada primeiramente com obras-primas antecessoras, como Cidadão Kane’, optando por uma investida anacrônica e não-linear para construir um cenário conciso para o espectador sem obrigá-lo a deduzir fatos e acontecimentos do nada – e é claro que nada disso seria possível sem o tato artístico do duo de cineastas. Através de um timing cômico muito bem trabalhado e que seria reutilizado e repaginado, o protagonista lembra-se de seu “glorioso passado”, sempre relembrando-se do mote que carregava: “dignidade. Sempre com dignidade”.

Esta não seria uma obra de Kelly se as ironias não existissem. Resgatando alguns elementos de Sinfonia de Paris’ e Um Dia em Nova York’, bem como outras produções nas quais estrelou e atuou como produtor, as quebras de expectativa dialogam diretamente com as viradas inesperadas no roteiro – e são tão bem colocadas que a inexistência dramática não é percebida. Afinal, se prestarmos bem atenção, os acontecimentos tem a sua carga trágica em comparação com o escopo maior, mas são levadas sem a seriedade compulsória que o transformaria em uma história maçante. E logo no início do primeiro ato, o arco de superação de Lockwood logo é contrastado com uma sequência dos mais bizarros trabalhos – desde artistas itinerantes até dublês de filme de ação – e não podemos deixar de gargalhar ao vermos o personagem cair de um penhasco enquanto diz com certa imponência que “havia sido escolhido para os melhores projetos possíveis”.

As coisas mudam drasticamente quando o ator amador chama a atenção de um dos maiores produtores da época, R.F. Simpson (Millard Mitchell), o qual o contrata como protagonista de seus épicos mudos, sucessos de bilheteria e de público através dos Estados Unidos e do mundo, cujas falhas definitivamente eram ofuscadas pela presença de uma trilha sonora fabulesca e pelas caixas de texto que quebravam a linearidade dos filmes – e essa atenção aos detalhes permite que a conturbada relação entre Lockwood e a queridinha da América, Lina Lamont (interpretada pela incrível Jean Hagen), cujo gênio é mantido às escuras até o momento em que abre a boca  e revela uma voz estridente e insuportável – razão pela qual o time criativo a impede de fazer qualquer discurso em público e “quebrar a magia” que a audiência mantém acerca dela.

‘Cantando na Chuva’ não é apenas uma irresistível comédia sobre alguns dos personagens mais icônicos já criados, mas também uma aula de História – afinal, todas as relações mais intimistas que se desenrolam e se completam durante o filme são respaldadas por um pano de fundo verídico e que causou muita discordância na época: a transição do Cinema mudo para o Cinema falado. Tal acontecimento deu-se em meados da década de 1920 e representou uma mudança brusca no cenário mercadológico do entretenimento. Como reafirmado por Simpson e Lockwood na introdução do segundo ato, ninguém botava fé que a sincronização de imagem e som vingaria – aliás, ninguém cria que realmente era possível aquilo. E não foi até o sucesso de O Cantor de Jazz’ (que é citado majestosamente durante uma das cenas) que todos perceberam que deveriam se juntar ao fluxo da modernidade.

Mais uma vez, tudo isso é explicado de forma didática e cômica pelo roteiro assinado por Betty Comden e Adolph Green – rendendo talvez um dos momentos mais plenos e icônicos de todos os tempos. Lamont e Lockwood logo passam a estrelar, ou ao menos tentar, projetos muito mais elaborados quando em comparação aos anteriores, e é claro que o resultado não poderia ser diferente. A estreia dessa nova onda de filmes seria até trágica, se não fosse hilária: pense em tudo que pode dar errado com a primeira transmissão de uma peça audiovisual, toda a tensão e a angústia que são carregadas por cada um dos componentes que uniu forças para colocar o projeto em prática, e junte esses fatores em um único lugar – é justamente isso o que acontece aqui.

A trama transita entre a veracidade e o impossível de forma tão homogênea que parece estarmos diante de uma interpretação documentária orquestrada com exímia cautela. Desde as complicadas gravações, que trouxeram à tona o enfrentamento dos diretores e técnicos sonoros e artísticos para manter os gigantescos microfones escondidos nos sets de filmagem, até os problemas de sincronização entre áudio e imagem, passando pelo pífio e superficial roteiro que agora ganhava voz, o catastrófico resultado representa a destruição da reputação do casal mais badalado de Hollywood e da credibilidade de uma das maiores produtoras do mercado – que agora devem correr para recuperar todo o prejuízo que tiveram. E, aliado à mente criativa de Lockwood, abre margens para duas coisas que definitivamente amamos: Debbie Reynolds e musicais!

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Reynolds emerge na história como a aspirante à dançarina e atriz profissional Kathy Selden, a qual é cética em relação aos trabalhos no cinema e que tem um encontro não muito agradável com Don durante o segundo ato. Os dois acabam por se reencontrar e traçar uma leve insinuação romântica que ganha força com o alegre número que empresta o nome ao título do filme e alcança o ápice com You Were Meant for Me”, uma ode ao amor e à mágica ilusão do cinema. E, enquanto ela representa o par romântico e a rebelde otimista de toda a trama, Donald O’Connor se entrega a uma performance igualmente memorável no papel do escape cômico Cosmo Brown, melhor amigo de Lockwood, que fica responsável por outro número memorável, intitulado Make’em Laugh”.

A perfeição pode não ter um significado palpável, mas Cantando na Chuva’ chega bem perto disso – não apenas por ter uma história cômica e envolvente, mas também por toda a sua desenvoltura estar presente em cada um dos elementos do filme, felizmente afastando-se da saturação excessiva para mesclar inúmeros gêneros narrativos em uma obra-prima clássica e memorável.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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