domingo , 22 dezembro , 2024

Artigo | ‘Pleasantville: A Vida em Preto e Branco’: um filme que todos deveriam conhecer

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‘Pleasantville: A Vida em Preto e Branco’ é um filme fora do comum, a começar pela premissa de estilo sci-fi que logo se transforma em uma trama tragicômica deliciosa de ser acompanhada desde o início do primeiro ato: dois irmãos adolescentes e com relações interpessoais bem conturbadas são arrastados para dentro de um programa dos anos 1950 que empresta seu nome ao título. A partir daí, inúmeros acontecimentos hilários permeiam a vida dos dois, estendendo-se para os engessados personagens do show, os quais passam a experimentar coisas que nunca acharam ser possíveis, visto que viviam em uma utopia inquebrantável marcada pela excessiva perfeição.

Sem dúvida alguma, Gary Ross pode ser compreendido como uma das mentes mais criativas – e tal afirmação é respaldada pela sinopse apresentada no parágrafo acima. Talvez essa investida do final do século passado tenha lhe dado base para produzir e dirigir franquias futuras, como Jogos Vorazes’ e até mesmo o spin-off Oito Mulheres e um Segredo’. Entretanto, é quase óbvio compreender que o cineasta não tinha ideia de que seus esforços para trazer a pacata comunidade de Pleasantville à vida renderiam muito mais que uma simples comédia romântica adolescente: aqui, nos deparamos com brechas e lacunas preenchidas com ácidas críticas sociais revestidas de uma branda sutileza que é a principal marca do filme – afinal, levando em conta os estereótipos da década em questão, nada fugia muito do convencional.



A trama é protagonizada por David (Tobey Maguire) e Jennifer (Reese Witherspoon), unidos por laços fraternais complicados e muito diferentes um do outro: enquanto esta mergulha em uma crescente fase rebelde, aquele mantém-se em uma zona de conforto que o transforma no típico nerd, passível de sofrer apenas por sua inteligência acima do normal e seu apreço por obras audiovisuais clássicas. Os dois não parecem se importar um com o outro e, após receberem a misteriosa visita de um técnico de televisões, são arrastados para o ilusório e perfeito mundo seriado de Pleasantville – e a própria chegada já começa a trazer certas rupturas às regras e às normas onipotentemente presentes em tal microcosmos. Jennifer logo encarna a persona de Mary Sue, enquanto David se torna Bud, ambos filhos do propositalmente forçado duo formado por Betty (Joan Allen) e George Parker (William H. Macy).

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Assim como inúmeros filmes predecessores e sucessores a este, é quase automático pensar que os irmãos deverão dar um jeito de se entenderem e voltarem à sua realidade – mas o que eles não imaginavam é que eles deveriam seguir os passos dos “verdadeiros” Bud e Mary Sue e não desestruturar o equilíbrio cosmológico daquela comunidade. Em outras palavras, Ross, que também fica responsável pelo incrível e dinâmico roteiro, se baseia muito na ideia do controverso efeito borboleta para endossar as consequências dos atos dos protagonistas: apesar de tentarem ficar restritos ao que lhes é imposto, eles pensam erroneamente que “brincar” com alguns aspectos pode ser divertido e inocente.

Logo, o mundo em preto e branco começa a se pincelar com cores vivas; os ares de uma brusca e interessante mudança transformam a perfeita e monótona atmosfera em algo parecido com angústia, medo e tesão pelo novo. Os personagens, antes doutrinados a seguirem regras extremamente puritanas, logo se tornam despojados, livres, inclinando-se para a máxima do carpe diem ao invés de permanecerem em suas bolhas sociais. A sagacidade de Ross em sair da zona de conforto também abre margens para, como supracitado, críticas e alfinetadas em um conservadorismo próprio da época e que se mantém até os dias de hoje – o que fornece certo respaldo anacrônico para sua obra.

Com o término do segundo ato e a entrada do terceiro, essa provocativa mudança começa a dar lugar a um antro conservador e reacionário que expande suas subtramas para a política da segregação racial da sociedade estadunidense nesta mesma época. A câmara da cidade começa a ser frequentada apenas pelos habitantes ainda não-coloridos e que se recusam a abrir sua mente para novas experiências e pessoas diferentes; ou seja, aqueles que ousaram trilha um caminho diferente foram condecorados com uma vida mais colorida literalmente e não veem nenhum motivo para retornarem ao que eram. E o que também parecia correr às mil maravilhas gradativamente cria raízes em dramas existencialistas que são tratados com seriedade pelo diretor e pela rendição aplaudível de seus atores principais – em especial a presença agradabilíssima de Allen dois anos depois de mostrar sua versatilidade em As Bruxas de Salem’.

‘Pleasantville’ também não se mostra vazio quando pensamos em referências fílmicas; quando as tensões entre os dois grupos se agrava, Ross claramente mergulha em diversas obras distópicas para explorar as questões raciais (ainda que estas sejam distorcidas do real problemas que a nossa sociedade enfrenta). Fahrenheit 451′ é um dos longas-metragens que serve como inspiração para algumas das sequências mais cruéis e dolorosas, em que as dezenas de livros da Biblioteca Municipal são queimados em praça pública por não condizerem com a paz e a ordem que os mais velhos tentam manter. A repressão à arte e à expressão também se faz bastante presente – e é assustador ver o números de pessoas que corrobora com a ideologia de que a libertação artística na verdade é uma “forma de trazer mazelas à moralidade e aos bons costumes”.

Ainda que tudo siga um ar mais metafórico, o novo projeto de Gary Ross não falha em quase nenhum quesito. Apesar da desnecessária longevidade cênica que por vezes se torna cansativa, toda a trama é bem amarrada e fornece resoluções não convencionais para seus personagens, fazendo bom uso tanto dos arcos de redenção quanto dos paradigmas narrativos que quebra a cada virada.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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‘Pleasantville: A Vida em Preto e Branco’ é um filme fora do comum, a começar pela premissa de estilo sci-fi que logo se transforma em uma trama tragicômica deliciosa de ser acompanhada desde o início do primeiro ato: dois irmãos adolescentes e com relações interpessoais bem conturbadas são arrastados para dentro de um programa dos anos 1950 que empresta seu nome ao título. A partir daí, inúmeros acontecimentos hilários permeiam a vida dos dois, estendendo-se para os engessados personagens do show, os quais passam a experimentar coisas que nunca acharam ser possíveis, visto que viviam em uma utopia inquebrantável marcada pela excessiva perfeição.

Sem dúvida alguma, Gary Ross pode ser compreendido como uma das mentes mais criativas – e tal afirmação é respaldada pela sinopse apresentada no parágrafo acima. Talvez essa investida do final do século passado tenha lhe dado base para produzir e dirigir franquias futuras, como Jogos Vorazes’ e até mesmo o spin-off Oito Mulheres e um Segredo’. Entretanto, é quase óbvio compreender que o cineasta não tinha ideia de que seus esforços para trazer a pacata comunidade de Pleasantville à vida renderiam muito mais que uma simples comédia romântica adolescente: aqui, nos deparamos com brechas e lacunas preenchidas com ácidas críticas sociais revestidas de uma branda sutileza que é a principal marca do filme – afinal, levando em conta os estereótipos da década em questão, nada fugia muito do convencional.

A trama é protagonizada por David (Tobey Maguire) e Jennifer (Reese Witherspoon), unidos por laços fraternais complicados e muito diferentes um do outro: enquanto esta mergulha em uma crescente fase rebelde, aquele mantém-se em uma zona de conforto que o transforma no típico nerd, passível de sofrer apenas por sua inteligência acima do normal e seu apreço por obras audiovisuais clássicas. Os dois não parecem se importar um com o outro e, após receberem a misteriosa visita de um técnico de televisões, são arrastados para o ilusório e perfeito mundo seriado de Pleasantville – e a própria chegada já começa a trazer certas rupturas às regras e às normas onipotentemente presentes em tal microcosmos. Jennifer logo encarna a persona de Mary Sue, enquanto David se torna Bud, ambos filhos do propositalmente forçado duo formado por Betty (Joan Allen) e George Parker (William H. Macy).

Assim como inúmeros filmes predecessores e sucessores a este, é quase automático pensar que os irmãos deverão dar um jeito de se entenderem e voltarem à sua realidade – mas o que eles não imaginavam é que eles deveriam seguir os passos dos “verdadeiros” Bud e Mary Sue e não desestruturar o equilíbrio cosmológico daquela comunidade. Em outras palavras, Ross, que também fica responsável pelo incrível e dinâmico roteiro, se baseia muito na ideia do controverso efeito borboleta para endossar as consequências dos atos dos protagonistas: apesar de tentarem ficar restritos ao que lhes é imposto, eles pensam erroneamente que “brincar” com alguns aspectos pode ser divertido e inocente.

Logo, o mundo em preto e branco começa a se pincelar com cores vivas; os ares de uma brusca e interessante mudança transformam a perfeita e monótona atmosfera em algo parecido com angústia, medo e tesão pelo novo. Os personagens, antes doutrinados a seguirem regras extremamente puritanas, logo se tornam despojados, livres, inclinando-se para a máxima do carpe diem ao invés de permanecerem em suas bolhas sociais. A sagacidade de Ross em sair da zona de conforto também abre margens para, como supracitado, críticas e alfinetadas em um conservadorismo próprio da época e que se mantém até os dias de hoje – o que fornece certo respaldo anacrônico para sua obra.

Com o término do segundo ato e a entrada do terceiro, essa provocativa mudança começa a dar lugar a um antro conservador e reacionário que expande suas subtramas para a política da segregação racial da sociedade estadunidense nesta mesma época. A câmara da cidade começa a ser frequentada apenas pelos habitantes ainda não-coloridos e que se recusam a abrir sua mente para novas experiências e pessoas diferentes; ou seja, aqueles que ousaram trilha um caminho diferente foram condecorados com uma vida mais colorida literalmente e não veem nenhum motivo para retornarem ao que eram. E o que também parecia correr às mil maravilhas gradativamente cria raízes em dramas existencialistas que são tratados com seriedade pelo diretor e pela rendição aplaudível de seus atores principais – em especial a presença agradabilíssima de Allen dois anos depois de mostrar sua versatilidade em As Bruxas de Salem’.

‘Pleasantville’ também não se mostra vazio quando pensamos em referências fílmicas; quando as tensões entre os dois grupos se agrava, Ross claramente mergulha em diversas obras distópicas para explorar as questões raciais (ainda que estas sejam distorcidas do real problemas que a nossa sociedade enfrenta). Fahrenheit 451′ é um dos longas-metragens que serve como inspiração para algumas das sequências mais cruéis e dolorosas, em que as dezenas de livros da Biblioteca Municipal são queimados em praça pública por não condizerem com a paz e a ordem que os mais velhos tentam manter. A repressão à arte e à expressão também se faz bastante presente – e é assustador ver o números de pessoas que corrobora com a ideologia de que a libertação artística na verdade é uma “forma de trazer mazelas à moralidade e aos bons costumes”.

Ainda que tudo siga um ar mais metafórico, o novo projeto de Gary Ross não falha em quase nenhum quesito. Apesar da desnecessária longevidade cênica que por vezes se torna cansativa, toda a trama é bem amarrada e fornece resoluções não convencionais para seus personagens, fazendo bom uso tanto dos arcos de redenção quanto dos paradigmas narrativos que quebra a cada virada.

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