O Final da década de 90 possuiu um clima muito próprio que influenciou o cinema, especialmente por dois filmes
É interessante constatar como cada década do século XX possuiu um clima bastante próprio, moldado principalmente por acontecimentos de naturezas diversas em sua época. Consequentemente o cinema (normalmente representado por Hollywood, mas não descartando os movimentos na França, Alemanha, Rússia etc) absorveu muito desses momentos pontuais ou duradouros, e isso é perceptível pelos filmes lançados em cada período, constantemente mudando seus tons narrativos e visuais para se adequar às novas tendências (os movimentos cinematográficos são justamente isso).
E os anos 90 não foram exceção. Essa década foi bastante diversa em alguns aspectos; no início o mundo assistiu ao fim formal da União Soviética e do modelo internacional bipolar vigente. Durante sua metade ocorreu a formalização da internet e um maior acesso a computadores domésticos. E em seu final, o medo da virada do milênio. Esse episódio em específico foi uma onda genuína de, senão medo, ansiedade e curiosidade sobre o que poderia ocorrer.
Publicado em 1999, o artigo The Turn of the Millennium, assinado pela dupla Robert Cohen e Diana Turk, pontua o medo presente relacionado a uma pane tecnológica geral. “Imerso em um boom econômico guiado pela internet, os americanos temiam o que lhes poderia ocorrer nos primeiros quinze minutos do novo milênio se o problema Y2K (bug do milênio) afetasse seus computadores…”.
Muito dela motivado pela desconfiança sobre a rede global de internet e como ela estava remodelando rapidamente o sistema de relações entre países. O que poderia acontecer na virada do milênio? Alguma pane geral poderia desestabilizá-las? Sem dúvidas o grande filme do período a se debruçar sobre uma possível ameaça tecnológica ligada a esse momento foi Matrix.
Prestes a ingressar no catálogo da Netflix referente a novembro, a obra máxima das irmãs Wachowski se destacou por abordar o questionamento sobre até onde a realidade do final do século é, de fato, real. Junto a isso o filme dá continuidade ao medo que rondava a tecnologia, evocando um tema que já havia sido trabalhado no passado (Exterminador do Futuro e 2001 – Uma Odisseia no Espaço por exemplo).
No artigo The Matrix at 20 – How this hightech classic hacked Holywood de Al Horner para a revista Little White Lies é dito que a abordagem do filme furou as barreiras da ficção e chegou ao mundo real. “A linguagem de Matrix tem feito parte de nossas discussões políticas também. Entre ativistas de direitos humanos e extremistas de direita, o termo ‘pílula azul’… é usado como abreviação para pessoas que negam a existência de uma conspiração gigantesca mundo a fora”.
O fenômeno reflexivo do final de década, porém, não se limitou à ficção científica. Em 1999 o diretor David Fincher lançou Clube da Luta, uma obra que se tornaria bastante diferenciada por tecer comentários muito críticos sobre o consumismo na sociedade e como as pessoas pautam muito de suas vidas de forma direcionada a sanar essa “fome”. Para tanto ele utiliza como ferramenta narrativa a dupla principal de personagens trabalhados por Edward Norton e Brad Pitt de modo que tamanha é a diferença deles em tantos campos que fique bastante evidente o choque entre essas duas realidades.
Tanto o filme de Fincher quanto sua inspiração, o livro de Chuck Palahniuk, são atribuídos como frutos do pensamento da corrente Situacionista. Essa ideologia surgiu por meio do grupo Internacional Situacionista e tinha como membro mais proeminente o escritor marxista Guy Debord. Para eles a sociedade de consumo havia criado uma sociedade do espetáculo e que por sua vez anestesiou todo o grupo social por completo. Sendo assim a sociedade se tornou tão imersa em consumo e propaganda que acabou se mantendo apática de seus problemas e incapaz de resolvê-los.
Essa linha de pensamento acaba se conectando com o início do filme, no qual a montagem de cenas em velocidade acelerada mostra o protagonista completamente anestesiado por toda a propaganda diária que recebe e a necessidade de sempre comprar mais e se manter assim em um emprego que não lhe agrada; isso também se evidencia pela narração do mesmo.
Tanto Matrix como Clube da Luta souberam captar o espírito do tempo em que viveram. O final da década de 90 foi, na mais simples das palavras, “mudança”; de forma ininterrupta e intensa. Bastante de acordo com o século a que pertenceu. Seja pelo medo das possibilidades da tecnologia ou da insatisfação com o modelo econômico\social vigente, o final dos anos 90 foi para se sentir e os filmes contemporâneos, em sua maioria, entenderam isso.