Quando comecei a escrever este artigo, a frase inicial era clara e celebratória: “Karla Sofia Gascón torna-se a primeira mulher transgênero indicada ao Oscar, um marco histórico para a representatividade na premiação.” Essa afirmação continua verdadeira, mas, desde o anúncio dos indicados, a trajetória da atriz espanhola protagonista de Emilia Pérez desmoronou rapidamente. Seus discursos emocionantes em Cannes e no Globo de Ouro foram esquecidos, e a narrativa em torno de sua indicação tomou um rumo inesperado.
O Início: Cannes e a Consagração
Minha conexão com essa história teve início em maio de 2024, no Festival de Cannes, quando assisti a Emilia Pérez pela primeira vez. A experiência foi impactante. O filme, um musical com traços de novela, impressionava tanto pela ousadia quanto pela originalidade. Saí da sessão com entusiasmo e gravei um vídeo com minhas primeiras impressões (veja aqui).
Poucos dias depois, em 26 de maio, publiquei no Instagram do CinePOP o discurso de Karla Sofia Gascón ao receber a Palma de Melhor Interpretação Feminina ao lado de suas colegas de elenco – Zoë Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz. A recepção foi calorosa, com centenas de curtidas e comentários celebrando a representatividade. Além desse prêmio, o filme conquistou também o Prêmio do Júri, presidido por Greta Gerwig.
A Netflix, atenta ao impacto da obra, adquiriu Emilia Pérez e iniciou uma campanha massiva para o Oscar, promovendo sessões em diversos festivais ao redor do mundo. Karla Sofia Gascón tornou-se a principal porta-voz do filme e participou de eventos importantes e capas de revistas, como The Hollywood Reporter e Vogue.
Realizada em dezembro de 2024, minha entrevista com Gascón, antes um registro valioso, agora se insere em um cenário turbulento. Mas por que publicá-la agora, em 6 de fevereiro? É normal esperar o lançamento do filme para essas publicações, já que as estreias variam de país a país, porém ninguém poderia prever tamanha mudança em pouco tempo.
O Início da Controvérsia
A ascensão meteórica do filme, no entanto, começou a gerar reações negativas. Desde sua exibição na abertura do Festival do Rio, em outubro de 2024, Emilia Pérez foi criticado por sua abordagem da cultura mexicana. Filmado majoritariamente na França, com uma equipe técnica predominantemente estrangeira, o longa foi acusado de falta de autenticidade. Pequenos detalhes, como o uso de palavras incomuns para o espanhol falado no México (cárcel em vez de penitenciaria), intensificaram as críticas.
Quando o filme recebeu 10 indicações e conquistou 4 prêmios no Globo de Ouro, o backlash aumentou ainda mais. O diretor francês Jacques Audiard também foi alvo de questionamentos, principalmente por dirigir um filme falado em espanhol sem ter nenhum conhecimento do idioma ou da cultura mexicana. O descontentamento aumentou quando Luca Guadagnino, diretor de Rivais e concorrente ao Globo de Ouro, supostamente deixou a cerimônia após a vitória de Emília Pérez, em um gesto interpretado como um protesto.
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A Aliança Gay e Lésbica Contra a Difamação (GLAAD) chamou o filme de um “retrato profundamente retrógrado de uma mulher trans“. A comunidade latina, especialmente os mexicanos, também expressou seu descontentamento com o retrato estereotipado do México e seu povo no filme e por romantizar o cartel de drogas e desrespeitar suas vítimas.
O Estopim da Crise
O momento mais crítico veio no final de janeiro de 2025, quando Karla Sofia Gascón e o diretor Jacques Audiard visitaram o Brasil para promover o filme. Durante as entrevistas, ambos tentaram minimizar a rivalidade entre Emília Pérez e Ainda Estou Aqui, produção brasileira que também concorre ao Oscar de Melhor Filme Internacional. A disputa ganhou contornos intensos, sendo comparada a uma final de Copa do Mundo entre Brasil e França. Até Ronaldinho Gaúcho entrou na campanha promocional da Paris Filmes, distribuidora brasileira.
O verdadeiro escândalo veio quando a Folha de S.Paulo publicou uma entrevista em que Karla Sofia Gascón acusava a equipe de Fernanda Torres de difamá-la. A acusação, no entanto, revelou-se infundada. Fernanda Torres, entretanto, publicou um vídeo no Instagram enaltecendo Gascón e pedindo que a disputa não fosse tratada como um campeonato esportivo.
Se a situação já era delicada, piorou ainda mais quando postagens antigas de Karla Sofia Gascón no X (antigo Twitter) foram expostas, contendo comentários considerados racistas e xenofóbicos. O impacto foi imediato: a atriz desativou sua conta, chorou em entrevista à CNN e recebeu duras críticas de colegas de elenco e do próprio diretor do filme. Como consequência, a Netflix afastou Gascón da campanha promocional e a Academia de Cinema Espanhola cancelou seu convite para a cerimônia do Goya.
Minha Entrevista com Karla Sofia Gascón
Gravei minha entrevista com Karla Sofia Gascón em dezembro de 2024, antes de todas essas polêmicas tomarem conta da narrativa. Apesar do pouco tempo disponível, fiquei satisfeita com o resultado, especialmente por sua resposta à minha segunda pergunta.
Durante a conversa, Gascón destacou a conexão pessoal que sentiu com a personagem Emilia Pérez, uma mulher transgênero que passa por uma transformação profunda. “Adoro construir personagens, de verdade. Acho que sou boa nisso, e é muito bonito. Sempre vivi em momentos onde tive que provar quem sou e mostrar aos diretores que eu podia me transformar no que eles precisavam“, disse a atriz.
Ela também falou sobre sua autobiografia, Uma História Extraordinária (2018), que narra sua transição de gênero. Quando perguntei sobre a possibilidade de um filme biográfico, Gascón respondeu com humor: “Minha vida foi um pouco como Forrest Gump, correndo de um lado para o outro, com coisas muito estranhas e bonitas acontecendo. Mas eu ficaria irritada se alguém me interpretasse enquanto eu ainda estivesse viva”.
https://youtu.be/_oDO5vMNynQ?si=t0jAyG55KuDYhZwD
Após todas essas controvérsias, a questão que permanece é: o que o futuro reserva para Karla Sofia Gascón?
Há Caminho para a Redenção?
A trajetória de Karla Sofia Gascón tomou um rumo que poucos poderiam prever. O desgaste na imagem de Gascón agravou a recepção já dividida de Emilia Pérez, que enfrentava críticas desde sua estreia na América Latina.
O futuro de Gascón permanece incerto. O caso lembra outras situações de “cancelamento” em Hollywood, como Johnny Depp, que ainda dá passos para conseguir se reerguer após anos de controvérsias, e Gina Carano, que perdeu seu papel em O Mandaloriano por comentários polêmicos no X (saiba mais aqui).
Gascón ainda pode se recuperar? Talvez, mas para isso será necessário reconhecer seus erros e reconstruir sua imagem com autenticidade. Sua importância como um símbolo para mulheres trans no cinema não deve ser apagada, mas sua responsabilidade como figura pública exige mais cuidado.
Neste cenário de debates intensos sobre representatividade e respeito cultural, sua história pode servir como um aprendizado para a indústria. O que resta saber é se Karla Sofia Gascón conseguirá dar a volta por cima – ou se este será o ponto final de sua ascensão meteórica.