A partir da década de 1960, o isabelense Mauricio de Sousa criava os maiores ícones da cultura pop brasileira, intitulados como ‘Turma da Mônica’. Os infantes personagens do Bairro do Limoeiro, desde então, passaram por diversas transformações e atravessaram inúmeras gerações – mantendo-se vivos na memória de praticamente todos até os dias de hoje. Não é surpresa, pois, com a massiva popularidade que a série de quadrinhos recebeu, que ‘Turma da Mônica: Laços’, o primeiro live-action do grupo de irreverentes e divertidos jovens nos cinemas, tenha se tornado um dos filmes mais aguardados desde seu anúncio e confirmação em 2017. E o resultado não poderia ser outro além de incrível e emocionante.
A história, baseada na aclamada graphic novel homônima dos irmãos Vitor e Lu Cafaggi, mergulha fundo nas relações de amizade entre os quatro protagonistas já bastante conhecidos pelos fãs sem abrir mão da inocência que Sousa sempre colocou em suas infinitas narrativas. Aqui, Floquinho, o cachorro de Cebolinha (Kevin Vechiatto), é sequestrado por um homem misterioso e, como já é de se esperar, não leva muito tempo para que a turminha se una e parta numa jornada para trazê-lo de volta para casa. Entretanto, não se enganem: a sensação simplista da premissa em questão é apenas passageira, cultivando um terreno amplo para que outros temas também sejam colocados em primeiro plano.
O longa-metragem poderia muito bem ceder aos convencionalismos do gênero infantil e aventuresco, mas passa muito longe disso pela habilidade única do storytelling que o diretor Daniel Rezende abraça com vontade. Rezende, conhecido pelos ovacionados ‘Cidade de Deus’ e ‘Bingo – O Rei das Manhãs’, retorna em belíssima forma com composições cênicas que vão além de superposições baratas e mal formuladas: cada uma das sequências é visível e milimetricamente construída de modo a não cativar apenas as crianças, e sim a atingir um público mais velho. O que está em xeque é o sucesso ou não em se manter fiel ao material original e resgatar uma sinestesia nostálgica – coisa que, sem dúvida alguma, o cineasta faz com gosto e motivação.
É interessante analisar que o longa carrega consigo uma essência noventista deliciosamente bem aproveitada: afinal, é automático nos recordarmos das peripécias de ‘Os Goonies’ ou ‘Conta Comigo’; não é surpresa, pois, que os nossos heróis sejam transpostos para um envolvente coming-of-age, lidando com seus fantasmas ou obstáculos interiores em prol da coletividade. De fato, algumas mensagens caem em fórmulas redundantes – como, por exemplo, quando Magali (Laura Rauseo) passa por uma prova de fogo envolvendo sua fome incontrolável, ou quando Cascão (Gabriel Moreira) se vê frente a frente com sua arqui-inimiga (a água). Porém, Cebolinha e Mônica (Giulia Benite) protagonizam as subtramas menos elucidativas e mais alegóricas, acrescentando uma sempre bem-vinda complexidade à obra.
Aliás, faz-se digno de nota a química que o elenco-mirim nutre entre si. Os quatro permanecem lado a lado com suas representações originais e, ao mesmo tempo, imprimem as próprias leituras dos personagens. É claro, inclusive, perceber como cada um encontra seu eu mais bem resolvido e mais amadurecido após passarem por tantas coisas juntas. Benite, por exemplo, encontra uma vertente menos maniqueísta para interpretar Mônica e acata uma personalidade mais branda e sensível que está cansada de brigar pelas mesmas coisas com Cebolinha. Vechiatto, por sua vez, traz certos tiques nervosos que ganham voz nos momentos de maior tensão – o crispar da boca ou o olhar hesitante.
Rezende demonstra que é um fã assim como nós ao inserir diversas referências ao próprio universo criado por Mauricio. Em outras palavras, o diretor não foca apenas no quarteto, como também aproveita os melhores momentos para discriminar rostos como Titi, Aninha, Xaveco, Maria Cebolinha, Seu Juca, Jeremias e tantos outros. Até mesmo o pai de todos esses personagens faz um pequeno cameo – não é surpresa que tenha sido equiparado a Stan Lee e suas hilárias aparições. De qualquer forma, o lado humanizado das mentes por trás dessa produção é também um elemento necessário para garantir que cada um dos espectadores se conecte de alguma forma com o que está sendo transmitido nas telonas.
O longa é obviamente uma adaptação em live-action, mas não perde chance de colocar algumas pinceladas cartunescas, seja dos quadrinhos infantis, seja da graphic supracitada. Aqui, há espaço o suficiente para que a paleta de cores se afaste dos comuns tons pastéis e aproveite as fortes tonalidades que marcam as personas e para que a fotografia reflita a interioridade e a atmosfera de cada um dos acontecimentos – sejam reviravoltas, momentos de tensão ou as resoluções à la contos de fada. Porém, é inegável dizer que o jogo de luz por vezes se restrinja a uma zona de conforto desnecessariamente autoexplicativa (as epifanias traduzidas pela marcante presença do sol, por exemplo).
Monica Iozzi, Paulo Vilhena e Fafá Rennó também marcam presença como os pais dos nossos amados protagonistas, mas é Rodrigo Santoro quem rouba completamente a cena ao encarnar Licurgo Orival Umbelino Casfiaspirino de Oliveira, mais conhecido como o Louco. Presente em diversas histórias protagonizadas por Cebolinha, aqui o jovem garoto cruza caminho com a ensandecida figura e percebe nele o primeiro passo para deixar de lado sua egolatria descomunal e perceber que precisa trabalhar em conjunto para salvar Floquinho e, eventualmente, desmascarar a podridão que se esconde por entre as árvores da floresta. A cena talvez seja o momento de maior carga dramática, fragmentada pelo diálogo surreal do Louco.
‘Laços’ pode até ser um filme voltado para as crianças, mas sem dúvida entrega muito mais do que o prometido. Em meio a uma contemporânea nostalgia, Daniel Rezende cativa mais uma vez seu público e entrega uma pequena pérola cinematográfica, homenageando um dos maiores ícones da cultura pop brasileira de forma emocionante e aprazível.