sábado , 21 dezembro , 2024

Crítica | Anatomia de Uma Queda é um ÓTIMO filme imersivo com um enigma latente

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O que é mais interessante uma escritora que matou o marido ou um professor suicida? Esta é a questão chave do ponto de imersão das duas horas e meia do ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2023: Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une Chute), de Justine Triet. Se a pergunta parece simples à primeira vista, quando colocamos a questão na pauta jornalística, ela se transforma em uma problemática do sensacionalismo midiático e da novelização da vida. 

Com uma premissa de mistério a ser solucionado, a cineasta francesa nos pega pela mão e nos conduz por um turbilhão de emoções e intrigas. A cena inicial nos coloca em perplexo desconforto social. Enquanto bebe uma taça de vinho, a escritora Sandra Voyter (Sandra Hüller) parece debochada e desrespeitosa perante a pesquisadora acadêmica Zoé (Camille Rutherford). Ao invés de responder suas perguntas, ela indaga a jovem sobre seus gostos e confessa sua solidão naquela casa entre as montanhas de neve ao lado do marido e filho na França.



Milo Machado Graner

A conversa, no entanto, é interrompida pelo alto volume da música vindo do andar de cima em contínua repetição. Local onde encontra-se Samuel (Samuel Theis), o marido da escritora, ocupado em uma reforma no último andar da residência. Assim, Sandra despede-se da visita e pede para retomar a entrevista em outro momento. Ela sobe as escadas e a câmera de Justine passa a seguir o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), de 11 anos, acompanhado do seu cão guia Snoopy em um passeio pela neve. 

Entre estes dois momentos, uma fatalidade acontece. De volta à casa, Daniel encontra o corpo do pai sobre a neve e grita pela mãe. A quantidade de vermelho na cena não deixa dúvidas. A vida do corpo caído na brancura do terreno esvaiu-se em pequenos rios de sangue. A partir desse ocorrido, a narrativa começa a tal anatomia do título. 

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Dependendo do ponto de vista, a queda pode ter sido um acidente, um assassinato ou até mesmo suicídio. Para averiguar as hipóteses, Anatomia de uma Queda se entrelaça na investigação policial que mistura-se ao luto familiar e coloca uma luneta nas feridas da vida privada de um casal.  

Graças às belíssimas atuações de Sandra Hüller e do menino Milo Machado Graner, Anatomia de uma Queda nos abraça com o dùvida e nos dá sutis lances de reflexão sobre a lógica dos acontecimentos. Sem testemunhas, a morte de Samuel torna-se um mistério a alimentar os tablóides e o imaginário popular em torno de uma renomada escritora. 

Se em Sibyl (2019), Justine Triet já brincava com a dualidade da ficção e a realidade na composição de uma história, por meio de uma psicanalista almejante à escritora e sua paciente atriz, agora ela expõe de peito aberto as contradições da escrita inspirada em fatos reais. Podemos ainda vislumbrar vestígios de outra obra sua na cena de discussão entre o casal, algo extremamente potente em A Batalha de Solferino (2013). 

Após um ano do ocorrido, Sandra vai a julgamento pelo júri popular. Ocasião em que todos os elementos circunscritos e escondidos da narrativa vêm à tona e a desconfiança aumenta. Assim como no filme francês Saint Omer (2022), de Alice Diop, no qual o depoimento diante do tribunal nos coloca de forma imaginativa na ação, é através da palavra narrada que somos postos como juízes em busca de pistas para nos indicar a culpa ou a inocência da protagonista. 

Os roteiristas — e casal — Justine Triet e Arthur Harari, entretanto, são extremamente eficazes e transformam essa odisseia sobre crime e castigo em uma trama sensacionalista e sensacional pela metacrítica dos comportamentos humanos. Tendo somente o filho como testemunha auditiva do acontecimento, Sandra encontra-se ameaçada e sem saída para o seu luto e defesa. 

Depois de sofrer uma acidente cinco anos antes, Daniel perde parcialmente a visão e precisa do seu cachorro para acompanhá-lo pelos lugares. Durante o julgamento, a tensão sobe e todos os personagens são impecáveis em seu tom cansaço e esperança. De um lado o advogado de acusação faz o seu papel de diabo e coloca à mesa suposições, citações de seus livros e a descredibilização da figura pública da escritora julgada. 

Um detalhe extremamente importante para o sucesso do projeto é a naturalidade da atriz Sandra Hüller. Ela comunica-se com dificuldade em francês e depõe em inglês na corte francesa, já que sua língua materna torna-se obsoleta longe de casa. Esta pequena peça da história constrói em torno de si uma verdadeira combustão de intrigas. 

Com a impressão do encontro entre História de um Casamento (2019), de Noah Baumbach, e os crimes de Agatha Christie. Os advogados de ambos os lados colocam toda a vida do casal em evidência sobre a mesa dos juízes. Esmiuçando os detalhes da relação entre o casal, suas brigas, dilemas e frustrações, assim como a relação dos pais com o único filho e por fim o perfil representativo de Sandra e Samuel. 

Desse modo, a sala de julgamento transforma-se em um grande palco para histórias, improvisações e discursos. Cada pessoa registra das circunstâncias suas próprias conjecturas. Nesse meio, como ouvinte do julgamento e testemunha, Daniel começa a duvidar da própria mãe. 

Anatomia de uma Queda não é realmente um filme de suspense ou mistério, até porque o seu final pode ser interpretado de várias maneiras. Por assim dizer, ele é um drama com pinceladas de um enigma latente e das batalhas das relações e frustrações do cotidiano. Assim, a pergunta inicial deste texto retorna ao fim. O que é mais fácil especular, ou melhor, acreditar: crime passional ou apenas tristeza? Batalhas sociais e narrativas normalmente levam a Palma de Ouro de Cannes para casa. 

Anatomia de um Queda teve lançamento mundial em maio no Festival de Cannes 2023 e será apresentado no TIFF 2023, este mês. O filme estreia hoje, 25 de Janeiro, no Brasil.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Com uma premissa de mistério a ser solucionado, a cineasta francesa nos pega pela mão e nos conduz por um turbilhão de emoções e intrigas. A cena inicial nos coloca em perplexo desconforto social. Enquanto bebe uma taça de vinho, a escritora Sandra Voyter (Sandra Hüller) parece debochada e desrespeitosa perante a pesquisadora acadêmica Zoé (Camille Rutherford). Ao invés de responder suas perguntas, ela indaga a jovem sobre seus gostos e confessa sua solidão naquela casa entre as montanhas de neve ao lado do marido e filho na França.

Milo Machado Graner

A conversa, no entanto, é interrompida pelo alto volume da música vindo do andar de cima em contínua repetição. Local onde encontra-se Samuel (Samuel Theis), o marido da escritora, ocupado em uma reforma no último andar da residência. Assim, Sandra despede-se da visita e pede para retomar a entrevista em outro momento. Ela sobe as escadas e a câmera de Justine passa a seguir o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), de 11 anos, acompanhado do seu cão guia Snoopy em um passeio pela neve. 

Entre estes dois momentos, uma fatalidade acontece. De volta à casa, Daniel encontra o corpo do pai sobre a neve e grita pela mãe. A quantidade de vermelho na cena não deixa dúvidas. A vida do corpo caído na brancura do terreno esvaiu-se em pequenos rios de sangue. A partir desse ocorrido, a narrativa começa a tal anatomia do título. 

Dependendo do ponto de vista, a queda pode ter sido um acidente, um assassinato ou até mesmo suicídio. Para averiguar as hipóteses, Anatomia de uma Queda se entrelaça na investigação policial que mistura-se ao luto familiar e coloca uma luneta nas feridas da vida privada de um casal.  

Graças às belíssimas atuações de Sandra Hüller e do menino Milo Machado Graner, Anatomia de uma Queda nos abraça com o dùvida e nos dá sutis lances de reflexão sobre a lógica dos acontecimentos. Sem testemunhas, a morte de Samuel torna-se um mistério a alimentar os tablóides e o imaginário popular em torno de uma renomada escritora. 

Se em Sibyl (2019), Justine Triet já brincava com a dualidade da ficção e a realidade na composição de uma história, por meio de uma psicanalista almejante à escritora e sua paciente atriz, agora ela expõe de peito aberto as contradições da escrita inspirada em fatos reais. Podemos ainda vislumbrar vestígios de outra obra sua na cena de discussão entre o casal, algo extremamente potente em A Batalha de Solferino (2013). 

Após um ano do ocorrido, Sandra vai a julgamento pelo júri popular. Ocasião em que todos os elementos circunscritos e escondidos da narrativa vêm à tona e a desconfiança aumenta. Assim como no filme francês Saint Omer (2022), de Alice Diop, no qual o depoimento diante do tribunal nos coloca de forma imaginativa na ação, é através da palavra narrada que somos postos como juízes em busca de pistas para nos indicar a culpa ou a inocência da protagonista. 

Os roteiristas — e casal — Justine Triet e Arthur Harari, entretanto, são extremamente eficazes e transformam essa odisseia sobre crime e castigo em uma trama sensacionalista e sensacional pela metacrítica dos comportamentos humanos. Tendo somente o filho como testemunha auditiva do acontecimento, Sandra encontra-se ameaçada e sem saída para o seu luto e defesa. 

Depois de sofrer uma acidente cinco anos antes, Daniel perde parcialmente a visão e precisa do seu cachorro para acompanhá-lo pelos lugares. Durante o julgamento, a tensão sobe e todos os personagens são impecáveis em seu tom cansaço e esperança. De um lado o advogado de acusação faz o seu papel de diabo e coloca à mesa suposições, citações de seus livros e a descredibilização da figura pública da escritora julgada. 

Um detalhe extremamente importante para o sucesso do projeto é a naturalidade da atriz Sandra Hüller. Ela comunica-se com dificuldade em francês e depõe em inglês na corte francesa, já que sua língua materna torna-se obsoleta longe de casa. Esta pequena peça da história constrói em torno de si uma verdadeira combustão de intrigas. 

Com a impressão do encontro entre História de um Casamento (2019), de Noah Baumbach, e os crimes de Agatha Christie. Os advogados de ambos os lados colocam toda a vida do casal em evidência sobre a mesa dos juízes. Esmiuçando os detalhes da relação entre o casal, suas brigas, dilemas e frustrações, assim como a relação dos pais com o único filho e por fim o perfil representativo de Sandra e Samuel. 

Desse modo, a sala de julgamento transforma-se em um grande palco para histórias, improvisações e discursos. Cada pessoa registra das circunstâncias suas próprias conjecturas. Nesse meio, como ouvinte do julgamento e testemunha, Daniel começa a duvidar da própria mãe. 

Anatomia de uma Queda não é realmente um filme de suspense ou mistério, até porque o seu final pode ser interpretado de várias maneiras. Por assim dizer, ele é um drama com pinceladas de um enigma latente e das batalhas das relações e frustrações do cotidiano. Assim, a pergunta inicial deste texto retorna ao fim. O que é mais fácil especular, ou melhor, acreditar: crime passional ou apenas tristeza? Batalhas sociais e narrativas normalmente levam a Palma de Ouro de Cannes para casa. 

Anatomia de um Queda teve lançamento mundial em maio no Festival de Cannes 2023 e será apresentado no TIFF 2023, este mês. O filme estreia hoje, 25 de Janeiro, no Brasil.

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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