Crítica livre de spoilers.
A metalinguagem é um recurso criativo que não apenas está presenta na literatura, mas é utilizado ad nauseam no cenário audiovisual. Se pensarmos no escopo da sétima arte, podemos citar produções como ‘Pânico’, que aproveitou-se da popularidade gigantesca dos filmes de terror para construir um dos filmes slasher mais influentes das últimas décadas, ou até mesmo ‘Mank’, que explorou os bastidores do clássico ‘Cidadão Kane’. Agora, esse aspecto foi trazido para o mundo da espionagem e da comédia com o antecipado ‘Argylle – O Superespião’ (a nova investida do conhecido diretor Matthew Vaughn, responsável pelo clássico de aventura ‘Stardust – O Mistério da Estrela’ e pela franquia ‘Kingsman’).
A trama acompanha Elly Conway (Bryce Dallas Howard), uma escritora de sucesso inenarrável que é responsável pela saga de romances Argylle, narrando as empreitadas do espião mais famoso do mundo. E, conforme ela caminha para a finalização do quinto volume da série, ela se vê no meio de um confronto entre superespiões de verdade que envolve sua própria segurança: afinal, ao que tudo indica, suas obras pareceram prever eventos geopolíticos e sociais que “mexeram no vespeiro” do submundo da espionagem, colocando-a no alvo de uma organização secreta e sombria que quer capturá-la e jogando-a para o lado de um agente dissidente que deseja ajudá-la – e que precisa de seus dons para encontrar um main frame que pode expor as falcatruas desses poderosos antagonistas.
Vaughn não é nenhum novato no circuito do entretenimento e, ao longo de sua carreira, entregou alguns dos filmes mais bem-sucedidos da bilheteria mundial – além de caírem na graça dos críticos. Além dos supracitados ‘Kingsman’ e ‘Stardust’, ele ficou encarregado de trazer à vida títulos como ‘X-Men: Primeira Classe’ e ‘Kick-Ass’, mostrando-se apto para navegar entre inúmeros gêneros narrativos com uma dose muito equilibrada de drama, ação, aventura e comédia. Logo, considerando suas habilidades técnicas e criativas, não poderíamos estar mais animados para assistir a ‘Argylle’; o resultado é muito positivo e, apesar dos exageros, posta-se como uma construção bastante divertida e que arranca performances incríveis de um elenco estelar.
Além de Howard, que insurge como a protagonista e reitera sua versatilidade no cinema contemporâneo (ora, já a vimos em obras como ‘Manderlay’, ‘Jurassic World’ e ‘Black Mirror’, por exemplo), Henry Cavill pinta as cenas ao interpretar o espião titular das obras de Elly, além de aparecer em certos momentos de ansiedade enfrentados pela protagonista como um reflexo de suas angústias e de suas necessidades. Sam Rockwell, por sua vez, rouba nossa atenção com um trabalho espetacular ao encarnar Aidan, o agente que cortou laços com sua organização para expô-los de uma vez por todas (e que decide proteger Elly). Catherine O’Hara e Bryan Cranston também emprestam seu carisma às telonas em incursões hilárias e comprometidas à personalidade dos personagens que lhe são escritos – Ruth, mãe de Elly, e Ritter, líder do grupo secreto supracitado.
Na parte técnica, percebemos que Vaughn e seu time partem de premissas similares a outras produções do diretor, desde as brutais conduções de câmera nas cenas de ação, os close-ups e o uso de lentes que variam da grande angular à prime para a captura de movimentos em uma sequência intuitiva, ainda que os cortes sejam movidos para um espectro metadiegéticos, por assim dizer; a paleta de cores é selecionada com maestria, posicionando tons fortes de amarelo para premeditar a jornada de autodescoberta e de amadurecimento de Elly frente aos eventos que se desenrolam – e é notável como nas cenas em flashback, os objetos dessa mesma cor se destacam em uma escolha monocromática, reiterando o objetivo do cineasta.
Entretanto, não posso deixar de mencionar os breves deslizes do longa-metragem, incluindo o roteiro. Assinado por Jason Fuchs, cujo nome está atrelado a ‘Pan’ e a ‘Mulher-Maravilha’, o enredo acerta em diversos momentos, como na virada do primeiro para o segundo ato – mas aposta com tanta firmeza no espetáculo visual que chega a beirar o inacreditável, construindo resoluções que, apesar de inesperadas, são pouco críveis dentro de seu exagero cansativo. A primeira reviravolta, intencionalmente ou não, arranca risadas nervosas do público, mesmo fazendo sentido para o arco da protagonista; as outras partem de uma explicação que busca a lógica, mas também nos deixam com um pé atrás pela conclusão ocasional. E, mais uma vez, o cru talento de Dua Lipa é desperdiçado em pouquíssimas cenas que não são satisfatórias o suficiente.
‘Argylle – O Superespião’ faz um ótimo uso de seu elenco e de suas investidas estéticas para arquitetar uma aventura aprazível, embora esbarre em alguns excessos que podem cansar. Entretanto, é inegável a paixão de Vaughn pelo gênero em questão e como ele continua firme em sua promessa de construir um “universo da espionagem” para a alegria de sua legião de fãs e para todos que procuram um filme espirituoso e honesto.