terça-feira, março 19, 2024

Crítica | Bob Dylan flerta com a poética blasfema no evocativo ‘Rough and Rowdy Ways’

Levando em conta a efemeridade da indústria fonográfica – principalmente na contemporaneidade, em que diversos artistas parecem batalhar entre si para permanecerem relevantes no cenário mainstream -, é difícil pensar em nomes que tenham se mantido importantes e ativos, quanto mais terem lançado quase quarenta álbuns ao longo de uma carreira imortal. Mas esse não é caso de Bob Dylan. O nome artístico de Robert Allen Zimmerman está nesse cenário popular há seis décadas e, ao longo de hinos acerca de direitos civis e movimentos antibélicos, ele se envolveu com diversas áreas artísticas, unindo-as em um único fio que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura por ter “criado novas expressões poéticas através da grande tradição musical norte-americana”.

Oito anos depois de ter lançado sua última obra-prima de originais – e apenas três depois de reissues e compilados de clássicas produções -, Dylan roubou os holofotes em 2020 com o anúncio de ‘Rough and Rowdy Ways’, marcando a estreia de seu 39º álbum. Ao longo de dez faixas, que contêm contribuições dos lendários musicistas Fiona Apple (tendo divulgado ela mesma ‘Fetch the Bolt Cutters’ alguns meses atrás) e Blake Mills, o cantor e compositor cria mais uma amálgama com os estilos conhecidos de sua discografia, misturando desde o mais simples country-rock até as inflexões saudosistas do R&B em uma criação que tem vida própria; talvez até mais do que isso, cultivando uma arquitetura sonora que desvia dos padrões a que estamos acostumados (o que não é surpreendente, considerando que ele sempre foi um ícone da florescente contracultura estadunidense) e que rende-se a um escapismo sinestésico e imagético que corrobora sua perspectiva única para a música.

Dylan é uma figura anacrônica – no melhor sentido do adjetivo. Desde que despontou em 1962 com seu début homônimo, ousou desafiar o elitismo das esferas do entretenimento e abusou de sua prolífica e incansável mente para mostrar que as artes não eram excludentes entre si. Com o início de uma nova década e com a continuidade de uma nova geração que vem a conhecê-lo com olhos instigados pela curiosidades e personalidades que clamam por algo original e que a tire da zona de conforto, nada mais justo que ele venha a criar uma analítica e autocrítica declamação intimista que alcança uma estância homérica. Em “I Contain Multitudes”, o previsível título, na verdade, é uma dica propositalmente errônea do que podemos esperar; afinal ele é “um homem de várias contradições, um homem de vários humores”, com cada faceta refletida em delineações que não seguem qualquer padrão e que transformam a música em um extenso poema épico.

Comparando-se desde a Anne Frank até Indiana Jones, o performer deixa claro que metáforas e simbologias elegíacas serão seu objeto de estudo – permitindo que evocações dêiticas também tenham espaço de sobra para serem exploradas, como fica claro em “False Prophet”. Nesta track, que é a melhor de sua carreira em quase vinte anos, há um flerte malicioso e blasfemo com a mitologia católica e uma aproximação com a tragédia greco-romana – tudo isso transformado em um belíssimo e impactante country-folk que é dono de seu próprio borbulhante mundo (“sou o primeiro dos iguais, o segundo de ninguém” é um dos versos mais inteligentes e humildes do século, transformando uma obviedade universal em uma reflexão filosófica incrivelmente sagaz).

É incrível o modo como Dylan mostra sua paixão pela música – não é surpresa que ele desenvolve a invejável e imaginativa habilidade de construir cenários, abstratos ou concretos, em que cada nota é dotada de uma cor, e cada acorde conta uma história diferente. Em “My Own Version of You”, canção na qual faz um breve meneio a Paul Cauthen, a escolha de colocar o blues e a sutileza dos sintetizadores em segundo plano convida os ouvintes a uma mística road-trip sem destino certo. Já em “I’ve Made Up My Mind to Give Myself to You”, seus vocais roucos são certeiros em optar por uma rendição romântica que nos arremessa de volta para as rendições de Elvis Presley nos anos 1940 e 1950 – manifestando suas referências e de que forma ele as enlaça em um dinâmico quadro proprioceptivo.

As tendências do folk contemporâneo retornam com força em “Black Rider”, munindo-se de uma ambientação mais dark e onírica enquanto é guiado pelas líquidas notas do violão e pela presença quase imperceptível do baixo. Em “Goodbye Jimmy Reed”, o artista nos convida para uma revisitação concisa ao início de sua carreira – e talvez para sua terra natal de Duluth, no Minnesota; afinal, a faixa já começa com a descrição precisa de uma pequena cidade do interior onde a religião impera e a bíblia é a constituição, e temos desde a presença retumbante da bateria até o momentâneo grito da gaita. Seu respaldo mitológico também é marcante, principalmente com a envolvente “Mother of Muses”, em que seus clamores e angústias são reflexo de uma sociedade perdida, pincelada com o pessimismo de um futuro incerto.

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‘Rough and Rowdy Ways’ é uma narrativa que transcende o que se entende e o que se entendeu por música nas últimas décadas. Assim como Apple e seu mais recente lançamento (que alçou voo para o patamar de melhor álbum do ano), Dylan não se restringe apenas a um método de contar o que deseja e o que precisa; pelo contrário, ele tem uma necessidade intrínseca e inalienável de juntar investidas artísticas diversas e bastante abrangentes em um único lugar, fugindo do canto e optando diversas vezes por apresentações faladas – como “Crossing the Rubicon”, que premedita a epítome formada por “Key West” e por “Murder Most Foul”.

A passional e irremediável beleza da música costuma vem em pequenos frascos – mas, no caso de Bob Dylan, esse gracioso encanto poderia se estender por horas e mais horas de solilóquios reflexivos e bastante íntimos. Mas, em vez disso, ele nos presenteia com apenas dez canções, como já mencionado, nos infundindo com um desejo irrefreável de “quero mais”.

Nota por faixa:

  • I Countain Multitudes – 4,5/5
  • False Prophet – 5/5
  • My Own Version of You – 5/5
  • I’ve Made Up My Mind to Give Myself to You – 4,5/5
  • Black Ride – 5/5
  • Goodbye Jimmy Reed – 5/5
  • Mother of Muses – 4,5/5
  • Crossing the Rubicon – 5/5
  • Key West (Philosopher Pirate) – 4,5/5
  • Murder Most Foul – 5/5

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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