Cuidado: muitos spoilers à frente.
Obs.: a crítica anterior analisou os três primeiros episódios da temporada. Esta crítica analisa a temporada completa.
‘Sandman’ já estava para ganhar uma adaptação audiovisual há bastante tempo – mais precisamente, há mais de três décadas. Entretanto, não seria até 2022 que a icônica saga de quadrinhos assinada por Neil Gaiman viria à vida pela Netflix, um anúncio animador para os fãs das HQs e um tanto quanto preocupante, considerando o complexo e conturbado catálogo da gigante do streaming. Felizmente, a temporada de estreia da série, que conta com dez episódios, consegue honrar a essência da obra de Gaiman e investe esforços em cada uma das engrenagens da obra, transformando-a em uma catártica experiência acerca da ambição humana e das forças que se escondem do mundo em que vivemos.
Apesar de ter destrinchado os três episódios iniciais na crítica que escrevi há alguns dias, é sempre bom relembrar a trama principal: um ocultista chamado Roderick Burgess (Charles Dance), em uma tentativa desesperada de trazer seu falecido filho de volta à vida, lança um feitiço para aprisionar a Morte (interpretada, alguns capítulos à frente, por Kirby Howell-Baptiste), uma entidade Perpétua que rege a ordem do cosmos. Entretanto, ele acaba encarcerando outra entidade conhecida por Sonho, Morpheus ou Sandman (encarnado por Tom Sturridge em um papel definidor de sua carreia). A partir daí, Roderick exige que ele lhe conceda desejos como riqueza, poder e imortalidade, mas encontra uma barreira ao buscar se comunicar com Morpheus e prolonga uma gigantesca desestabilização no universo; afinal, Morpheus é o regente do Mundo dos Sonhos e responsável pela criação de sonhos e pesadelos (ou seja, sem que ele esteja em seu trono, as coisas se aglutinam em uma bola de neve caótica e incontrolável).
Apesar da atmosfera fabulesca e sobrenatural, Gaiman conquistou fama por narrativa extremamente intrincadas que dialogam não apenas com mundos fantasiosos e personagens etéreos, mas que mergulham em reflexões sobre o sentido da vida e o que nos aguarda depois da inevitabilidade da morte. Em ‘Sandman’, a ideia principal não é dividir os personagens em vilões e mocinhos, como costumamos ver em tramas do gênero, mas sim desconstruir o maniqueísmo a que somos expostos. O próprio personagem titular posa como uma divindade que acredita ter razão sobre tudo e todos, ainda mais no tocante ao caráter humano; porém, como vemos no decorrer da série, Morpheus descobre que ser humano implica uma infinidade de camadas, incertezas, inseguranças e sonhos que não apenas os tornam diferentes um do outro, mas permitem que o próprio Rei dos Sonhos tenha “material” com que trabalhar para alimentar o que conhecemos por esperança.
Da mesma maneira, somos apresentados a retratos diferentes de construções abstratas que se manifestam em signos palpáveis e com um propósito específico: temos a já mencionada Morte, a irmã mais velha e mais sábia de Morpheus, cuja backstory é movida pela frustração de ser tão temida. Na verdade, o próprio conceito de morte é talhado sob uma perspectiva monocromática, em que é contrastada apenas como o polo negativo da vida – isto é, a ausência daquilo que nos mantém vivos. A série, dessa forma, resgata os elementos metafísicos da HQs e permite que Howell-Baptiste faça um trabalho comovente ao fornecer mais profundidade à personagem que interpreta, arrancando lágrimas dos espectadores mais céticos e permitindo que sintamos sua falta depois do episódio em que aparece.
Seria necessário um texto inteiro apenas para falar dos protagonistas e coadjuvantes que dão as caras nas telinhas – e de que forma Gaiman, que fica responsável pela supervisão do show ao lado de David S. Gyer e Allan Heinberg, utiliza o formato antológico em prol de eternizar uma identidade que esperamos se repetir em ciclos futuros. É claro que gostaríamos de ver uma presença mais marcante de Morte, Lúcifer (Gwendoline Christie) e Johanna Constantine (Jenna Coleman), mas a decisão em mantê-los restritos a um tempo de tela menor contribui, de certa maneira, para uma necessidade de revê-los em breve e não exauri-los de seus arcos de uma vez só. De qualquer maneira, Sturridge, Boyd Holbrook como o Coríntio, Vivienne Acheampong como Lucienne, Patton Oswalt como Matthew, o Corvo, e David Thewlis como John Burgess são o suficiente para nos satisfazer, ao menos por enquanto.
A arquitetura antológica não se limita apenas ao processo de delineação da narrativa, mas às escolhas técnicas e artísticas: como podemos ver ao longo da temporada, cada episódio porta-se de uma forma diferente, mesmo tendo como mote uma significação em comum, que prenuncia uma vibrante resolução e acontecimentos para o próximo ciclo. O sexto episódio, por exemplo, é marcado pela ternura de um realismo que abraça o inexorável, por mais duro que ele seja; já o quinto capítulo, que imprime maior foco ao personagem de Thewlis, mergulha na atemporalidade cênica e nos transporta para o microcosmos do que seria uma lanchonete perdida no tempo e no espaço, marcada pelo contraste de cores, pelos figurinos detalhados e por uma tétrica sonora que o transforma em uma das melhores iterações do não.
De fato, ‘Sandman’ não é livre de falhas – principalmente nos dois episódios finais, cujo ritmo se desequilibra em uma tentativa de apressar os desfechos e unidimensionalizar as relações de causa e consequência. Deslizes à parte, o resultado da temporada de estreia é surpreendente e positivo, trazendo um novo capítulo à carreira de Gaiman no cenário audiovisual e permitindo que nos apaixonemos por cada uma das inflexões que se desenrolam.