quinta-feira, abril 25, 2024

Crítica | Crimes do Futuro – Cronenberg numa visão futurista à estética do terror corporal

Por Letícia Alassë, direto da França

Após oito anos de ausência, David Cronenberg recupera uma história escrita nos anos 90, logo depois do alucinante Crash – Estranhos Prazeres (1996). Corpos humanos e máquinas mais uma vez são a tônica do seu espetáculo de horrores em Crimes do Futuro, em competição oficial no 74ª Festival de Cannes

Em um futuro no qual os humanos pararam de sentir dor e conseguem digerir plástico, Saul Tenser (Viggo Mortensen) é um famoso artista por conta de performances onde ele expõe seus órgãos internos tatuados em frente à plateia e às câmeras. Ele conta com a assistência de Caprice (Léa Seydoux), uma cirurgiã apaixonada pelo body art e, provavelmente, por seu objeto de trabalho, Saul. 

Não tão distante de exibições de perfuração de pele por centenas de piercings, tatuagens ou bifurcações cutâneas, Crimes do Futuro apresenta a evolução humana na perda da sensibilidade e a cirurgia como uma performance artística. Se por um lado, os personagens enxergam as mutações do corpo humano como algo belo, por outro a ambientação é sombria, apocalíptica e desesperançada. 

Crimes do Futuro é um espaço fechado entre o mundo quase obsceno do “artista” Saul e sua posição de agente duplo no caso de Lang Dotrice (Scott Speedman). Lang procura Saul para realizar uma autópsia do cadáver do seu filho de oito anos diante das câmeras. A cena inicial de sua morte é propícia ao choque e este estalo é o fio condutor de um certo suspense à trama em meio a espetáculos de horror. 

O terror habita nas sensações e na estética apresentada. Mais ou menos aos 30 minutos de filme, uma cena de revirar o estômago e os intestinos literalmente, revira os nossos. É quase instintivo virar o rosto (e alguns espectadores saírem de sala) protegendo os olhos de uma aversão ao interior da nossa constituição física. A ideia apresentada, no entanto, é que a “cirurgia é o novo sexo”. Em determinado momento, Saul pronuncia diretamente não saber mais como fazer “o velho sexo”. 

Nesta distopia, Cronenberg ostenta uma pornografia na qual membros penetrando orifícios são substituídos por bisturis cortando a carne. A cirurgiã Caprice verbaliza como: “o desejo de ser aberta”. Podemos interpretar que na falta de dor, a endorfina, o hormônio da felicidade, viria de ultrapassar o abrigo da vida, ou seja, a pele. 

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As máquinas são personagens de destaque nessa sociedade onde os crimes são realizados dentro do próprio corpo. Um clandestino escritório de registro de novos órgãos nos dá a impressão de um processo burocrático e cômico, no qual Timlin (Kristen Stewart) e Wippet (Don McKellar) são uma peculiar dupla de admiradores máximos do body art. Eles promovem até um concurso de beleza interna, isto é, de órgãos tatuados.

Para executar suas performances, Saul e Caprice operam uma máquina de autópsia modificada. Além desse “quase” sarcófago, Saul dorme em uma cama que processa a sua dor interna durante o sono e também utiliza uma cadeira para lhe auxiliar a comer, algo já difícil para alguns humanos. Todos esses elementos soam lúgubres e chistosos. Com braços que lembram ossos e esqueletos, as máquinas são como um auxiliar de vida. Os técnicos dessas máquinas guardam igualmente um mistério de seus reais interesses.

Novos órgãos ou tumores? As discussões giram entre a dúvida de uma ameaça de mutação natural ou um produto de engenharia biológica. Esses mistérios, entretanto, não são tão notáveis. O interesse de Cronenberg, na verdade, é explorar os limites do corpo humano de forma afrontosa. As atuações também sofrem com esse processo indefinido de metamorfose e mutilação, por vezes sensual, por vezes picaresco. 

Em Crash – Estranhos prazeres, a questão era o limite para encontrar o prazer e o mesmo paralelo pode ser traçado aqui. Crimes do Futuro, no entanto, é uma ficção-científica em que a própria natureza evolui exterminando o humano dentro da sua armadura, ou seja, o corpo. Em tons sombrios, o cineasta faz o horror tornar-se estético, sexy e político. Porém, ao assistirmos, estamos nos contorcendo na poltrona e esquecemos dos questionamentos e da luxúria. 

 

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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