Ir ao cinema assistir a um filme de Pedro Almodóvar é um ato já carregado de uma série de ansiedades para quem acompanha o trabalho desse diretor que mesmo sem a chancela hollywoodiana fez (e faz) história no cinema mundial. Toda expectativa criada na vida, de forma geral, é uma grande chance de frustração. Mas o vigésimo primeiro longa-metragem de Almodóvar não só não frustra como ainda nos lembra o motivo pelo qual seu trabalho é aclamado. Assim ele fez a cada novo lançamento. Não foi diferente com Dor e Glória. Com uma abordagem sensível sobre questões densas, o filme narra uma história que muito facilmente pode ser compreendida como autobiográfica.
O longa-metragem conta a vida de um diretor de cinema espanhol, mergulhado em um processo depressivo em função das muitas dores que sente, especialmente na cabeça e na coluna. Salvador Mallo (Antonio Banderas) se vê em um momento da carreira em que um de seus filmes volta a ser exibido 30 anos após seu lançamento, sendo considerando um clássico do cinema espanhol. Essa atividade faz com que o diretor revisite a película e, com isso, seu protagonista, com quem teve diversas questões durante o processo de rodagem do filme. Esse é o pretexto que desenrola toda a história. A volta desse trabalho do passado começa a aproximar Salvador de suas relações que se perderam com a vida, e, principalmente, das lembranças de sua infância pobre ao lado de sua mãe (Penélope Cruz) na década de 1960.
Para combater suas dores, do corpo e da alma, Salvador passa a utilizar heroína. O que ao longo da narrativa proposta vem muito mais como uma tentativa desesperada de fuga do que como uma questão moral que envolva qualquer tipo de dano real ao personagem. Os vícios, dos quais aparentemente sempre fugiu, vêm de minimizar as fortes dores físicas, mas também sua tristeza por não mais sentir-se capaz de rodar novos filmes (muito em função da sua frágil condição de saúde). Em seus devaneios sempre se vê transportado para suas relações do passado que, com o decorrer do filme mostram sua potência no processo de criação de seus roteiros.
Dor e Glória é um filme que fala de impermanência, inconstância. Fala da fugacidade da vida, das relações afetivas, das pessoas com as quais cruzamos. E o que fica do peso dessas relações, o que sobra, segue conosco para sempre. E no caso de Salvador: segue sendo transformado em arte. Esta sim tem para si o tempo da eternidade. O longa-metragem de Almodóvar explora os ciclos da vida de um homem de forma muito generosa. Como o passado atravessa a vida do protagonista em coincidências, mágoas, saudades e remorsos é contado com a delicadeza simples que é particular ao diretor. Quem acompanha seu trabalho sabe que para além do uso abusivo de cores primárias (que amamos!), outro aspecto comum às histórias apresentadas por Pedro é a proximidade com a vida real no tratamento de questões complexas. Sem a romanização exacerbada da dor, ou o medo de qualquer tabu. Relações cruas vivenciadas no tempo da narrativa.
E por falar em cores, a identidade visual de Almodóvar está presente em todas as cenas (ou quase). Por vezes preenchendo todo espaço, por outras compondo a arte na mobilha, nas decorações de formas mais sutis (isso se sutil é uma palavra usável quando se trata das famosas cores de Almodóvar). Na parte gráfica apresentada logo no começo do longa-metragem as cores têm sua comunhão máxima. Essas cenas, que misturavam diferentes tipos de artes gráficas, situam o público na vida do protagonista e são um presente aos olhos. É realmente impressionante a harmonia de cores tão fortes quando trabalhadas no universo do diretor.
A fotografia mescla lembranças de um passado claro, com um presente mais escuro ou deprimente. Contrapondo a leveza pueril das memórias da infância com as dificuldades da vida adulta, mesmo se tratando de um homem tão bem-sucedido. As lembranças do passado trazem cenários mais claros, brancos, com pequenos pontos de cor. Essa opção fez com que o contraponto com o momento presente do personagem se tornasse nítido e contrastante.
O elenco conta com alguns dos atores cujas carreiras o diretor alavancou e com os quais sempre buscou trabalhar. Dentre eles, seus pupilos e musos Penélope Cruz e Antonio Banderas. Penélope que trabalha com o diretor há mais de 30 anos e Antonio que foi lançado por ele em 1982 com Labirinto de Paixões. Nada mais justo, portanto, do que dar a esses atores os dois personagens mais simbólicos da trama: Salvador e sua mãe.
Ainda que o diretor não descreva este longa-metragem como autobiográfico, afirma ser este seu filme que tem a relação mais íntima a ele. E partindo desse fio condutor, muito se entende sobre sua obra de forma global.
O peso da trajetória e das memórias de afeto no processo de criação de um dos grandes nomes do cinema no filme, pode ser a resposta para o tratamento gentil dado aos personagens mais complexos (e seus contextos) nos clássicos filmes de Pedro Almodóvar. A força do potencial criativo que é alimentado pelas vivências de Salvador pode ser também a força que move o desenvolvimento dos memoráveis trabalhos do diretor da vida real. A paixão por cinema vista no personagem desde a infância e até mesmo a forma de se vestir… muitos são os detalhes que amarram a figura fictícia e a real. Se é ou não de fato a história do diretor, não importa. O fato é que Dor e Glória é mais um belo trabalho que trata de questões reais, de forma real, e com toda a estética e ritmo que já conhecemos tão bem.