Halsey, alter-ego artístico de Ashley Nicolette Frangipane, começou sua carreira há pouco tempo, com o lançamento do adorado ‘Badlands’, ainda em 2015. Ascendendo ao patamar de popstar pouco depois com vendas avassaladoras e uma crescente legião de fãs, a cantora e compositora migrou do indie pop ao pop e ao electro-pop com facilidade invejável e se consagrou como um dos símbolos da nova geração da música. Depois de deixar sua marca no cenário alternativo e no mainstream, Halsey seguiu em frente com um novo e ambicioso projeto intitulado ‘If I Can’t Have Love, I Want Power’, um álbum visual que se tornou um dos títulos mais antecipados de 2021. E, felizmente, tanta espera valeu muito a pena, visto que a obra emerge ao patamar de uma das melhores dos últimos anos.
Apesar do pouco material promocional divulgado – e isso não inclui qualquer single divulgado -, a artista chamou nossa atenção com a exibição da belíssima capa do CD, em que posava ao lado do filho recém-nascido em um cenário ressoante a ‘Game of Thrones’ e às pinturas renascentistas. Pouco depois, confirmou a produção de um filme que estrearia nos cinemas em IMAX, com a prévia de uma faixa que, até então, não havia visto a luz do dia. E nesta última sexta-feira, os fãs foram agraciados com o début do álbum, que conta com 13 faixas originais e que adota um tom assumidamente político e crítico em seu cerne, tratando de temas como feminismo, misoginia, disparidade de gênero e as mazelas do patriarcado tradicionalismo. Aliadas a um amadurecimento ideológico, as faixas são envolventes pela estrutura dissonante e pela ousadia fonográfica que se afasta dos preceitos mercadológicos e nos infunde com reflexões sobre a própria sociedade.
A grande surpresa, como já mencionado, vem com a profunda densidade da arquitetura que criou. Se no passado Halsey aproveitava os elementos mais populares para dar suas características, aqui ela adota uma persona única e que não tem medo de arriscar. Como ela própria citou através do Instagram, o álbum é um produto conceitual que analisa as dicotomias da sociedade, as “alegrias e os horrores da gravidez e da maternidade”, “a dicotomia entre a Madona e a Prostituta”, em um mundo regido pela fragilidade emblemática dos homens e pela necessidade de controlar o corpo e o pensamento das mulheres. É nesse escopo que partimos para a faixa de abertura, “The Tradition”, cuja pungente narrativa é acompanhada de um afiado e épico refrão, guiado pelo mote “peça perdão, nunca permissão” – um início bastante forte para o que se tornaria o disco de sua carreira.
A performer poderia muito bem resvalar nas superficiais fórmulas declamativas e dizer obviedades risíveis – mas não é isso o que ela faz. Halsey apostou suas fichas em histórias românticas e arromânticas, aqui ela abandona o que já explorou para uma amálgama ao mesmo tempo nostálgica e contemporânea, experimentando como nunca sem perder a mão de uma produção irretocável. Encarnando uma de suas musas, a lendária Dolores O’Riordan, vê-se seu apreço pelo peso dramático e explosivo do grunge e do hard rock em “Easier than Lying”, por exemplo, num hino de empoderamento digna da nossa atenção; em “Girl is a Gun”, as guitarras são colocadas de lado em prol da exaltação do hyperpop e do PC music, cortesia principalmente de outros dois produtores que emprestam suas habilidades para mais uma incursão de tirar o fôlego: Atticus Ross e Trent Reznor.
A dupla ganhou reconhecimento após trabalhar no aclamado longa-metragem ‘A Rede Social’, que já dava os primeiros sinais de uma nova era para a música eletrônica – algo que seria explorado com mais força por A.G. Cook, Charli XCX e SOPHIE, por exemplo. Ano passado, se envolveram com um projeto totalmente diferente, a animação ‘Soul’, apresentando um novo lado do jazz e do blues – e tanta experiência teve enorme impacto em suas carreiras, considerando as obras-primas que produziram com ‘If I Can’t Have Love, I Want Power’. Nenhuma peça da engrenagem se encaixa uma a outra, e essa é a beleza do álbum: não saber o que nos aguarda para a próxima música e, no final das contas, abrir uma caixinha de surpresas com uma mixtape exuberante, sonoramente colorida e incansavelmente excêntrica.
Os esforços de cada um dos artistas gera frutos track a track. “1121” se afasta das investidas anteriores e abre espaço para a potência ecoante do synth-pop em uma balada desconstruída que fala sobre abandono e sobre as consequências de um amor que não foi conforme o esperado; a mesma atmosfera aparece incrementada com “I am not a woman, I’m a god”, que pega referências das construções frenéticas de Robyn e de Arcade Fire; “Ya’aburnee” toma uma direção diferente do esperado, desde o críptico título árabe até o sólido alicerce causado pelo baixo, finalizando essa sensorial e cinemática aventura com os melancólicos versos “querido, você vai me enterrar, antes que eu enterre você”.
Halsey, em 2021, não apenas entregou o melhor álbum de sua carreira, movido pela pureza da angústia sentimental perante o mundo, mas também uma das mais proveitosas e singelas do ano – quiçá da década. Nada pôde nos preparar para o confessional tom que o disco adotaria e, eventualmente, esse é o seu maior bem.
Nota por faixa:
1. The Tradition – 5/5
2. Bells in Santa Fe – 5/5
3. Easier than Lying – 5/5
4. Lilith – 4,5/5
5. Girl is a Gun – 5/5
6. You asked for this – 4,5/5
7. Darling – 4,5/5
8. 1121 – 5/5
9. honey – 5/5
10. Whispers – 4,5/5
11. I am not a woman, I’m a god – 4,5/5
12. The Lighthouse – 4/5
13. Ya’aburnee – 5/5