segunda-feira , 18 novembro , 2024

Crítica | I May Destroy You – Transformando limão em poesia

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I May Destroy You é uma obra de reflexão em mais de um sentido. Primeiro porque, como muito já se repetiu por aí, Michaela Coel se baseou na própria experiência de abuso sexual para criar a história. Mais do que isso, no entanto, o processo criativo da multifacetada autora, roteirista, showrunner e protagonista ao longo dos 12 episódios é tão fragmentado como as memórias de Arabella da fatídica noite que mudou tudo.

Proposital ou não, esse formato quebradiço parece um vislumbre exclusivo para dentro da mente enérgica da dona da história. Como um cérebro protege a si mesmo de um evento traumático? Escondendo-o sob camas metafóricas junto a memórias empoeiradas e roupas esquecidas que deveriam ter ido para doação.

MasI May Destroy Youé Michaela Coel limpando o espaço sob a cama. Ela é reflexiva porque ela se dobra dentro de si mesma em busca de respostas para uma pergunta raramente proposta dentro do audiovisual. Nós contamos e acompanhamos sendo contadas histórias que mostram como alguém é antes de um abuso, como se desenrola uma noite em que tudo dá errado e a busca por justiça — ou, às vezes, vingança — que se segue. Mas Michaela está interessada em outro ângulo. Ela não nos dá tempo para realmente entendermos quem Arabella foi, mas faz questão de nos mostrar quem ela simplesmente é — de forma inerente, com todas as suas obsessões e idiossincrasias. Sem meias-palavras, sem desculpas para poupá-la de ser escrutinada em cada coerência ou contradição, a série se abre para o público ao mesmo tempo em que se fecha em si mesma quase em um exorcismo de tudo de bom e de ruim que existe dentro de uma pessoa.



A bravura de Arabella é emprestada de Michaela Coel, ela mesma alguém que se ancora na personagem e na série para colocar no papel (e, consequentemente, na tela) aquelas partes de si mesma que teme encarar, mas sabe que precisa. E daí surge a fragmentação de ideias que toma conta de cada episódio deI May Destroy You. Ao invés de se comportar dentro de uma linha narrativa coesa e racional, a série coproduzida pela BBC e pela HBO pincela os momentos ou as ações que revelam como Arabella está, inconscientemente, lidando com o fato de ter sido dopada e estuprada por dois homens quando saiu para beber com alguns amigos em uma pausa durante uma maratona para escrever seu segundo livro.

No processo de cura, Arabella machuca os outros enquanto sente as próprias feridas. Kwame (Paapa Essiedu) tem suas próprias questões, lidando em silêncio e de maneira errática com sua história de estupro. Terry (Weruche Opia), longe da perfeição e da realização de seus sonhos profissionais, comete erros e gasta seu tempo até percebê-los sozinha, ou até que alguém diga para ela que alguma situação não foi tão correta ou inocente quanto ela havia imaginado. Todos eles estão tropeçando e levantando, com os joelhos arranhados e as mãos machucadas, mas indo em frente de uma forma ou de outra, porque no fim das contas é o que eles podem fazer.

I May Destroy Younão foi concebida para um mundo como o de 2020, dividido entre sofrer as milhares de mortes provocadas pela pandemia, uma crise econômica gigantesca e protestos antirracismo e contra a violência policial. O fato de ela ser recebida por esta realidade, já tão dura principalmente para a população preta e pobre, poderia transformá-la numa experiência difícil de se engolir. Mas essa dureza jamais é sentida como algo desolador, já que a série se dispõe muito mais para um olhar internalizado e, desta forma, seus comentários sobre dor e amadurecimento são recebidos de forma introspectiva. Ela potencializa seus temas sem jamais se transformar em um objeto de masoquismo sociopolítico. 

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Por isso, I May Destroy You se dedica a mostrar não somente o que acontece com Arabella tentando seguir em frente após ter sido violentada, mas também que existe uma falta de respostas mais comum do que um senso de completude após um ataque como o sofrido por ela. A série se dedica ao vazio que se segue, e como tentar ocupá-lo. Ao invés de usar o ato de violência como algo que define ou redime atos questionáveis e egoístas da personagem, a série abraça quem ela é por completo e faz com que Arabella não tenha outra escolha a não ser olhar para os seus medos e monstros escondidos.

Mas ela se certifica de que isso seja uma decisão dela, e não do roteiro. 

É dessa forma queI May Destroy You também consegue tratar de temas mais sinuosos, como as nuances do sexo consentido, responsabilização afetiva de amizades e dependência de atenção nas redes sociais sem que tudo isso soe como uma palestra ou um folheto ilustrativo do que fazer ou não fazer. A série é uma espécie de coletânea sobre afetos, desafetos e contradições, tão perfeitamente reunida sob o guarda-chuva da amizade tão firme de Arabella e Terry. É um dos retratos mais honestos sobre feminilidade e sobrevivência, porque entende como ninguém que desarmar o inimigo não passa pelo conto de vingança pelo qual Hollywood é tão apaixonada. É sobre transformar a dor em energia, potente mas controlável. 

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Laysa Zanettihttps://cinepop.com.br
Repórter, Crítica de Cinema e TV formada em Twin Peaks, Fringe, The Leftovers e The Americans. Já vi Laranja Mecânica mais vezes que você e defendo o final de Lost.

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I May Destroy You é uma obra de reflexão em mais de um sentido. Primeiro porque, como muito já se repetiu por aí, Michaela Coel se baseou na própria experiência de abuso sexual para criar a história. Mais do que isso, no entanto, o processo criativo da multifacetada autora, roteirista, showrunner e protagonista ao longo dos 12 episódios é tão fragmentado como as memórias de Arabella da fatídica noite que mudou tudo.

Proposital ou não, esse formato quebradiço parece um vislumbre exclusivo para dentro da mente enérgica da dona da história. Como um cérebro protege a si mesmo de um evento traumático? Escondendo-o sob camas metafóricas junto a memórias empoeiradas e roupas esquecidas que deveriam ter ido para doação.

MasI May Destroy Youé Michaela Coel limpando o espaço sob a cama. Ela é reflexiva porque ela se dobra dentro de si mesma em busca de respostas para uma pergunta raramente proposta dentro do audiovisual. Nós contamos e acompanhamos sendo contadas histórias que mostram como alguém é antes de um abuso, como se desenrola uma noite em que tudo dá errado e a busca por justiça — ou, às vezes, vingança — que se segue. Mas Michaela está interessada em outro ângulo. Ela não nos dá tempo para realmente entendermos quem Arabella foi, mas faz questão de nos mostrar quem ela simplesmente é — de forma inerente, com todas as suas obsessões e idiossincrasias. Sem meias-palavras, sem desculpas para poupá-la de ser escrutinada em cada coerência ou contradição, a série se abre para o público ao mesmo tempo em que se fecha em si mesma quase em um exorcismo de tudo de bom e de ruim que existe dentro de uma pessoa.

A bravura de Arabella é emprestada de Michaela Coel, ela mesma alguém que se ancora na personagem e na série para colocar no papel (e, consequentemente, na tela) aquelas partes de si mesma que teme encarar, mas sabe que precisa. E daí surge a fragmentação de ideias que toma conta de cada episódio deI May Destroy You. Ao invés de se comportar dentro de uma linha narrativa coesa e racional, a série coproduzida pela BBC e pela HBO pincela os momentos ou as ações que revelam como Arabella está, inconscientemente, lidando com o fato de ter sido dopada e estuprada por dois homens quando saiu para beber com alguns amigos em uma pausa durante uma maratona para escrever seu segundo livro.

No processo de cura, Arabella machuca os outros enquanto sente as próprias feridas. Kwame (Paapa Essiedu) tem suas próprias questões, lidando em silêncio e de maneira errática com sua história de estupro. Terry (Weruche Opia), longe da perfeição e da realização de seus sonhos profissionais, comete erros e gasta seu tempo até percebê-los sozinha, ou até que alguém diga para ela que alguma situação não foi tão correta ou inocente quanto ela havia imaginado. Todos eles estão tropeçando e levantando, com os joelhos arranhados e as mãos machucadas, mas indo em frente de uma forma ou de outra, porque no fim das contas é o que eles podem fazer.

I May Destroy Younão foi concebida para um mundo como o de 2020, dividido entre sofrer as milhares de mortes provocadas pela pandemia, uma crise econômica gigantesca e protestos antirracismo e contra a violência policial. O fato de ela ser recebida por esta realidade, já tão dura principalmente para a população preta e pobre, poderia transformá-la numa experiência difícil de se engolir. Mas essa dureza jamais é sentida como algo desolador, já que a série se dispõe muito mais para um olhar internalizado e, desta forma, seus comentários sobre dor e amadurecimento são recebidos de forma introspectiva. Ela potencializa seus temas sem jamais se transformar em um objeto de masoquismo sociopolítico. 

Por isso, I May Destroy You se dedica a mostrar não somente o que acontece com Arabella tentando seguir em frente após ter sido violentada, mas também que existe uma falta de respostas mais comum do que um senso de completude após um ataque como o sofrido por ela. A série se dedica ao vazio que se segue, e como tentar ocupá-lo. Ao invés de usar o ato de violência como algo que define ou redime atos questionáveis e egoístas da personagem, a série abraça quem ela é por completo e faz com que Arabella não tenha outra escolha a não ser olhar para os seus medos e monstros escondidos.

Mas ela se certifica de que isso seja uma decisão dela, e não do roteiro. 

É dessa forma queI May Destroy You também consegue tratar de temas mais sinuosos, como as nuances do sexo consentido, responsabilização afetiva de amizades e dependência de atenção nas redes sociais sem que tudo isso soe como uma palestra ou um folheto ilustrativo do que fazer ou não fazer. A série é uma espécie de coletânea sobre afetos, desafetos e contradições, tão perfeitamente reunida sob o guarda-chuva da amizade tão firme de Arabella e Terry. É um dos retratos mais honestos sobre feminilidade e sobrevivência, porque entende como ninguém que desarmar o inimigo não passa pelo conto de vingança pelo qual Hollywood é tão apaixonada. É sobre transformar a dor em energia, potente mas controlável. 

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