Nos últimos anos a Netflix vem investindo bastante em produzir e distribuir documentários que tragam à luz verdades chocantes desconhecidas pelo grande público. Recentemente, porém, parece que a Netflix resolveu cavar ainda mais fundo, resolvendo a terra para trazer à superfície a podridão de indivíduos glorificados pela mídia e pela sociedade, mas que, no fundo, eram ou são pessoas profundamente perturbadas. Foi assim que veio ‘A Máfia dos Tigres’, em março, e agora chega à plataforma ‘Jeffrey Epstein: Poder e Perversão’, uma minissérie de apenas quatro episódios com menos de uma hora cada.
Jeffrey Epstein é o típico cara que não era ninguém, surge do nada e, sem que ninguém consiga explicar exatamente como, ele simplesmente ganha a confiança dos poderosos e começa a circular pelos círculos sociais mais restritos dos EUA. Parece o enredo de ‘O Lobo de Wall Street’, mas é a vida real desse cara que nem sequer terminou a faculdade, mas que, de alguma forma, se tornou o administrador da fortuna dos homens mais ricos dos Estados Unidos. Com dinheiro e fama nas mãos, Jeffrey deu asas aos seus desejos sórdidos, construindo uma verdadeira rede de tráfico sexual dentro do país e entre outros países do mundo.
A rede de Jeffrey funcionava como pirâmides de comissão: Jeffrey convidava uma jovem adolescente menor de idade (entre 13 e 17 anos) para fazer uma massagem nele; a garota chegava, ele oferecia duzentos dólares pela massagem; rapidamente, a tal massagem se transformava em abuso sexual; caso a garota se assustasse ou se recusasse a ir até o fim, Jeffrey oferecia os mesmos duzentos dólares para que a jovem trouxesse uma amiga na próxima vez que viesse, de modo que cada uma delas ganharia a mesma quantia; como as garotas geralmente eram jovens em situação de vulnerabilidade (física, emocional, psicológica ou financeira), elas acabavam voltando, aliciando outras meninas a irem à mansão de Jeffrey. Isso aconteceu durante 24 anos, entre 1996 e 2019, com CENTENAS de garotas menores de idade.
Apesar do tema extremamente urgente e importante, levantado por movimentos como o #MeToo , é preciso analisar esse ‘Jeffrey Epstein: Poder e Perversão’ como o produto audiovisual que é. Embora claramente tenha um tom de denúncia no seu argumento, o resultado final do roteiro é um maior enfoque nas sobreviventes do predador do que na explanação dos crimes de Jeffrey. Em outras palavras: apesar da boa intenção do programa em dar voz às mulheres sobreviventes do assédio, a série basicamente explora as mazelas sofridas por elas, trazendo váááárias entrevistas extremamente detalhadas dos crimes ocorridos. E isso reforça exatamente o que se deve evitar: a exploração sádica e midiática dos sofrimentos dessas mulheres.
Claro que é preciso considerar também a impossibilidade de jogar a coisa toda no ventilador e explanar de vez a lista de contatinhos de Jeffrey, na qual consta o nome dos famosos e figurões dos tabloides estadunidenses, dentre os quais somente aparecem Donald Trump (que afirmou não falar com Jeffrey há quinze anos), o ator Kevin Spacey (que novidade!), Bill Clinton (que disse que nunca esteve em nenhuma situação com garotas…), o produtor de Hollywood Harvey Weinstein (que, vejam só, foi condenado por assédio e abuso sexual!), o diretor Woody Allen (só aparece uma foto dele, muito brevemente), o Príncipe Andrew da Inglaterra e o ator Chris Tucker. Olhando essa lista, dá pra imaginar que há um fundo de verdade nessas acusações.
A série foi produzida pelo escritor best-seller de romances policiais James Patterson, que, vejam só, era vizinho de Jeffrey em West Palm Beach, Flórida. Dá pra imaginar os anos de indignação de Patterson em saber que seu vizinho dava altas festas criminosas na mansão ao lado, e ele ali, sem poder chamar a polícia posto que a polícia local era conivente com o crime.
Enquanto denúncia, a série documental ‘Jeffrey Epstein: Poder e Perversão’ populariza o predador sexual como uma cartada final em busca de justiça para as mulheres que sofreram nas mãos do criminoso. Porém, com o formato de quase quatro horas de duração, acaba por mistificá-lo, explorando a violência para fazer render a trama. Talvez se fosse um filme documental com duas horas, a história se concentrasse mais em condenar o criminoso, e não em romantizá-lo.