segunda-feira , 23 dezembro , 2024

Crítica | Like a Prayer – O state-of-art do pop

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Nos primeiros anos de sua carreira, Madonna deu a entender que ‘True Blue’ seria seu melhor álbum. Lançado em 1986 e seguindo o não tão original ‘Like a Virgin’, a composição musical da obra em questão superou a expectativa de todos e mostrou com bastante competência que a união de diversos gêneros pode funcionar sim quando feita com cautela, paciência e esmero. Entretanto, a cantora havia apenas começado o seu extenso e memorável legado, aparecendo pouco tempo depois do fracasso de ‘Quem É Essa Garota?’ com a maior e melhor iteração de toda a sua carreira: o icônico e revolucionário ‘Like a Prayer’.

A quarta rendição de Madonna é, sem sombra de dúvida, um divisor de águas em sua discografia e até mesmo na história da música pop – afinal, esta foi uma das primeiras vezes em que o gênero em questão alcançou um patamar aplaudível, raspando na perfeição fonográfica. Não é surpresa, pois, que a artista se valha de seus melhores vocais e performances que oscilam do proposital melodramático ao puro cinismo, conversando em uma deliciosa contradição com o CD anterior. ‘Like a Prayer’, inclusive, serviria de inspiração para inúmeras construções contemporâneas e ressurgiria com mais força em futuros álbuns da lead singer – caso prestemos atenção, alguns versos são bastante familiares com os de compilações como ‘Confessions on the Dancefloor’ (2005) e ‘MDNA’ (2012).



A investida em questão já abre com uma canção nada menos que perfeita: a faixa-título abre com um poderoso, porém breve, solo de guitarra que logo é ofuscado pelos tons propositalmente gospel de um órgão, que prepara terreno para a clássica bateria que já apareceu em outras composições (como “Material Girl”). Entretanto, apesar do escopo “animador” da música, a cantora reside nas harmonias de seu alcance mezzosoprano e brinca com as estruturações convencionais de tantas outras produções de artistas conterrâneos, adicionando uma singela camada de ousadia para uma envolvente letra. “Quando você me chama pelo meu nome, é como se fosse uma oração”: com esse verso, Madonna encontra sua fraqueza mesmo se consagrando como independente – e deixa espaço considerável para os elementos de idolatria voltarem com a forte presença do coro.

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A balada desconstruída, que remonta a ares clássicos assim como ‘True Blue’ e ‘Like a Virgin’ fizeram com algumas faixas, é seguida da clássica “Express Yourself”. A track, como nunca antes, reflete a necessidade de empoderamento do eu lírico, ainda mais considerando que seu declamador é uma mulher inserida numa indústria controlada por homens. Por isso, os versos que podem parecer superficiais carregam consigo um significado dúbio (“não aceite o segundo lugar, baby” repete-se no início de cada refrão), acompanhado pela expressividade dos trompetes e, mais uma vez, da retumbante bateria.

A obra em si é o exato oposto de sua predecessora – ainda mais considerando que havia acabado de se separar de Sean Penn. E foi com um coração quebrado e um talento inigualável que a artista criou uma declaração difamatória e satírica extremamente sutil que, pelo título, já nos causa estranhamento: “Love Song” nos dá a entender que Madonna irá se entregar mais uma vez aos affairs românticos, mas logo depois do primeiro acorde, percebemos, como ela, que “esta não é uma canção de amor” – e até mesmo os diálogos em francês ajudam a reafirmar isso. Já aqui, percebemos a volta dos sintetizadores, que, diferente de antes, não seriam os principais instrumentos a ganharem nossa atenção.

O álbum cresce em originalidade e não recua em nenhum momento: seja com o chocante desabafo em “Till Death Do Us Part” ou com a catártica “Promise to Try”, Madonna explora com força vocais esplêndidos, tangenciando uma majestuosidade de nos arrepiar: nesta canção, por exemplo, ela se mantém em um tom único que harmoniza com o piano e o violino, ambos se postando diante de uma performance adorável. Seria apenas com “Cherish” que a produção optaria pelos acordes do electro-pop com uma narrativa, se é que é possível, mais romantizada e menos trágica que ‘Romeu e Julieta’, citando-os conforme caminhamos para o último ato (“eles nunca sentiram o que sinto”).

É interessante observar de que forma a cantora volta para suas premissas de amor na faixa supracitada e busca uma rendição mais teatral e anacronicamente perfeita em “Dear Jessie”: ela também aproveita para mostrar que cada uma de suas entregas é única e, aqui, cria uma atmosfera onírica acompanhada de arquiteturas que nos arremessam para décadas muito anteriores. Os dinâmicos violinos, regendo a imponência de uma paixão intrínseca, mesclam-se de modo radiofônico com “Oh Father”, cuja ambiência muda fluidamente para uma épica jornada coming-of-age que explode em um honrável chorus que repete “nunca me senti tão bem comigo mesma”.

A idealização narrativa não se resume apenas ao amor entre duas pessoas, mas sim do amor que Madonna sente por sua família, compreendendo-o como o âmbito mais importante da vida. A priori, a delineação musical nos passa uma sensação supérflua demais; porém, é imprescindível lembrar que essa track carrega uma profundidade mascarada, ainda mais porque a lead perdeu sua mãe com apenas cinco anos de idade. Logo, “não se esqueça de que sua família é ouro” ganha uma dimensão muito maior do que podemos dar crédito.

A epopeia termina com o bruto retorno latino em “Pray for Spanish Eyes”, com a utilização híbridas das castanholas e, mais uma vez, dos sintetizadores. Madonna até mesmo arrisca uma rouquidão que funciona em sua completude antes de finalizar com o brevíssimo resumo-conclusão “Act of Contrition”, misturando o imediato reconhecimento da guitarra com o coro da primeira música em um último esforço catártico, cuja influência atuaria diretamente em outro grande nome da música: Lady Gaga.

‘Like a Prayer’ sem sombra de dúvida, o mais próximo que o pop se aproximou da perfeição. Provando definitivamente sua versatilidade estilística, a artista cria e cultiva por gerações um state-of-art do gênero, uma joia lapidada que nos guia, em um inebriante e sinestésico conto de fadas distorcido, pelo imortal legado de Madonna.

Nota por faixa:

  • Like a Prayer – 5/5
  • Express Yourself – 5/5
  • Love Song – 4,5/5
  • Till Death Do Us Part – 5/5
  • Promise to Try – 5/5
  • Cherish – 4,5/5
  • Dear Jessie – 5/5
  • Oh Father – 4,5/5
  • Keep It Together – 4/5
  • Pray for Spanish Eyes – 5/5
  • Act of Contrition – 5/5
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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Nos primeiros anos de sua carreira, Madonna deu a entender que ‘True Blue’ seria seu melhor álbum. Lançado em 1986 e seguindo o não tão original ‘Like a Virgin’, a composição musical da obra em questão superou a expectativa de todos e mostrou com bastante competência que a união de diversos gêneros pode funcionar sim quando feita com cautela, paciência e esmero. Entretanto, a cantora havia apenas começado o seu extenso e memorável legado, aparecendo pouco tempo depois do fracasso de ‘Quem É Essa Garota?’ com a maior e melhor iteração de toda a sua carreira: o icônico e revolucionário ‘Like a Prayer’.

A quarta rendição de Madonna é, sem sombra de dúvida, um divisor de águas em sua discografia e até mesmo na história da música pop – afinal, esta foi uma das primeiras vezes em que o gênero em questão alcançou um patamar aplaudível, raspando na perfeição fonográfica. Não é surpresa, pois, que a artista se valha de seus melhores vocais e performances que oscilam do proposital melodramático ao puro cinismo, conversando em uma deliciosa contradição com o CD anterior. ‘Like a Prayer’, inclusive, serviria de inspiração para inúmeras construções contemporâneas e ressurgiria com mais força em futuros álbuns da lead singer – caso prestemos atenção, alguns versos são bastante familiares com os de compilações como ‘Confessions on the Dancefloor’ (2005) e ‘MDNA’ (2012).

A investida em questão já abre com uma canção nada menos que perfeita: a faixa-título abre com um poderoso, porém breve, solo de guitarra que logo é ofuscado pelos tons propositalmente gospel de um órgão, que prepara terreno para a clássica bateria que já apareceu em outras composições (como “Material Girl”). Entretanto, apesar do escopo “animador” da música, a cantora reside nas harmonias de seu alcance mezzosoprano e brinca com as estruturações convencionais de tantas outras produções de artistas conterrâneos, adicionando uma singela camada de ousadia para uma envolvente letra. “Quando você me chama pelo meu nome, é como se fosse uma oração”: com esse verso, Madonna encontra sua fraqueza mesmo se consagrando como independente – e deixa espaço considerável para os elementos de idolatria voltarem com a forte presença do coro.

A balada desconstruída, que remonta a ares clássicos assim como ‘True Blue’ e ‘Like a Virgin’ fizeram com algumas faixas, é seguida da clássica “Express Yourself”. A track, como nunca antes, reflete a necessidade de empoderamento do eu lírico, ainda mais considerando que seu declamador é uma mulher inserida numa indústria controlada por homens. Por isso, os versos que podem parecer superficiais carregam consigo um significado dúbio (“não aceite o segundo lugar, baby” repete-se no início de cada refrão), acompanhado pela expressividade dos trompetes e, mais uma vez, da retumbante bateria.

A obra em si é o exato oposto de sua predecessora – ainda mais considerando que havia acabado de se separar de Sean Penn. E foi com um coração quebrado e um talento inigualável que a artista criou uma declaração difamatória e satírica extremamente sutil que, pelo título, já nos causa estranhamento: “Love Song” nos dá a entender que Madonna irá se entregar mais uma vez aos affairs românticos, mas logo depois do primeiro acorde, percebemos, como ela, que “esta não é uma canção de amor” – e até mesmo os diálogos em francês ajudam a reafirmar isso. Já aqui, percebemos a volta dos sintetizadores, que, diferente de antes, não seriam os principais instrumentos a ganharem nossa atenção.

O álbum cresce em originalidade e não recua em nenhum momento: seja com o chocante desabafo em “Till Death Do Us Part” ou com a catártica “Promise to Try”, Madonna explora com força vocais esplêndidos, tangenciando uma majestuosidade de nos arrepiar: nesta canção, por exemplo, ela se mantém em um tom único que harmoniza com o piano e o violino, ambos se postando diante de uma performance adorável. Seria apenas com “Cherish” que a produção optaria pelos acordes do electro-pop com uma narrativa, se é que é possível, mais romantizada e menos trágica que ‘Romeu e Julieta’, citando-os conforme caminhamos para o último ato (“eles nunca sentiram o que sinto”).

É interessante observar de que forma a cantora volta para suas premissas de amor na faixa supracitada e busca uma rendição mais teatral e anacronicamente perfeita em “Dear Jessie”: ela também aproveita para mostrar que cada uma de suas entregas é única e, aqui, cria uma atmosfera onírica acompanhada de arquiteturas que nos arremessam para décadas muito anteriores. Os dinâmicos violinos, regendo a imponência de uma paixão intrínseca, mesclam-se de modo radiofônico com “Oh Father”, cuja ambiência muda fluidamente para uma épica jornada coming-of-age que explode em um honrável chorus que repete “nunca me senti tão bem comigo mesma”.

A idealização narrativa não se resume apenas ao amor entre duas pessoas, mas sim do amor que Madonna sente por sua família, compreendendo-o como o âmbito mais importante da vida. A priori, a delineação musical nos passa uma sensação supérflua demais; porém, é imprescindível lembrar que essa track carrega uma profundidade mascarada, ainda mais porque a lead perdeu sua mãe com apenas cinco anos de idade. Logo, “não se esqueça de que sua família é ouro” ganha uma dimensão muito maior do que podemos dar crédito.

A epopeia termina com o bruto retorno latino em “Pray for Spanish Eyes”, com a utilização híbridas das castanholas e, mais uma vez, dos sintetizadores. Madonna até mesmo arrisca uma rouquidão que funciona em sua completude antes de finalizar com o brevíssimo resumo-conclusão “Act of Contrition”, misturando o imediato reconhecimento da guitarra com o coro da primeira música em um último esforço catártico, cuja influência atuaria diretamente em outro grande nome da música: Lady Gaga.

‘Like a Prayer’ sem sombra de dúvida, o mais próximo que o pop se aproximou da perfeição. Provando definitivamente sua versatilidade estilística, a artista cria e cultiva por gerações um state-of-art do gênero, uma joia lapidada que nos guia, em um inebriante e sinestésico conto de fadas distorcido, pelo imortal legado de Madonna.

Nota por faixa:

  • Like a Prayer – 5/5
  • Express Yourself – 5/5
  • Love Song – 4,5/5
  • Till Death Do Us Part – 5/5
  • Promise to Try – 5/5
  • Cherish – 4,5/5
  • Dear Jessie – 5/5
  • Oh Father – 4,5/5
  • Keep It Together – 4/5
  • Pray for Spanish Eyes – 5/5
  • Act of Contrition – 5/5
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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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