‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’ esteve em um longo tempo em desenvolvimento – para além da pré-produção e das filmagens, envolvendo o complexo conceito explorado pelos diretores Dan Kwan e Daniel Schinert sobre o multiverso. É claro que, nos dias de hoje, esse vocábulo faz parte da cultura pop com força inimaginável, e não precisamos ir muito além das inflexões exploradas pela Marvel Studios, com ‘Doutor Estranho’ e ‘WandaVision’. Entretanto, ainda que regadas por uma ousadia considerável, a gigantesca companhia cinematográfica não conseguiu ir muito além da obviedade e das investidas em blockbuster, destinadas a encantar um público que visava ao escapismo.
Agora, depois de mais de uma década de preparação, o filme em questão nos entregou uma nova percepção do que realmente significa o multiverso e como estamos longe de entendê-lo em suas infinitas possibilidades. Kwan e Schinert encontraram uma maneira de aglutinar uma quantidade inexplicável de gêneros narrativos em uma jornada explosiva de cores, coreografias de tirar o fôlego e uma compreensão pesarosa e pungente de que nossa existência é ínfima quando comparada ao universo. E nada disso poderia ser possível sem a presença de um elenco estelar, encabeçado pela lendária atriz Michelle Yeoh em mais uma performance definitiva de sua extensa carreira.
Analisar esse longa-metragem não é uma tarefa fácil: desde os trailers promocionais até sua exibição, absorver as múltiplas camadas que se estendem pela obra é um trabalho difícil, que beira o impossível quando ousamos sair um pouco das descrições costumeiras em textos críticos. Mas é possível inclusive partir dessa constatação para tecer um diálogo entre o que o título induz – deixar a zona de conforto de lado e abraçar o caos e a anarquia – e a experiência de conferi-lo do começo ao fim. Para que possamos nos guiar, é sempre bom começar pela trama principal: Yeoh interpreta Evelyn, uma mulher infeliz com a própria vida e sem qualquer prospecto de futuro, prestes a ser auditada e a perder a lavanderia que comanda ao lado do marido, Waymond (Ke Huy Quan). As coisas mudam drasticamente quando uma das versões de Waymond provinda de outro universo de Waymond a encontra em sua realidade e revela que o destino de tudo que conhecem está nas mãos dela.
A partir de então, Evelyn é arrastada para uma jornada interminável da busca pela identidade que se desenrola da maneira mais inesperada e bizarra possível: a protagonista abandonou todos os sonhos que tinha para seguir o que seu coração quis e, ao perceber que o conto de fadas que imaginava era apenas uma ilusão, entra em contato o que poderia ter sido. À medida que se redescobre e aceita suas falhas, ela degusta de habilidade inimagináveis que a ajudam nesse processo. Não estamos lidando com uma mera ação sci-fi, e sim com uma dramédia escrachada niilista que coloca em xeque a noção da concretude cronológica e o nosso desejo de controlar a inexorabilidade do tempo e dos eventos.
Desde uma cozinheira habilidosa a uma estrela de cinema mundialmente famosa a uma cantora de ópera cega, Evelyn se descortina em si mesma, engendrando um caminho que renega a progressão linear e se apoia com força descomunal em expressões artísticas do século passado – flertando com um surrealismo imagético que enche nossos olhos e nos deixa em um transe frenético de querer decifrar o indecifrável. A aparente falta de lógica é proposital na completude do longa e apenas acrescenta mais aspectos simbólicos a uma semiótica que diz tudo e nada ao mesmo tempo (logo nos primeiros minutos, fica claro os diretores arquitetam um jogo paradoxal que se atrela com intimidade a cada um dos personagens); todavia, tais incursões oníricas são banhadas com elementos palatáveis por parte do público, como a ascensão de uma antagonista (a filha de Evelyn, Joy, interpretada pela incrível Stephanie Hsu) e o enfrentamento de obstáculos mortais, incluindo Deirdre Beaubeirdre (Jamie Lee Curtis) e Gong Gong (James Hong).
Se você está esperando ver uma produção formulaica, sugiro que procure qualquer outra que não seja esta: as investigações promovidas não têm propósito de narrar nos mínimos detalhes o que se exibe nas telas, e sim permitir que o público se engolfe em um êxtase metaficcional e metafísico que se relaciona com o mais banal dos problemas que tenhamos enfrentado na vida. Evelyn é o laço diegético que nos une e nos faz questionar as escolhas que fazemos dia após dia, lançando luz em questões que oscilam desde o conceito de maternidade ao tradicionalismo familiar – e os impulsivos laços de que nutre com Joy, uma garota que se vê sugada por um vórtice de incompletude e que faz de suas mazelas uma válvula de escape que se livra da toxicidade da mãe e do que estar ao lado dela lhe causa.
Cada reviravolta no intrincado roteiro nos deixa mais instigados para terminar a obra – e, além da sagacidade cômica, temos a presença dos classicismos da ficção científica e da envolvência do drama novelesco, impedindo que essa profusão estilística descarrilhe ou nos deixe à deriva na frustração. Pelo contrário, é possível elencar nos dedos o número de filmes que cheguem à sólida e ambiciosa estruturação deste aqui, permitindo que ele se consagre como um dos melhores das últimas décadas.
A chamada ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’ já prenuncia a divertida bizarrice sem fim que veremos no cinema – mas não prevê as várias conexões que se espalham em sua composição. Como se não bastasse, Yeoh posa como o elo que segura a produção, rendendo-se ao melhor papel de sua carreira e relembrando o motivo que nos faz tão aficionados pela arte do cinema.