terça-feira, março 19, 2024

Crítica | Mignonnes – O filme MAIS POLÊMICO do ano que causou cancelamentos da Netflix

Envolto numa polêmica que diz mais sobre as pessoas que a levantaram que sobre o filme, ‘Cuties’ — ou ‘Mignonnes’, no original — é muito menos uma história sobre amadurecimento e mais sobre as pressões sociais exercidas sobre crianças e adolescentes em fase de transição, que se intensificam ainda mais com as redes sociais. O filme da roteirista e diretora franco-senegalesa Maïmouna Doucouré parte da perspectiva da jovem Amy (Fathia Youssouf) para contar uma história sobre identidades mistas e o conflito de gerações que se apresenta na interseção entre preservar o tradicionalismo (ora pautado no sexismo) da cultura familiar e a incessante vontade de descobrir o mundo que atinge qualquer pessoa em fase de amadurecimento. A interseção entre a adolescência e a juventude aos 11 anos de idade. 

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O resultado, complexo em sua natureza e mais preocupado em dar voz à protagonista de forma não-apologética, às vezes ignora o fato de ela ser muito nova para este tal olhar não-apologético, e se isso causa um olhar dúbio, dá material tanto para os seus defensores quanto para os seus detratores.

A controvérsia do filme vem de um lugar honesto, mas corre o risco de acabar com qualquer tipo de debate ou relativização justamente proposta pela obra. Se as escolhas feitas pelo marketing da Netflix não foram as melhores, cabe dizer também que talvez tenha faltado ao filme ser mais enfático no estudo das suas personagens e todas as suas complexidades e contradições.

Na história, Amy é uma garota de 11 anos de origem senegalesa e família muçulmana que se encanta com um grupo de dança de seu colégio, formado por outras quatro meninas da mesma idade que ela. Amy se dedica então a ficar cada vez mais parecida com elas para ser aceita dentro do grupo — roupas justas, exposição nas redes sociais e passos de dança nada apropriados para a idade, então, passam a fazer parte desta jornada de Amy e de suas novas amigas. Paralelamente, a garota vive em casa cercada pela tradição religiosa e vendo a poligamia do pai ser um sofrimento silencioso para a mãe. A ideia de rompimento vem a partir da exposição destes dois ângulos opostos da realidade da criança.

Vencedor do prêmio de melhor direção na seção de Drama do Cinema Mundial do Festival de Sundance, o longa foi adquirido pela Netflix para distribuição global e a primeira grande mudança veio no material de divulgação. Enquanto o cartaz que divulga o longa na França, onde foi lançado nos cinemas, traz as garotas em um clima de brincadeira e inocência pelas ruas, o material escolhido pela gigante do streaming mostra o grupo de protagonistas em uma apresentação de dança, que está em um dos momentos finais do filme, e todas usam roupas curtas feitas justamente para a apresentação e estão em poses supostamente sexualizadas. 

A comoção que passou a pedir que a Netflix cancelasse o lançamento do filme tomou proporções gigantescas, e arrecadou milhares de assinaturas em petições antes mesmo de alguém poder assistir à obra. As acusações foram de sexualização de menores a um olhar predatório da direção que estaria despreocupada com as repercussões para as jovens atrizes que participaram do filme, e embora nenhuma dessas acusações deva ser feita ou olhada de forma leviana, corremos o perigo aqui de estar diante de um olhar intransigente através do qual falar sobre um assunto é sinônimo imediato de compactuar com ele.

Por um lado, Doucoré constrói uma obra deliberadamente indigesta, a partir das próprias experiências e da observação de seus arredores. O filme contrasta os lampejos de infantilidade das protagonistas — brincadeiras, a inocência e as explosões de risadas que denunciam a imaturidade esperada para a idade — com cenas que obrigam o espectador a confrontar seus corpos e uma ‘adultização’ precoce buscada por elas. Exposta para nos incomodar e determinar que estamos diante de uma mistura de idades, de fases e de influências ao mesmo tempo perigosa e delicada, é a exposição demorada sobre os corpos das crianças, em close-ups e ângulos pouco sutis, que acendeu certos alertas. A composição dos contrastes nas entrelinhas às vezes parece não ser o suficiente para transmitir o recado de forma efetiva, embora a indigestão volta e meia reapareça com toda força. É como se o filme estivesse ao mesmo tempo tentando caminhar pegando a audiência pela mão para se certificar de que o recado será entendido, e justamente por isso isso, às vezes, se torna exaustivo e literal demais. 

Não deixe de assistir:

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Mesmo assim, a confluência de estímulos a que Amy e suas colegas estão expostas no filme existe de forma questionadora, um cabo de guerra que termina quando a garota escolhe um dos lados. Nas redes sociais, as crianças publicam registros próprios carregados de filtros que as fazem parecer muito mais velhas do que realmente são, e enquanto o mundo junto aos colegas é de cada um descobrindo e entendendo melhor o próprio corpo, em casa elas são parte de manter e passar adiante tradições familiares que vêm de gerações e que, talvez, elas sejam um pouco novas para entenderem a importância. Não precisar escolher um lado é um conceito que talvez Amy seja muito nova para entender, mas isso não significa que o filme não saiba disso. 

A ideia de abrir o debate e falar abertamente sobre os problemas da superexposição e sexualização infantil é tanto a ideia do filme quanto a de seus opositores, embora estes últimos partam de uma ideia que tenta podar qualquer conversa que possa partir da obra. Doucouré usa suas próprias experiências crescendo entre duas culturas e também a sua observação dos seus arredores em Paris, além de entrevistas com centenas de crianças e adolescentes que contaram histórias que entraram para o filme ou não — algumas ela sequer teve coragem de abordar tamanha a delicadeza.

É uma confluência de ideias que se torna leve quando acompanhamos as brincadeiras das crianças — em uma das cenas mais cômicas, uma delas tem a língua lavada com sabão após brincar com uma camisinha no parque, achando que era um simples balão. Mas se torna pesada quando toda a forma como a sexualização dessas meninas é posta em tela sob uma perspectiva que deixa claro justamente o quanto aquilo é confuso para elas. Em algumas cenas, elas estão obcecadas com alguns rapazes, que se afastam ao descobrirem que elas têm apenas 11 anos. Em outra cena, as poses de dança que são terrivelmente chocantes para quem olha são, para elas apenas bobas e inocentes. 

O que revela uma certa displicência no filme é a forma como ele não se preocupa com resultados, e parece se apressar para um final com poucas resoluções e ainda menos consequências. O resultado é uma mensagem cheia de ruídos, que esconde a potencial beleza e o carisma construído com cuidado e carinho na primeira metade do filme. Se costurasse melhor as causas e consequências das ações de Amy, poderia ter um resultado mais unânime e potente, ainda que não seja lá tão difícil entender certas coisas se você um dia já foi uma garota de 11 anos de idade.

Tendo como ponto de partida o choque da adultização precoce destas garotas, ‘Lindinhas’ é um retrato provocador do trauma, que busca acender um debate sobre a forma como os estímulos e as percepções sociais recaem sobre uma idade em que você se acha adulta demais para ser criança mas é criança demais para ser uma jovem. O filme se constrói sobre a ideia de uma escolha cruel, e em sua execução errática por vezes se esquece que essa já é uma idade difícil o suficiente sem as explosões a que recorre no final. Mas, se o seu objetivo era gerar um debate, pode ter certeza que isso ele conseguiu. 

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Laysa Zanettihttps://cinepop.com.br
Repórter, Crítica de Cinema e TV formada em Twin Peaks, Fringe, The Leftovers e The Americans. Já vi Laranja Mecânica mais vezes que você e defendo o final de Lost.

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