sábado , 23 novembro , 2024

Crítica | Netflix acerta em cheio com a envolvente e chocante fantasia distópica ‘Sweet Tooth’

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Em mais uma de suas incursões originais, a Netflix resolveu dar um passo um pouco mais ousado e trazer à vida os aclamados quadrinhos de Jeff Lemire, Sweet Tooth. Com produção executiva de ninguém menos que Robert Downey Jr. e sua esposa, Susan Downey, a série, composta por oito episódios, nos leva para um mundo distópico devastado por um vírus mortal e palco do embate racial entre humanos e híbridos (crianças que têm características tanto humanas quanto animais e que se tornam alvo de perseguições).

É um fato dizer que a gigante do streaming, nos últimos meses, arquitetou produções imaturas, por assim dizer, e que falharam em capturar a essência das obras originais – como foi o caso do pífio suspense ‘A Mulher na Janela’, estrelada por Amy Adams, e a esquecível (e já cancelada) ‘O Legado de Júpiter’, baseada nas HQs de Mark Millar e Frank Quitely. Não é surpresa que tenhamos ficado com um pé atrás quando foi anunciada a releitura de um dos artistas mais respeitados e conhecidos do cenário contemporâneo; entretanto, todas as dúvidas existentes logo foram varridas para debaixo do tapete com uma narrativa extremamente competente, envolvente, chocante e profunda, calcando uma metáfora belíssima para as diversas situações que as minorias sociais enfrentam na atualidade – e talvez uma lição bastante didática das mazelas dos preconceitos injustificáveis.



Assim como inúmeras investidas do gênero, Sweet Tooth abre de um modo familiar o suficiente para capturar a atenção do público, ainda que não ousado como pensaríamos. Guiado pela narração pontual de James Brolin, o piloto funciona como apresentação de um universo à beira de drásticas mudanças: de um lado, temos uma doença letal que dizima boa parte da humanidade e arremessa os sobreviventes para um obscurantismo total e uma falta de prospecto. Conhecido como Flagelo, o vírus não apenas serviu para “limpar” o planeta da tuberculosa praga que o assolava (o próprio homem), mas serviu de pontapé inicial para um estágio evolutivo que assimilava humanos a animais. E é claro que os ambos os eventos se correlacionariam de forma destrutiva, levando um grupo conhecido como Os Últimos Homens a caçá-los ou para exterminá-los ou para extrair deles uma cura em potencial.

O elo que une essas múltiplas subtramas é Gus (Christian Convery), um jovem garoto-cervo de dez anos que cresceu e passou a vida inteira escondido no centro de uma reserva em Nebraska, nos Estados Unidos, morando com ninguém além do pai (encarnado por Will Forte). Sem qualquer conhecimento do que se desenrolava para além das cercas que o protegiam, Gus enfrenta experiências traumáticas que o levam a deixar o passado para trás e buscar a mãe (que pode ou não ter morrido). Quando cruza caminho com o ex-atleta profissional Tommy Jepperd (Nonso Anozie), que trabalhava como um caçador de híbridos antes de se voltar contra o grupo, ele percebe que as coisas não são tão fáceis assim.

A série ganha notoriedade pelo modo como estrutura a história. Enquanto nada é essencialmente original ou revolucionário, Jim Mickle, que desenvolveu a obra e abarcou a direção do primeiro episódio, conduz com maestria uma aventuresca análise do que significa viver em meio à desordem. Gus e Jepperd são delineados com personalidades totalmente diferentes e que entram em conflito numa constância caótica, a princípio não nutrindo de afeição um pelo outro apenas para culminar em um respeito e um carinho mútuos que o transformam em família. Mas eles não são os únicos que desfrutam de momentos de protagonismo, ainda mais pelo sutil movimento multicronológico que Mickle ergue.

Além deles, temos a trama que não se isola, mas se ramifica para o relacionamento de Dr. Aditya “Adi” Singh (Adeel Akhtar) e da esposa, Rani (Aliza Vellani). Adi abandonou sua profissão depois do Flagelo para cuidar de Rani, que contraiu o vírus, mas foi tratada com rapidez com um medicamento que a livrava dos sintomas. As coisas mudam quando Adi percebe que os esforços de mantê-la a salvo de uma horda de vizinhos psicóticos e neuróticos não são o suficiente em meio a uma possível nova onda de infecções que vem crescendo dia após dia; em outro espectro, temos Aimee (Dania Ramirez), uma ex-psicóloga que, vivendo confinada meses a fio depois do estouro da pandemia, descobriu um novo propósito em sua vida ao encontrar a híbrida Wendy (Naledi Murray) e fundou um centro de acolhimento para salvar as crianças mutantes.

Talvez um dos únicos equívocos da primeira temporada seja o esquecimento do antagonista General Steven Abbot (Neil Sandilands). Apesar de fazer aparições densas ao longo dos episódios, a iminência do poder que exerce numa comunidade regida pelo medo é um tanto quanto óbvia e fica em segundo plano. De qualquer forma, todos os outros aspectos são tratados com cautela minuciosa, desde um dinâmico ritmo a um roteiro bem trabalhado que leva o tempo necessário para entregar as reviravoltas e os principais pontos de catarse – e falar sobre os incríveis efeitos visuais é quase desnecessário e redundante, considerando que não esperávamos menos que uma exuberância cativante.

Sweet Tooth é uma ótima adição ao extenso catálogo da Netflix e, diferente de outros títulos que a integram, não tenta entregar mais do que consegue. Pelo contrário, é admirável o esplendor ambíguo com o qual o time criativo da série lida, fazendo questão de que as peças dessa intrincada engrenagem funcionem do início ao fim.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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É um fato dizer que a gigante do streaming, nos últimos meses, arquitetou produções imaturas, por assim dizer, e que falharam em capturar a essência das obras originais – como foi o caso do pífio suspense ‘A Mulher na Janela’, estrelada por Amy Adams, e a esquecível (e já cancelada) ‘O Legado de Júpiter’, baseada nas HQs de Mark Millar e Frank Quitely. Não é surpresa que tenhamos ficado com um pé atrás quando foi anunciada a releitura de um dos artistas mais respeitados e conhecidos do cenário contemporâneo; entretanto, todas as dúvidas existentes logo foram varridas para debaixo do tapete com uma narrativa extremamente competente, envolvente, chocante e profunda, calcando uma metáfora belíssima para as diversas situações que as minorias sociais enfrentam na atualidade – e talvez uma lição bastante didática das mazelas dos preconceitos injustificáveis.

Assim como inúmeras investidas do gênero, Sweet Tooth abre de um modo familiar o suficiente para capturar a atenção do público, ainda que não ousado como pensaríamos. Guiado pela narração pontual de James Brolin, o piloto funciona como apresentação de um universo à beira de drásticas mudanças: de um lado, temos uma doença letal que dizima boa parte da humanidade e arremessa os sobreviventes para um obscurantismo total e uma falta de prospecto. Conhecido como Flagelo, o vírus não apenas serviu para “limpar” o planeta da tuberculosa praga que o assolava (o próprio homem), mas serviu de pontapé inicial para um estágio evolutivo que assimilava humanos a animais. E é claro que os ambos os eventos se correlacionariam de forma destrutiva, levando um grupo conhecido como Os Últimos Homens a caçá-los ou para exterminá-los ou para extrair deles uma cura em potencial.

O elo que une essas múltiplas subtramas é Gus (Christian Convery), um jovem garoto-cervo de dez anos que cresceu e passou a vida inteira escondido no centro de uma reserva em Nebraska, nos Estados Unidos, morando com ninguém além do pai (encarnado por Will Forte). Sem qualquer conhecimento do que se desenrolava para além das cercas que o protegiam, Gus enfrenta experiências traumáticas que o levam a deixar o passado para trás e buscar a mãe (que pode ou não ter morrido). Quando cruza caminho com o ex-atleta profissional Tommy Jepperd (Nonso Anozie), que trabalhava como um caçador de híbridos antes de se voltar contra o grupo, ele percebe que as coisas não são tão fáceis assim.

A série ganha notoriedade pelo modo como estrutura a história. Enquanto nada é essencialmente original ou revolucionário, Jim Mickle, que desenvolveu a obra e abarcou a direção do primeiro episódio, conduz com maestria uma aventuresca análise do que significa viver em meio à desordem. Gus e Jepperd são delineados com personalidades totalmente diferentes e que entram em conflito numa constância caótica, a princípio não nutrindo de afeição um pelo outro apenas para culminar em um respeito e um carinho mútuos que o transformam em família. Mas eles não são os únicos que desfrutam de momentos de protagonismo, ainda mais pelo sutil movimento multicronológico que Mickle ergue.

Além deles, temos a trama que não se isola, mas se ramifica para o relacionamento de Dr. Aditya “Adi” Singh (Adeel Akhtar) e da esposa, Rani (Aliza Vellani). Adi abandonou sua profissão depois do Flagelo para cuidar de Rani, que contraiu o vírus, mas foi tratada com rapidez com um medicamento que a livrava dos sintomas. As coisas mudam quando Adi percebe que os esforços de mantê-la a salvo de uma horda de vizinhos psicóticos e neuróticos não são o suficiente em meio a uma possível nova onda de infecções que vem crescendo dia após dia; em outro espectro, temos Aimee (Dania Ramirez), uma ex-psicóloga que, vivendo confinada meses a fio depois do estouro da pandemia, descobriu um novo propósito em sua vida ao encontrar a híbrida Wendy (Naledi Murray) e fundou um centro de acolhimento para salvar as crianças mutantes.

Talvez um dos únicos equívocos da primeira temporada seja o esquecimento do antagonista General Steven Abbot (Neil Sandilands). Apesar de fazer aparições densas ao longo dos episódios, a iminência do poder que exerce numa comunidade regida pelo medo é um tanto quanto óbvia e fica em segundo plano. De qualquer forma, todos os outros aspectos são tratados com cautela minuciosa, desde um dinâmico ritmo a um roteiro bem trabalhado que leva o tempo necessário para entregar as reviravoltas e os principais pontos de catarse – e falar sobre os incríveis efeitos visuais é quase desnecessário e redundante, considerando que não esperávamos menos que uma exuberância cativante.

Sweet Tooth é uma ótima adição ao extenso catálogo da Netflix e, diferente de outros títulos que a integram, não tenta entregar mais do que consegue. Pelo contrário, é admirável o esplendor ambíguo com o qual o time criativo da série lida, fazendo questão de que as peças dessa intrincada engrenagem funcionem do início ao fim.

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