sexta-feira, março 29, 2024

Crítica Netflix | Estou Pensando em Acabar com Tudo – Charlie Kaufman é soberano em alimentar nosso pesadelo existencial

Estou Pensando em Acabar com Tudo (I’m Thinking of Ending Things) começa com as reflexões de uma jovem (Jessie Buckley) sobre a jornada para conhecer os pais do namorado Jake (Jesse Plemons). Juntos há seis semanas, o casal realiza sua primeira viagem e ela começa a questionar os motivos desse encontro, já que não enxerga um futuro para relação e mantém um olhar nostálgico sobre os momentos compartilhados com o rapaz. 

Com a neve a cair torrencialmente na estrada, Charlie Kaufman cria mais uma vez um cenário de angústia, apreensão e mistério sobre nossas percepções e desejos dentro da sua ótica surrealista. Algo que faz com maestria tanto em seus roteiros, vide Quero Ser John Malkovich (1999), Adaptação (2002) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), quanto na sua veia de diretor ao comandar os inquietantes Sinédoque, Nova Iorque (2008) e Anomalisa (2015).

Baseado no romance homônimo do canadense Iain Reid, o desconforto narrativo é sentido pelo tom de voz da protagonista, enquanto o enigma é conduzido pelas ações embaçadas de Jake. Conforme eles conversam, a moça continua a pensar sobre a iminente separação e como os seus pensamentos estão salvos na sua cabeça, no entanto, a sensação é a de que Jake está sempre à espreita e pressente o seu objetivo. 

Observamos Jake pela visão da narradora, ela pondera as coisas que lhe agrada e o que lhe causa repulsa. Embora questione a relação, ela mantém uma curiosidade sobre a origem do rapaz e confessa ser este motivo de aceitar o convite para um jantar numa distante fazenda no meio de condições climáticas desagradáveis. Seus questionamentos aguçam os nossos à espera do próximo acontecimento. Entre conversas, a protagonista pondera: “os outros animais vivem o presente, os humanos não conseguem, por isso inventaram a esperança”. 

Quando a mãe (Toni Collette) e o pai (David Thewlis) entram em cena, Kaufman apresenta o seu melhor estilo de nos colocar no meio da aflição da protagonista. Os móveis e os objetos mudam de lugar, os personagens percorrem o passado, presente e futuro diante de nossos olhos em mudanças drásticas de fisionomia. A casa da infância é simbólica em diversos aspectos, lá estão guardados os medos, os anseios e os desejos de Jake. Enquanto a estética nos provoca, é possível montar um conjunto de informações e sentar à beira da poltrona para não deixar nenhum elemento escapar. 

O espaço residencial torna-se cada vez mais reduzido e sufocante. Ao passo que a jovem repete incansavelmente que precisa voltar para sua casa naquela noite, Jake está sempre a dar atenção a outros fatores. Collette e Thewlis são magnânimos em nos fazer apreciar cada cena com espanto e diligência. O poder da sugestão é posto de diversas formas e, nesse sentido, podemos fazer pontes com Mãe! (2017), de Darren Aronofsky, no entanto, a temática está mais voltada a Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), Sonhando Acordado (2006) e A Espuma dos Dias (2013), todos de Michel Gondry.  

Estou Pensando em Acabar com Tudo vai longe em sua argumentação sobre a causalidade e o existencialismo para falar de relacionamentos e entrelaça-la à cultura pop. Ainda na primeira parte, o longa apresenta cortes da viagem de carro ao cotidiano de um zelador a rodar pelos corredores de uma escola e a assistir a uma comédia romântica de Robert Zemeckis (Forrest Gump). O que Charlie Kaufman quer nos dizer com este deslocamento? Em outro momento, os jovens questionam a obra Uma Mulher Sob Influência (1974), de John Cassavetes, e eles concordam que as pessoas veem muitos filmes a fim de “encher a cabeça de mentiras para passar o tempo”. 

Revelação no longa Wild Rose (2018), Jessie Buckley possui o tom e as reações perfeitas para as inquietudes decorrentes à sua volta, assim como Jesse Plemons já comprovou seu talento macabro, tanto no seriado Breaking Bad (2012-2013), quanto na comédia A Noite do Jogo (2018). Jake carrega um vazio e um lirismo em seu olhar distante e no encantamento pelos musicais da Broadway. Um papel que certamente seria do saudoso Philip Seymour Hoffman, protagonista de Sinédoque, Nova Iorque, ao lado de Kaufman

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Por vezes, há uma pequena intenção de Jessie Buckley olhar diretamente para câmara como se falasse conosco. Afinal, toda a conversa dos dois vai remoer nossos pensamentos por algum tempo. A narrativa nos tensiona a esperar continuamente por um drástico acontecimento ou uma atenção mais aguçada a fim de compreender quem é Jake. Quem é a narradora? De quem é a voz que ela ouve no telefone? Quem é o zelador? Enquanto as perguntas transbordam, Kaufman nos lembra que tudo isso é poesia, assim como sua protagonista diz: “cores são ações e sofrimentos”. 

De forma poética fantasmagórica, Kaufman apresenta o futuro e o passado ao voltar à escola do ensino médio de Jake, onde o próprio diz ter se sentido rejeitado. Prestes a sofrer esta experiência novamente, Jake sai da rota e decide visitar uma sorveteria, a qual o jingle não sai da sua cabeça, o que nos remete às obras de David Lynch (Twin Peaks). Em seguida no meio de uma torrente nevasca, ele continua a mudar o caminho para chegar à instituição de ensino. 

Em forma de musical, o sonho do rapaz percorre os corredores do estabelecimento. O lúdico completa-se com os diálogos compartilhados anteriormente em forma de dança, premiação, canto e, por fim, a contemplação do público. 

Provavelmente, Jake não vai ganhar o prêmio nobel ou estrelar um musical, mas ali dentro dos seus pensamentos ele pode ter tudo isso. Ao citar Guy Debord e Oscar Wilde, entre demais artistas e pensadores, Charlie Kaufman discorre sobre a existência das relações humanas, da mais simples decisão de corresponder um olhar até lidar com todas as dores e frustrações do outro. Desse modo, Estou Pensando em Acabar com Tudo nos lembra da possibilidade de sonhar e o de ter esperança, mesmo que decidamos nunca subir ao palco.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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