domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica Netflix | O Que Ficou Para Trás – Fascinante Terror Sobrenatural sobre Refugiados na Europa

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Premiado em Sundance no início de 2020, O Que Ficou Para Trás (His House) ganhou distribuição mundial pela Netflix em 30 de outubro. Lançado às vésperas do Dia das Bruxas, a ambientação macabra combina com o tom da época e evoca uma analogia ainda pouco usual no gênero terror, a realidade sombria dos refugiados africanos na Europa. A simbologia e o processo de adaptação são os pontos fortes da narrativa do estreante diretor britânico Remi Weekes.

A princípio, a travessia de Bol (Sope Dirisu) e Rial (Wunmi Mosaku), da sua cidade no Sudão do Sul até a Inglaterra, é apresentada em poucas cenas sem desenvolver a vida deles anterior à partida. Dessa maneira, o terror proposto pelo roteiro reside exatamente no suspense sobre o passado do casal e na sua trajetória até a locação comunitária para refugiados no Reino Unido.



Depois de alguns meses de traumas pelo caminho, o casal é convidado pelo departamento de imigração a ocupar uma residência como um modo de teste de adaptação. Apesar da boa nova, ambos não podem trabalhar e na entrevista com a imigração eles forçam um sorriso de simpatia como forma de afirmar uma presença cordial. Em contrapartida, o agente responsável pelos dois (vivido por Matt Smith, o Príncipe Philip do seriado The Crown) aparenta frieza e pouca condescendência. 

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Sair de um ambiente de guerra e chegar em um outro país apenas com a roupa do corpo é uma situação aterrorizante por si só, ou seja, Bol e Rial possuem apenas um ao outro na luta por pertencer a algum lugar. Essa experiência de sentir-se arrebatado e oprimido ao mesmo tempo é astutamente utilizada por Remi Weekes para criar um lar fantasma. Aos olhos do espectador, o vazio, a precariedade e o isolamento da casa são uma mensagem clara do que habita dentro dos próprios protagonistas. 

Normalmente, uma residência como cenário de horror é simbólico e funcional para trabalhar as camadas mais profundas dos personagens. Desse modo, é igualmente possível traçar um paralelo com a obra Sob a Sombra (Under the Shadow, 2016), também disponível na Netflix, do diretor britânico-iraniano Babak Anvari. Nesta obra, a guerra durante a revolução islâmica entre Irã e o Iraque nos anos 1980 exalta a tensão e o desespero na vivência dos personagens e as suas resistências em relação a uma ameaça sobrenatural. 

Em O Que Ficou Para Trás, a partir de um singelo apagar de luzes, Weekes coloca em evidência a batalha interior do casal de refugiados. Ao entrar na propriedade, Bol declara: “esta é a nossa casa”. A frase é evocada algumas vezes no enredo tal como um mantra, afinal, a casa é apenas um espaço de representação do que o casal tenta incutir em suas mentes: a Inglaterra, a pátria colonizadora, como um lar. Na mesma proporção, Bol afirma que deseja começar uma família, como uma tentativa de renascimento em um nova casca. 

Todos os elementos de O Que Ficou Para Trás comunicam uma única mensagem repetidamente. Isto é, a presença de um desconforto e um vazio em relação ao não pertencimento. Por exemplo, em uma caminhada pelas ruas da vizinhança Rial perde-se do caminho e, ao pedir ajuda a três jovens negros, ela ouve a resposta: “Volta para África!”, por conta do seu sotaque. Assim como uma vizinha (Vivienne Soan) diz a Bol que ele devia partir daquele lugar já que eles não pertencem ao espaço.

Em conjunto a afronta do cotidiano, todas as noite o fantasma da sua filha Nyagak (Malaika Wakoli-Abigaba) aparece para atormentá-los, assim como o de outras pessoas em pressuposto a todos os mortos no acidente de barco a caminho do Reino Unido. De forma enigmática, o ocorrido apresenta-se como um martírio maior que o próprio luto.

Fundamentado em cenas para causar sustos, O Que Ficou Para Trás se apropria de uma lenda contada por Rial ao marido sobre uma bruxa que amaldiçoa um ladrão a fim de nos ambientar ao sobrenatural e aceitá-los de forma plausível. Todos os pontos são conectados a partir das crenças, traumas e ações do passado de ambos. Portanto, enquanto eles tentam provar que são cidadãos dignos do território da Coroa Britânica, os dois carregam consigo a mácula deste semblante. 

Quando Bol pede uma casa nova ao serviço de imigração, ele é recebido com indiferença, afinal livrar-se da casa seria deixar igualmente a oportunidade de continuar na Inglaterra. A caracterização da presença sobrenatural no domicílio é, na verdade, algo que sempre os acompanhará. Na situação de refugiados, o abandono da terra natal não é uma escolha, é um movimento em consequência a uma onda gigante que passa e deixa todos os tripulantes à deriva sem aviso prévio. 

Em uma visita medical, Rial apresenta as marcas em sua pele como lembrança dessa reviravolta, isto é , algo que sempre estará presente na experiência do casal. Em outras palavras, os fantasmas nas paredes da casa permanecerão sempre com os seus habitantes. Assim como no ótimo The Babadook (2014), a presença do monstro sob o mesmo teto é simbólico como um aprendizado de lidar com o medo, pois ele sempre habita onde você reside. 

Enfim, o movimento de abandono de seus traços culturais e identitários (no filme evidenciados pelas nuances de comer com talheres e à mesa) transforma a adaptação em um processo de esvaziamento de si para sobreviver. Será que existe algo mais assustador do que isso? O Que Ficou Para Trás nos fornece uma resposta. 

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Premiado em Sundance no início de 2020, O Que Ficou Para Trás (His House) ganhou distribuição mundial pela Netflix em 30 de outubro. Lançado às vésperas do Dia das Bruxas, a ambientação macabra combina com o tom da época e evoca uma analogia ainda pouco usual no gênero terror, a realidade sombria dos refugiados africanos na Europa. A simbologia e o processo de adaptação são os pontos fortes da narrativa do estreante diretor britânico Remi Weekes.

A princípio, a travessia de Bol (Sope Dirisu) e Rial (Wunmi Mosaku), da sua cidade no Sudão do Sul até a Inglaterra, é apresentada em poucas cenas sem desenvolver a vida deles anterior à partida. Dessa maneira, o terror proposto pelo roteiro reside exatamente no suspense sobre o passado do casal e na sua trajetória até a locação comunitária para refugiados no Reino Unido.

Depois de alguns meses de traumas pelo caminho, o casal é convidado pelo departamento de imigração a ocupar uma residência como um modo de teste de adaptação. Apesar da boa nova, ambos não podem trabalhar e na entrevista com a imigração eles forçam um sorriso de simpatia como forma de afirmar uma presença cordial. Em contrapartida, o agente responsável pelos dois (vivido por Matt Smith, o Príncipe Philip do seriado The Crown) aparenta frieza e pouca condescendência. 

Sair de um ambiente de guerra e chegar em um outro país apenas com a roupa do corpo é uma situação aterrorizante por si só, ou seja, Bol e Rial possuem apenas um ao outro na luta por pertencer a algum lugar. Essa experiência de sentir-se arrebatado e oprimido ao mesmo tempo é astutamente utilizada por Remi Weekes para criar um lar fantasma. Aos olhos do espectador, o vazio, a precariedade e o isolamento da casa são uma mensagem clara do que habita dentro dos próprios protagonistas. 

Normalmente, uma residência como cenário de horror é simbólico e funcional para trabalhar as camadas mais profundas dos personagens. Desse modo, é igualmente possível traçar um paralelo com a obra Sob a Sombra (Under the Shadow, 2016), também disponível na Netflix, do diretor britânico-iraniano Babak Anvari. Nesta obra, a guerra durante a revolução islâmica entre Irã e o Iraque nos anos 1980 exalta a tensão e o desespero na vivência dos personagens e as suas resistências em relação a uma ameaça sobrenatural. 

Em O Que Ficou Para Trás, a partir de um singelo apagar de luzes, Weekes coloca em evidência a batalha interior do casal de refugiados. Ao entrar na propriedade, Bol declara: “esta é a nossa casa”. A frase é evocada algumas vezes no enredo tal como um mantra, afinal, a casa é apenas um espaço de representação do que o casal tenta incutir em suas mentes: a Inglaterra, a pátria colonizadora, como um lar. Na mesma proporção, Bol afirma que deseja começar uma família, como uma tentativa de renascimento em um nova casca. 

Todos os elementos de O Que Ficou Para Trás comunicam uma única mensagem repetidamente. Isto é, a presença de um desconforto e um vazio em relação ao não pertencimento. Por exemplo, em uma caminhada pelas ruas da vizinhança Rial perde-se do caminho e, ao pedir ajuda a três jovens negros, ela ouve a resposta: “Volta para África!”, por conta do seu sotaque. Assim como uma vizinha (Vivienne Soan) diz a Bol que ele devia partir daquele lugar já que eles não pertencem ao espaço.

Em conjunto a afronta do cotidiano, todas as noite o fantasma da sua filha Nyagak (Malaika Wakoli-Abigaba) aparece para atormentá-los, assim como o de outras pessoas em pressuposto a todos os mortos no acidente de barco a caminho do Reino Unido. De forma enigmática, o ocorrido apresenta-se como um martírio maior que o próprio luto.

Fundamentado em cenas para causar sustos, O Que Ficou Para Trás se apropria de uma lenda contada por Rial ao marido sobre uma bruxa que amaldiçoa um ladrão a fim de nos ambientar ao sobrenatural e aceitá-los de forma plausível. Todos os pontos são conectados a partir das crenças, traumas e ações do passado de ambos. Portanto, enquanto eles tentam provar que são cidadãos dignos do território da Coroa Britânica, os dois carregam consigo a mácula deste semblante. 

Quando Bol pede uma casa nova ao serviço de imigração, ele é recebido com indiferença, afinal livrar-se da casa seria deixar igualmente a oportunidade de continuar na Inglaterra. A caracterização da presença sobrenatural no domicílio é, na verdade, algo que sempre os acompanhará. Na situação de refugiados, o abandono da terra natal não é uma escolha, é um movimento em consequência a uma onda gigante que passa e deixa todos os tripulantes à deriva sem aviso prévio. 

Em uma visita medical, Rial apresenta as marcas em sua pele como lembrança dessa reviravolta, isto é , algo que sempre estará presente na experiência do casal. Em outras palavras, os fantasmas nas paredes da casa permanecerão sempre com os seus habitantes. Assim como no ótimo The Babadook (2014), a presença do monstro sob o mesmo teto é simbólico como um aprendizado de lidar com o medo, pois ele sempre habita onde você reside. 

Enfim, o movimento de abandono de seus traços culturais e identitários (no filme evidenciados pelas nuances de comer com talheres e à mesa) transforma a adaptação em um processo de esvaziamento de si para sobreviver. Será que existe algo mais assustador do que isso? O Que Ficou Para Trás nos fornece uma resposta. 

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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